Enquanto a Casa Branca desfere ataques contra o sistema multilateral e faz questão de reduzir o papel da ONU, o espaço deixado pelos americanos vem sendo ocupado pela China – e nem sempre de maneira discreta. No saguão que dá acesso às salas usadas para debates sobre direitos humanos na ONU, em Genebra, enormes fotografias foram instaladas pela diplomacia da China para exibir ao mundo os “progressos” feitos pelo regime comunista com relação à proteção dos direitos fundamentais.
A exibição foi inaugurada na semana passada, com um farto banquete em que centenas de elegantes diplomatas equilibravam pratos com comida tradicional chinesa. Coincidindo com a abertura dos trabalhos do Conselho de Direitos Humanos, sem a presença americana, o evento contou com discurso chinês sobre como os direitos humanos estavam no centro das preocupações do regime.
Desde o início de seu governo, Donald Trump retirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU, saiu do acordo de Paris sobre mudanças climáticas, se retirou do acordo nuclear com o Irã, abandonou a Unesco, suspendeu seu apoio financeiro para os palestinos e saiu do acordo sobre migração. No mês passado, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton, ameaçou impor sanções contra os juízes do Tribunal Penal Internacional que abrissem processos contra os interesses americanos.
Pequim optou por não criticar o isolamento dos EUA. Diplomatas estrangeiros contam à reportagem que os negociadores chineses estão mais ocupados com outra função: estabelecer a nova agenda da ONU com base em seus interesses, redesenhar as regras internacionais e imprimir a marca de Pequim na entidade, aproveitando-se da ausência de Washington.
O avanço chinês não é recente. Mas, agora, negociadores concordam que o vácuo deixado por Trump acelerou a ocupação de espaços. Apenas em Genebra, a missão chinesa tem 66 diplomatas. Na sede das Nações Unidas, a imprensa chinesa já é o maior grupo entre os correspondentes estrangeiros.
O incremento também é visto no setor militar. Desde 2012, a China já forneceu mais soldados às tropas de paz da ONU que os demais quatro membros do Conselho de Segurança juntos. Pequim ainda passou a manter um grupo de 8 mil soldados permanentemente treinados para operações internacionais.
Na imprensa oficial chinesa, as tropas do país no Sudão do Sul, Mali ou Darfur são apresentadas ao povo como um gesto de Pequim como “professores da paz, civilização e poder”.
Se em 2013 a China contribuía com apenas 3% do orçamento das missões de paz, hoje ela garante 10,2% do custo total e já é o terceiro maior contribuinte. Para os próximos cinco anos, Pequim destinará US$ 1 bilhão para as tropas da ONU. Enquanto isso, a embaixadora americana no Conselho de Segurança, Nikki Hayley, promoveu nos últimos meses uma pressão para garantir um corte no orçamento das operações de paz e, assim, reduzir a contribuição americana.
Para o orçamento regular da ONU, Trump também já cortou US$ 285 milhões, alegando que não quer financiar uma entidade ineficiente e burocrática. Para os próximos dois anos, portanto, a participação americana ainda será a maior, com US$ 611 milhões. Os chineses já superam todos os europeus e aparecem na terceira posição, com US$ 220 milhões.
Em diversas organizações, esse dinheiro chinês também já significa votos. Na Organização Mundial da Saúde, por exemplo, o novo diretor é um etíope, eleito com o apoio chinês. Em outras ocasiões, a ajuda da China fez a ONU silenciar diante dos abusos. Em abril, a Human Rights Watch criticou abertamente o secretário-geral da ONU, António Guterres, por ter viajado a Pequim e não ter abordado questões de direitos humanos.
Essa nova participação também se reflete na imagem interna da ONU e em suas atividades. Em junho, a Assembleia-Geral teve seus trabalhos suspensos por alguns dias para que um seminário fosse realizado sobre a Rota da Seda, na China. Alguns meses antes, em Genebra, Pequim inaugurou uma enorme exposição sobre a caligrafia chinesa. No fundo, a mensagem era clara: a ONU não será eternamente um domínio de uma só língua.
Nova imagem da China
A imposição de uma nova imagem chinesa na ONU, segundo diplomatas em Genebra, passa também por tentar imprimir a visão do mundo de Pequim. “Assim como os americanos após a 2.ª Guerra, a China considera que este é seu momento”, disse um experiente negociador, na condição de anonimato.
No entanto, a China não se limita a uma política de simbolismos. Nas resoluções que ela começa a propor, todos os textos vêm marcados por uma nova linguagem: a cooperação. A ordem é bloquear qualquer tipo de crítica a suas política e, sempre que houver dúvidas, promover a ideia de que nada é superior à soberania.
Tentando se distanciar das feridas abertas no massacre de Tiananmen, a China vem propondo novos textos aos debates e conseguiu até mesmo votos para ocupar um lugar no Conselho de Direitos Humanos, o mesmo acusado pela embaixadora dos EUA, Nikki Haley, de “hipócrita” em razão da presença de várias ditaduras.
Em outro sinal de “ocupação da ONU”, a estratégia de Pequim é privilegiar resoluções que promovam direitos coletivos, e não individuais. Ao mesmo tempo, os chineses tentam minar ideias hoje consagradas como os direitos humanos de ativistas, questionando a legitimidade dessas pessoas.
Para diplomatas, o avanço chinês também é marcado pelo esforço de Pequim para silenciar qualquer tipo de crítica. Em março, no Conselho de Direitos Humanos, um dissidente chinês tomou a palavra, para o desespero da delegação da China. Assim que começou a falar, o diplomata chinês Chen Cheng tentou impedir o discurso, mas a direção não permitiu.
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