Os chilenos rejeitaram em um plebiscito realizado neste domingo, 17, a nova proposta de Constituição que, após quatro anos de negociações, buscava mudar a Carta Magna redigida pela ditadura de Augusto Pinochet e vigente no país desde 1980. Com 99% das urnas apuradas, mais de 55,8% dos cidadãos votaram contra o novo texto, enquanto 44,2% votaram a favor da proposta construída, maioritariamente, por partidos de direita.
O plebiscito deste domingo ocorre um ano depois de o Chile votar amplamente contra um projeto de Constituição considerado internacionalmente como um dos mais progressistas da América Latina.
O resultado de hoje parece consolidar o fim de um processo iniciado durante o estouro social de 2019 no país sul-americano, quando milhares de chilenos saíram às ruas para exigir uma série de reformas profundas, paralisando a nação com algumas das manifestações mais violentas da história chilena e abrindo as portas de um debate complexo sobre a herança ditatorial atrelada aos últimos governos.
Uma derrota para a direita
O conselho constitucional que elaborou o projeto de nova Constituição foi dominado pela oposição ao governo de Gabriel Boric, de esquerda. Dos 50 assentos no órgão, 33 ficaram nas mãos de representantes de partidos de direita, incluindo 22 do Partido Republicano, do político conservador José Antonio Kast.
Neste domingo, Kast, que perdeu a eleição presidencial para Boric em 2021, fica como o maior derrotado do processo.
Debate sobre aborto e imigrantes
A nova proposta constitucional gerou polêmicas nos últimos meses e seu conteúdo foi duramente criticado pela esquerda chilena. A ex-presidente Michelle Bachelet qualificou o texto como um “retrocesso” para os direitos das mulheres.
Os movimentos sociais chilenos denunciaram que diversas exigências tradicionais, como a democratização do acesso à saúde, um sistema aposentadoria mais justo e garantias para os direitos reprodutivos das mulheres, ficariam de fora do novo texto, o que geraria maiores tensões a nível nacional.
Um dos pontos mais sensíveis é em relação ao aborto. A norma atual cita que “a lei protege a vida do que está por nascer”, enquanto a proposta nova, em seu artigo 16, reitera que a Constituição “assegura a todas as pessoas o direito à vida. A lei protege a vida de quem está por nascer”.
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A reformulação de conceitos do projeto sugere que a nova Constituição, mais conservadora, passaria a considerar que o feto já é “alguém”, ou seja, uma vida que precisaria ser protegida.
Para os constitucionalistas de partidos de direita, o texto novo ofereceria à esquerda uma concessão no quesito do aborto, com o mantenimento de uma das revisões da redação atual da Constituição de 1980, sob a qual a lei do aborto foi aprovada por três causas — motivos de estupro, má formação do feto e risco à vida da mãe —, mas que esta proposta foi “rejeitada” pela esquerda.
Os progressistas afirmam que o texto atual e a nova proposta não garantem que a lei não será revogada.
O projeto também contém elementos polêmicos sobre questões como a imigração (ao consolidar mecanismos para a expulsão de imigrantes ilegais “o mais rápido possível”) e o direito de greve, por exemplo.
Por outro lado, os defensores do texto destacam que se trata de um texto moderno que consagra questões de interesse dos cidadãos, como segurança e liberdades individuais.
O aborto e as restrições aos imigrantes indocumentados são os dois temas principais da agenda dos conservadores chilenos, que se preparam para as eleições regionais de 2024 e para as presidenciais de 2025.
Boric manteve certa neutralidade com relação ao plebiscito de hoje. Ao votar, o presidente chileno disse que o processo mostrava a força da democracia chilena.
“Hoje, realizamos uma nova jornada cívica que, além de qualquer resultado, fortalece nossa democracia”, disse Boric, após votar em Punta Arenas. “Canalizamos institucionalmente os problemas que temos na sociedade e os resolvemos pacificamente.”
‘Cansaço eleitoral’
A apatia política e a baixa participação cidadã marcaram o processo de votação no segundo projeto de Constituição do Chile.
De acordo com o cientista político chileno, Mario Herrera, a derrota do novo projeto constitucional reflete dois fatores fundamentais: o cansaço eleitoral e a desilusão com um processo que não resultou ser como esperado.
“O Chile enfrenta um cenário de mais de 11 dias de eleição em quatro anos, com um processo constituinte que levou cinco desses dias. Isso levou a um excesso de oferta política, o que implica cansaço eleitoral, e está aumentando o descontentamento”, afirmou Herrera em entrevista ao Estadão.
“Em segundo lugar, isso mostra que a questão da constituinte foi a solução institucional para a explosão social, mas não necessariamente algo que as pessoas esperavam. Uma vez que o primeiro processo traiu as expectativas do público, o processo não pode ser reconstruído novamente”, afirmou o cientista político. “Com esse resultado, o capítulo constitucional deve ser encerrado, pelo menos durante o governo de Boric.”
A porta-voz do governo, Camila Vallejo, disse hoje que busca por uma nova Constituição acabou. “O processo termina aqui”.
Para Herrera, no Chile, houve uma crise de expectativas e que, por isso, o processo constituinte nunca foi uma prioridade para os cidadãos; mas a classe política depositou nele a expectativa de resolver os principais problemas do país. “Essa terceira derrota eleitoral dos processos constituintes é a prova disso”, ponderou.
O primeiro representante da direita a reconhecer o fracasso da nova proposta constitucional foi Javier Macaya, líder da União Democrática Independente. “O Chile não terá uma nova Constituição”, disse o político na noite deste domingo. “Peço ao governo que seja coerente e não levante novamente a questão constitucional.”
Já a porta-voz da oposição, Carolina Leitao, disse que o resultado é uma grande sacudida na política. “Queremos mais acordos e menos disputas”, afirmou.
Depois da divulgação do resultado, Boric afirmou que o processo constitucional será encerrado durante sua administração. “A maioria votou contra o texto constitucional proposto. Quero ser claro: durante nosso mandato, o processo constitucional está encerrado, as urgências são outras”, disse o presidente, que reconheceu também que “a política está em dívida com o Chile”.
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