Quando Vladimir Putin ordenou a invasão em larga escala da Ucrânia há exatos três anos, a expectativa era de uma capitulação rápida. A Rússia era muito mais forte, a capital Kiev parecia um alvo fácil e o Exército ucraniano tinha poucas perspectivas de resistir aos russos. Graças a uma resistência heroica, a Ucrânia não caiu.
Três anos depois, Kiev ainda é a capital da Ucrânia, mas está diferente. Os cemitérios foram expandidos, muros se transformaram em memoriais a soldados, há tanques enferrujados espalhados na praça principal, os prédios do governo estão atrás de barricadas de sacos de areia e edifícios destruídos compõem a paisagem de várias cidades ao redor.
Mas o maior prejuízo destes três anos de guerra são as cicatrizes que seus horrores deixam nas pessoas. Nas últimas semanas, o Estadão conversou com civis, militares e familiares de vítimas do front. Suas histórias dão um panorama do que o primeiro conflito de larga escala no coração da Europa desde a 2ª Guerra deixará de legado, num momento em que os Estados Unidos avaliam uma negociação que tem tudo para favorecer a Rússia e prejudicar a Ucrânia.
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O número total de mortos é incerto, mas o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU estima no mínimo 40 mil civis foram mortos até dezembro de 2024. Kiev fala em outros 46 mil militares mortos. As estimativas, no entanto, são conservadoras.
Nos ucranianos, o cansaço de um conflito que se arrasta agora se soma à indignação de negociações de paz sem eles na mesa. Quem sim está lá é Vladimir Putin quem, até poucos dias atrás, era um pária internacional. De moradores da capital às regiões próximas do front, ucranianos que conversaram com o Estadão relatam fadiga, um luto interminável e um vínculo patriótico crescente.
O sentimento de traição também parece uma unanimidade, conforme os Estados Unidos de Donald Trump viram as costas para Kiev e abraçam Moscou. Ainda se crê que a Europa investirá em proteger a Ucrânia do avanço russo, muito por causa de seu próprio temor de investidas futuras de Putin. Mas, no fim, os ucranianos se sentem sozinhos para proteger seu próprio território.

Para uma filha, um luto sem lágrimas
Anatoli Karban era um entusiasta dos aniversários, mas morreu no campo de batalha um mês antes de completar 55 anos. Professor de história por formação, era um patriota. Participou de todas as revoluções desde os anos 1990, quando a Ucrânia se tornou independente da União Soviética.
Segundo sua filha, Alina Karban, 35, Anatoli tinha uma espécie de “maleta militar” desde 2014, quando a Rússia anexou ilegalmente a Península da Crimeia, pronto para caso precisasse lutar. Quando Moscou invadiu o país em 24 de fevereiro de 2022, ele correu para pegar sua maleta e ir imediatamente ao front.
Serviu protegendo objetos estratégicos em Poltava, sofreu com tiros de artilharia em Kharkiv e sobreviveu à dura batalha de Soledar, cidade estratégica para a conquista russa de Bakhmut onde se desenrolou uma intensa luta de atrito contra mercenários do grupo Wagner. A morte o encontrou no vilarejo de Tonenke, na província de Donetsk, quando um tiro de artilharia o atingiu em abril de 2023.

“Tínhamos certeza que nosso pai nunca ia morrer”, lamenta Alina. Era véspera de Páscoa, ela, sua mãe e sua irmã estavam reunidas para as comemorações quando os primeiros rumores da morte chegaram por meio de amigos. A confirmação só veio dois dias depois, quando foi enviado o aviso oficial de óbito.
Foi horrível. Porque você não consegue acreditar nessa situação. Ele participou de combates em Kiev, umas situações terríveis e sentíamos muito medo por ele. Sabíamos que podia acontecer a qualquer hora, mas nunca acreditávamos que poderia acontecer de verdade. E até agora às vezes eu acho que eu não trabalhei com esse trauma. Acho que esse trauma ainda está lá dentro de mim, guardado.
Alina Karban
Hoje Alina trabalha com arquivos e memórias da história ucraniana, especialmente dos soldados mortos na guerra. Um de seus trabalhos foi brigar pela construção de espaços dedicados a militares nos cemitérios. “Meu pai não teve um local especial de enterro, então brigamos a nível municipal para transformar um terreno que era pra ser comercial em cemitério militar. Agora ele está lá na primeira fileira, cercado por nossos colegas e amigos, descansando”.
A parte mais estranha disso tudo, diz Alina, foi ver a vida — e a guerra — seguindo apesar de seu luto. “O que me ajuda é falar com as famílias dos falecidos, porque pelo menos a gente sabe muito bem o que essas famílias passam. Posso confirmar que o mais difícil nessa perda é que ela acontece numa família, mas o mundo ao redor continua vivendo. O mundo não para, a Ucrânia continua a guerra e você fica com sua perda sozinho”.
Além do pai, Alina conta que vem perdendo amigos e colegas desde 2014, mas a escala das perdas aumentou nos últimos três anos. “Esses últimos três anos foram os mais difíceis. Vários dos meus amigos e conhecidos não existem mais. A guerra destrói mental e fisicamente. Nós tentamos sorrir, mas é difícil. Não tenho mais lágrimas para chorar.”

Para quem a guerra tem mais de 10 anos
A sugestão de ceder os territórios atualmente ocupados à Rússia soa como um insulto para quem vivia em um deles. Ainda mais quando a ocupação tem mais de dez anos, como é o caso da Península da Crimeia, anexada por Vladimir Putin em 2014.
É o caso de Angelina Iaroshenko, 21, que nasceu em Donetsk, viveu 10 anos de sua vida se mudando de uma cidade a outra da Ucrânia e hoje está em Zaporizhzhia, muito perto dos territórios ocupados e do combate ativo.
“Nessas regiões nós seguimos o fluxo, apenas observando, porque nenhuma situação é permanente”, conta. “As vitórias são pontuais, porque mesmo se uma cidade for libertada hoje, semana que vem ela pode estar sob ocupação de novo”.

Ela é co-fundadora da organização “Centro de Desenvolvimento Luz para o Mundo”, que promove acolhimento e atividades recreativas para jovens e crianças da região de Zaporizhzhia, muitos vindos das regiões sob ocupação. Além de atendimento psicológico aos que fogem dos bombardeios, a ONG conta com fonoaudiólogos que auxiliam as crianças e até adultos que param de falar em consequência do trauma.
Nos atendimentos, ela conta, já lidou um menino de 9 anos traumatizado pelos chamados “campos de filtragem”, onde as crianças ucranianas são separadas de seus pais e correm o risco de serem levadas para a Rússia para adoção — prática considerada crime contra a humanidade e que gerou o mandado de prisão contra Putin no TPI. Outro caso foi de uma idosa que ficou sozinha durante a ocupação russa e, quando retornou à Ucrânia, não conseguia mais falar ucraniano, apenas russo, em virtude do medo.
Por tudo isso, a ideia do presidente americano, Donald Trump de entregar os territórios ocupados - hoje 20% da Ucrânia - para a Rússia, é impensável.
Não são apenas casas e edifícios que ficaram lá. Nossos mortos estão lá, nossos soldados estão lá. Isso nos faz refletir então por que fizemos tudo isso?
Angelina Iaroshenko

Para um soldado, uma guerra do passado
Alex, 26, estava estudando o quarto ano de medicina veterinária em Breslávia, na Polônia, em 2022. Nunca tinha ido mal nas provas e tirava boas notas, apesar do polonês não ser sua língua nativa. Nas férias viajava para outros países da Europa e da Ásia e se mantinha graças aos seus empreendimentos em Kiev: um pet shop e uma veterinária.
Estava passeando no Líbano quando a invasão em larga escala aconteceu. Naquele dia se viu diante de uma decisão que definiria sua vida: continuar na Polônia para completar seus estudos ou retornar à Ucrânia e se juntar aos voluntários das Forças Armadas?
Depois de pensar durante quatro dias, decidiu defender a sua terra natal. Primeiro ele contribuiu com voluntariado e ajuda humanitária, depois decidiu se juntar ao Exército. Por estar atualmente em serviço ativo, ele pediu para que tivesse apenas seu apelido, Alex, revelado.
“Lembro que tive um pequeno episódio de depressão porque comecei a entender que, para mim, como um homem adulto na Ucrânia, ser voluntário não era a melhor coisa que podia fazer. Então, decidi que queria entrar para o Exército”, conta. Hoje atua como operador de drones de vigilância e seu papel é localizar a presença de tropas inimigas por perto.
Depois de passar por treinamento, ele foi enviado para diferentes áreas do front. De cabeça, acredita que só não esteve ainda em Kursk, a região russa parcialmente ocupada pela Ucrânia desde agosto do ano passado. Já passou por Kharkiv, Izium, Sloviansk, Liman, Zaporizhzhia, Kherson e atualmente está em Donetsk.

Ao longo desses três anos, viu as batalhas se transformarem. Se no começo era comum encontrar os gigantescos tanques russos, hoje Moscou usa principalmente bombas planadoras e investe no combate homem a homem.
É quase uma técnica da Segunda Guerra Mundial. Eles não usam mais veículos. Em vez disso, mandam caminhões com 15 ou 20 pessoas até uns 10 quilômetros da linha de frente e depois essas pessoas avançam só com suas mochilas e armas. Para mim, pessoalmente, não como ucraniano, mas como ser humano, é aterrorizante ver quando cinco pessoas entram no campo de batalha e há minas, projéteis de artilharia, e drones que tentam destruí-los.
Alex, soldado ucraniano
Sua família continua em Kiev, lutando para manter os negócios em uma economia que também se vê sufocada pela guerra. Seu pai tem problemas de saúde e não pode ir ao front. Alex tem um irmão mais novo que ainda não está na idade de ser mobilizado — na Ucrânia a idade de alistamento é 25. Mas toda a família sente o estresse do conflito e da iminente mobilização do caçula.
Para um jovem, a convocação iminente
Quando Taras Koroliuk, 24, olha sua vida em retrospecto, ela não parece ter mudado muito nos últimos três anos. Ele tem um bom apartamento em Kiev, trabalha em um emprego que adora e com uma equipe acolhedora, tem amigos que ama e com quem compartilha os bons e maus momentos. A vida parece boa. Mas evita pensar no futuro.
“Agora sou forçado a pensar no meu futuro e no que virá a seguir e às vezes eu só quero acordar no final de 2025 e apenas com um olho ver o que realmente aconteceu”, diz. Taras personifica a estranha normalidade da classe média que vive na capital ou nas cidades do oeste, longe do front, onde a vida parece igual ao mesmo tempo que está tudo diferente. O dia a dia é o mesmo, mas o futuro mais incerto do que costuma ser.
Em março ele completa 25 anos e já entra na idade de recrutamento para as Forças Armadas. A Ucrânia tem uma das idades de mobilização mais altas do planeta. Ele admite que ir para o front não é a forma como ele quer passar a sua vida, mas deixar de ir também não é uma opção.
Eu faço parte da comunidade LGBT+ e eu sei como a Rússia trata essa comunidade, como terroristas. Eu não quero viver sob essas condições [em um cenário em que a Rússia ocupe a Ucrânia]. Além disso, eu sou um patriota, amo esse país, não quero viver em outro lugar. Então se eu não quiser ver a Ucrânia se transformar numa Belarus 2.0, não tenho outra opção que não lutar.
Taras Koroliuk
Para um militar, o milagre de um front que resiste
Pavlo Didula, 33, tinha três projeto de vida antes da guerra: produção de vídeos e filmes, que é a sua profissão, ajudar ucranianos em albergues após a revolução Maidan e construir a sua casa. Tudo foi interrompido em 24 de fevereiro de 2022. Após a invasão em larga escala pela Rússia, ele e um grupo de amigos escoteiros correram para se alistar nas Forças Armadas da Ucrânia, mas eram muito inexperientes e passaram o primeiro ano de guerra em treinamento.
Somente em 2023 que Pavlo se juntou ao front. Hoje, luta no campo de batalha de Donetsk, um dos mais ativos desde o dia 1 de conflito. Por segurança, não pode discutir questões militares. Isso requer uma autorização acima. Mas pode dizer que vê ainda vê esperança em seus colegas de front, ainda que a maioria esteja exausta.
A profissão de videomaker tem sido útil por onde passa. Ele recebeu autorização para registrar o dia a dia dos soldados, sem comprometer a segurança do batalhão. Mas diz que não tem coragem de assistir aos seus próprios filmes para não ter que rever os colegas que já perdeu.
“Eu nem sei mais contar quantos amigos já morreram. Nem sinto mais tristeza e nem ódio ao meu inimigo. Eu vejo a realidade como ela é. Essa realidade é triste, sim, mas eu não tenho tempo, a tristeza não vai me ajudar a resistir”, diz.
Como forma de extravasar e manter a saúde mental, o soldado levou um antigo hobby para o front: pinturas em discos de vinil. Aprendeu com um arquiteto a arte de pintar em objetos distintos. Escolheu o vinil pela praticidade de levá-los para onde quiser. Quando pode, vende os discos pintados em feiras de artesanato e arrecada dinheiro para as Forças Armadas.

Pavlo estava de férias quando conversou com o Estadão. Aproveitou os dias de descanso para visitar seus pais e os pais de amigos. Em uma dessas visitas a um amigo, notou como o número de túmulos do vilarejo havia aumentado. “Havia um túmulo antes, agora são cinco e dois são de desaparecidos”.
Ele admite achar um milagre que a Ucrânia tenha resistido até agora, mas vê suas esperanças abaladas conforme Trump avança com a ideia de promover um acordo de paz com Putin sem acrescentar a Ucrânia à mesa.
Existem pessoas no mundo que você simplesmente não pode apertar a mão porque elas fizeram o mal. Na Segunda Guerra essa pessoa era Hitler. Agora é Vladimir Putin.
Pavlo Didula
