A vida na Ucrânia: Conheça a cidade que vive à espera de um ataque russo a qualquer momento

Na fronteira com a Rússia e Belarus, a região ainda convive com bombardeios quase diários enquanto tenta se recuperar do trauma de ter sido ocupada por tropas russas em 2022

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Foto do author Carolina Marins

ENVIADA ESPECIAL A CHERNIHIV, UCRÂNIA* - Moradores da região de Chernihiv, na fronteira da Ucrânia com a Rússia e Belarus, observam o avanço russo em Kharkiv temerosos.

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Em 2022, uma semana após o início da guerra, tropas russas ocuparam a região, trancaram moradores de uma vila em um porão e bombardearam prédios civis. Dois anos depois, a nova ofensiva russa logo ao lado assusta em uma cidade que ainda tenta se reconstruir.

Esta reportagem é a primeira de uma série produzida pelo Estadão na Ucrânia sobre a vida da população civil em meio à guerra com a Rússia. A reportagem percorreu durante oito dias diversas cidades da Ucrânia, colhendo histórias sobre o conflito.

A maldição de Chernihiv, região com a menor densidade populacional da Ucrânia, é estar no caminho para Kiev. A apenas 140 km da capital ucraniana, as tropas russas chegaram ali em 3 de março de 2022. Foram 28 dias com 2/3 do território sob cerco russo até que a defesa ucraniana chegasse. Com mais de dois anos de guerra, a região implora por sistemas de defesa antiaéreos, iguais aos que protegem Kiev, em um local onde os ataques na fronteira continuam diariamente e as sirenes de alerta tocam quando é quase tarde demais.

“Quando as áreas de fronteira são bombardeadas, nenhum alarme antiaéreo resolve”, afirma Viacheslav Chaus, governador do Oblast (termo que quer dizer província) de Chernihiv. “Quando ouvimos o som de um morteiro ou artilharia sendo disparado, nós contamos um, dois, três, quatro, cinco, seis… e então ouvimos o barulho do impacto e agradecemos a Deus pelo lugar não ser perto de onde estamos”.

Segundo ele, nas áreas de fronteira, alertas aéreos só são eficientes contra mísseis e ataques de aeronaves, muito mais letais. Diferente de Kiev, em que sirenes de ataques são ignoradas e viram uma corrida para acompanhar a guerra pelo celular, em Chernihiv a orientação é clara: qualquer sirene, especialmente à noite, é uma ordem para procurar o abrigo mais próximo na mesma hora.

Restos de um míssil russo que atingiu o Centro Regional da Juventude de Chernihiv em fevereiro de 2022, nos primeiros dias da guerra, e continuam no local Foto: Carolina Marins/Estadão

A destruição faz parte do cenário da cidade: um teatro bombardeado, um hotel e um centro de juventude destruído por mísseis. No caminho entre Kiev e Chernihiv, casas destruídas, chamuscadas por incêndios causados por bombardeios ou, no melhor dos cenários, com os vidros quebrados, fazem parte da paisagem. Uma ponte que liga as duas regiões está sendo reconstruída após ser destruída para impedir o avanço russo.

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Em meio ao cenário de destruição provocado pelos primeiros dias da invasão, no entanto, as famílias de Chernihiv aproveitavam a primavera. No fim da tarde de sexta-feira, 24 de maio, as pessoas aproveitavam o calor lendo nas praças e parques, e sentadas na grama.

Resquícios de bombardeios na estrada entre Kiev e Chernihiv: mais de dois anos depois da invasão russo, destruição permanece Foto: Carolina Marins/Estadão

Para algumas, a nuvem de mosquitos atraídos pelo rio Desna, um afluente do rio Dnipro, era mais preocupante do que os zumbidos de mísseis russos. Passar repelente era mais urgente do que procurar abrigo.

Quando uma sirene tocou, no fim da tarde, o principal shopping center da cidade fechou as portas, como manda o protocolo para grandes espaços. Mas as pessoas continuaram esperando do lado de fora, pacientemente, o momento em que o alerta de ataque aéreo fosse cancelado para retornar às suas atividades cotidianas.

O alarme não preocupava porque os moradores de Chernihiv estavam bem informados de que a agitação russa daqueles dias era apenas porque Vladimir Putin estava visitando seu aliado Alexander Lukashenko, na capital de Belarus, Minsk, a 400 km de distância.

Moradores de Chernihiv aproveitam uma sexta-feira de sol em 24 de maio, apesar dos riscos de ataques aéreos Foto: Carolina Marins/Estadão
Moradores aproveitam uma sexta-feira de sol em Chernihiv, apesar dos riscos de ataques aéreos da fronteira Foto: Carolina Marins/Estadão

Medo do retorno russo

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A principal preocupação dos moradores de Chernihiv é um possível retorno russo. Por isso, todos ficam atentos aos movimentos das tropas em Belarus, de onde veio a primeira incursão. “O medo dos russos retornarem se mantém conosco desde abril de 2022, quando os expulsamos”, afirma o governador.

A nova frente de batalha em Kharkiv, região a cerca de 500 km de Chernihiv, acentua este medo. Assim como os vizinhos, Kharkiv passou por ocupação russa em 2022 e foi reconquistada pelo Exército ucraniano em uma contraofensiva bem-sucedida.

Agora, um novo avanço russo que começou no mês passado fez o campo de batalha retornar ao local. Moradores dos Oblast (Estados) vizinhos interpretam a ofensiva como uma forma de desviar as tropas ucranianas das batalhas do leste e do sul, mas não depositam toda a sua fé nisso.

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“Desde abril de 2022 temos tentado reforçar nossas defesas construindo fortificações, aumentando o número de tropas e minando as áreas de fronteira. Fazemos de tudo para que o inimigo não seja capaz de realizar uma ofensiva e avançar. Se o fará, não sabemos”, completa Chaus.

Ataques diários

Embora a capital de Chernihiv esteja hoje muito mais protegida pelas tropas ucranianas, os vilarejos na fronteira seguem com batalhas e bombardeios intensos quase todos os dias.

O governador aponta para o canto superior do mapa, onde o Oblast faz fronteira com Rússia e Belarus. “Essas são as áreas em que a Rússia está bombardeando todos os dias. Este ano tivemos apenas um dia em que não houve bombardeios nesta região. Bombardeios acontecem dia após dia”, relata.

Segundo ele, cerca de 15 mil pessoas ainda vivem nas regiões de fronteira e se recusam a sair. “Não podemos tirá-los à força, porque isso violaria seus direitos, mas eles estão conscientes dos riscos que correm”.

Destroços de uma casa bombardeada na estrada entre Kiev e Chernihiv Foto: Carolina Marins/Estadão

Nesta mesma área do mapa, diz, há constantes tentativas de avanço de soldados russos para reconhecimento ou sabotagens. “Tropas russas tentam cruzar a fronteira em pequenos grupos, de 5 a 8 pessoas, e realizar atividades subversivas. Ultimamente eles não têm tido sucesso porque aprendemos a conter essas situações”.

Por isso o governador ecoa os pedidos do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, por mais sistemas de defesa aérea. São os poderosos sistemas Patriot que permitem à capital Kiev seguir com uma vida normal. “É isso que o presidente Zelenski continua enfatizando: para proteger nosso território, é preciso ter uma defesa aérea poderosa e há um déficit de recursos de defesa aérea em toda a Ucrânia. Precisamos de um sistema de defesa aérea confiável que proteja a cidade”.

Teatro de Chernihiv foi atingido por um míssil balístico russo que deixou sete mortos e mais de 100 feridos em agosto de 2023; o teto ficou inteiramente destruído e hoje é recuperado com ajuda da Unesco Foto: Carolina Marins/Estadão

A herança das minas terrestres

Os moradores de Chernihiv convivem com o fantasma russo também por causa das minas terrestres deixadas pela ocupação e artefatos explosivos não detonados. De acordo com as autoridades da região, ao menos 24 pessoas morreram por causa de minas desde a retirada das tropas russas. A maioria agricultores.

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Dados do governo local apontam que mais de 81 mil objetos explosivos foram removidos da região até agora. “É um grande número em termos absolutos, mas é apenas uma pequena parte”, afirma o governador. As remoções têm sido feitas principalmente em áreas de plantio e infraestruturas críticas, mas resta vasculhar em rios e lagos.

O perigo representado pelas minas e artefatos não detonados, especialmente para crianças, levou as autoridades ucranianas a resgatarem um projeto da Unicef para conscientizar sobre os riscos das minas. Chamado de Super-heróis contra as minas, o projeto usa histórias em quadrinhos para tratar do tema e ensinar sobre medidas de cuidado.

Revista em quadrinhos 'Super-heróis contra as minas', um projeto da Unicef para educar crianças sobre os perigos de minas e dispositivos que não explodiram Foto: Carolina Marins/Estadão

Segundo a agência, desde 2014, após a ocupação russa da Crimeia e de partes do Donbas, a Ucrânia se tornou um dos países mais contaminados com minas no mundo. Há também as minas utilizadas pelo Exército ucraniano, especialmente nas áreas de fronteira.

Um vilarejo inteiro no porão

O pequeno vilarejo de Yahidne é um retrato do sofrimento e da necessidade reconstrução de Chernihiv. Sete dias após a invasão da Ucrânia, as tropas russas entraram em Yahidne. Eles forçaram os residentes a saírem de suas casas e a se abrigarem no porão da escola local, que haviam transformado em seu quartel-general. Até se retirarem em 30 de março de 2022, os russos mantiveram quase toda a população de Yahidne — cerca de 360 pessoas, entre elas crianças e idosos — naquele porão por 27 dias.

Era tão apertado que as pessoas tinham de dormir sentadas. Em vez de um banheiro, havia baldes. Não havia ventilação, muitos idosos morreram. Os russos não permitiram que os mortos fossem enterrados. Entre os moradores no claustro do porão estava Ivan Pulgui, 63, sua esposa, seus dois filhos, as duas noras e dois netos.

Ivan Pulgui, 63, morador do vilarejo de Yahidne, em Chernihiv Foto: Carolina Marins/Estadão

O vilarejo fica a 18 km ao sul da cidade de Chernihiv e foi surpreendido em 3 de março pela chegada de tropas russas. “Eles chegaram com seus veículos militares e começaram a atirar contra as janelas das casas como forma de intimidação”, lembra.

Poucos dias depois, conta, os soldados foram de porta em porta buscar as pessoas e as levaram para o porão de uma prédio que funcionava como escola e jardim de infância. “Eles colocaram veículos e soldados por toda a parte e impediam que as pessoas saíssem. Havia snipers, atiradores de elite, no topo do prédio e se alguém tentasse sair eles podiam atirar”.

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Escola onde 367 pessoas foram mantidas no porão durante ocupação russa a Yahidne Foto: Carolina Marins/Estadão

A escola hoje preserva um cenário de devastação: janelas quebradas devido a disparos e sacos de areia formando barricadas. O porão, que havia sido construído para ser uma academia de ginástica e acabou se tornando um depósito de ferramentas, fica nos fundos do enorme edifício.

Uma pequena porta verde esconde a escadaria que leva para os fundos. Lá, um largo corredor separa os cômodos onde 367 pessoas foram mantidas amontoadas, incluindo 70 crianças, sem luz e com acesso precário a comida, remédios e banheiro. “As pessoas só podiam sair uma vez por dia para utilizar o banheiro”, diz Pulgui.

Um dos cômodos do porão onde 367 pessoas ficaram em cativeiro em uma escola de Yahidne Foto: Carolina Marins/Estadão

“Era um espaço de 198 metros quadrados, o que deixava aproximadamente 14 ou 15 centímetros por pessoa, então não havia espaço para deitar. As pessoas podiam apenas ficar em pé ou se sentar”, relata.

O porão, que será transformado em um memorial, ainda guarda os resquícios do período de cativeiro. Casacos e roupas de criança estão espalhados por todo lado, assim como brinquedos, utensílios e livros.

As paredes estão repletas de marcações como contagens de dias e desenhos de crianças. “Às vezes era tão escuro lá embaixo que não era possível saber se era dia ou noite, então as pessoas contavam os dias nas paredes”, lembra.

Desenhos feitos por crianças no porão de uma escola no vilarejo de Yahidne, em Chernihiv Foto: Carolina Marins/Estadão

Segundo Pulgui, ao menos dez pessoas morreram naquele espaço devido à falta de ar ou tratamento inadequado. Ele não sabe mensurar o número de pessoas que morreram executadas do lado de fora e muito menos às que foram detidas tentando fugir da região e tiveram seus veículos incendiados.

“Quando morria alguém aqui dentro, pedíamos permissão aos russos para enterrar. Mas era difícil até mesmo retirar os corpos devido à lotação, às vezes tínhamos que passá-los por cima das cabeças das pessoas para tirá-los para fora”, conta.

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Ivan Pulgui mostra o porão onde ficou com a esposa, filhos e netos durantes os 27 dias de ocupação russa no vilarejo Foto: Carolina Marins/Estadão

As tropas russas se retiraram em 30 de abril e as forças ucranianas retomaram o vilarejo no dia seguinte. Mas as pessoas estavam muito assustadas para deixar o porão, lembra o ucraniano. “As pessoas tinham medo de voltar para as suas casas e muitos não tinham para onde ir porque era muito perigoso retornar já que as tropas russas haviam minado muitas das casas em sua retirada”.

A intenção ao transformar o espaço em um memorial é garantir que a tragédia de Yahidne não seja esquecida. Um episódio que Chernihiv considera ser a sua própria Bucha, em referência à cidade nos arredores de Kiev onde corpos foram encontrados espalhados após a desocupação russa.

Brinquedos e objetos pessoais deixados pelos moradores do vilarejo de Yahidne no porão da escola Foto: Carolina Marins/Estadão

Um centro de juventude como alvo

Outra lembrança da ocupação russa está no imenso buraco aberto no meio de um histórico prédio da cidade de Chernihiv que abrigava o Centro Regional da Juventude de Chernihiv.

O edifício, construído em 1939 para ser um cinema, lembra antigas construções gregas, com colunas brancas e altas. Abrigando o centro desde 2017, o local contava com três salas de cinema, espaços culturais e café.

Logo nos primeiros dias da guerra, em fevereiro de 2022, um foguete russo destruiu quase toda a parte dos fundos do prédio. Na época, mais de 240 mil jovens eram atendidos em atividades culturais e educativas no local, quase 25% da população da cidade.

Parte do Centro Regional da Juventude de Chernihiv que foi atingido por um bombardeio russo Foto: Carolina Marins/Estadão

O local estava fechado no momento do ataque e não deixou mortos. “A primeira explosão aconteceu não muito longe daqui, em uma clínica odontológica, mas o choque fez com que todas as vidraças das janelas se quebrassem”, lembra Irina Simonova, diretora do centro.

Ela conta que dois trabalhadores correram para o local, para salvar alguns pertences, quando o primeiro alerta de ataque tocou na cidade. Embora uma colega insistisse em resgatar equipamentos sensíveis, outro trabalhador a convenceu a se refugiar no abrigo antiaéreo mais próximo. “Ele fez a coisa certa porque logo depois um míssil caiu aqui”.

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Irina Simonova, diretora do Centro Regional da Juventude de Chernihiv, em frente ao local onde um míssil russo caiu em fevereiro de 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

Os trabalhos do centro foram transferidos para um pequeno prédio em uma vizinhança próxima, enquanto o enorme edifício histórico é reconstruído com ajuda de doadores internacionais, incluindo o governo da França.

Um teatro, no coração da cidade, também foi bombardeado e está sendo reconstruído com apoio da Unesco. Em meio à agitação da cidade, típica de uma sexta-feira, os destroços de um hotel compõem a paisagem.

Os três locais mais destruídos da cidade reforçam o argumento ucraniano de que a Rússia nunca mirou estruturas militares. “No começo da guerra, os russos voavam tão baixo com seus bombardeiros que era impossível não verem que estavam jogando bombas em edifícios civis”, diz o governador.

Destroços de hotel bombardeado no centro de Chernihiv durante início da invasão russa à Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia

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