
Cientista político, historiador das ideias e ensaísta, Mark Lilla, professor de Humanidades da Universidade Columbia, em Nova York, é um dos mais argutos observadores das mudanças econômicas, sociais e políticas nos Estados Unidos que levaram Donald Trump a conquistar a presidência do país por duas vezes.
Lilla vê o fenômeno Trump como resultado de transformações — uma delas, o aumento do individualismo na sociedade americana — iniciadas com o reaganismo, o movimento criado a partir da primeira eleição de Ronald Reagan para a Casa Branca em 1980. Para Lilla, agora, está claro, porém, que o populismo de Trump representa a morte do conservadorismo encarnado por Reagan, o que criou, segundo ele, um vácuo na política americana, difícil de ser preenchido.
Em 2016, na primeira eleição de Trump, Lilla causou polêmica com um artigo em que atribuía a derrota de Hillary Clinton às políticas identitárias que transformaram o Partido Democrata num porta-voz de grupos minoritários, mas com pouca conexão com o restante da sociedade. Agora, ele avalia que um certo desleixo com que o governo democrata de Joe Biden tratou a questão da imigração ilegal foi fundamental para o retorno de Trump. Lilla participou recentemente de um evento sobre os 40 anos da redemocratização no Brasil organizado pela Fundação Astrojildo Pereira.
Leia a seguir os principais trechos de entrevista que ele deu ao Estadão.

O senhor acha que Donald Trump no poder representa o auge de um processo de declínio do conservadorismo americano que começou depois do governo Ronald Reagan. Pode explicar essa ideia?
O conservadorismo americano é diferente do conservadorismo na Europa ou na América Latina, onde os países foram profundamente marcados pela história da Igreja Católica e pela existência de uma aristocracia com terras. Os Estados Unidos são um país de imigrantes, de comércio e que sempre foi individualista. Aqui, desenvolveu-se um conservadorismo “fusion”, que fundiu o individualismo do livre mercado e a defesa da ordem econômica liberal com os valores sociais tradicionais relacionados à família, aos papéis de homens e mulheres na sociedade, ao lugar da religião na sociedade. Esse foi um casamento muito estranho, com uma grande tensão, porque o individualismo na esfera econômica pode se esparramar para a cultura da sociedade e afetar a moralidade. Mas ele prosperou ao longo do século 20, e o governo Ronald Reagan foi a coroação desse conservadorismo que acreditava nas instituições e em mudanças lentas.
Essa tradição, porém, não tinha como se defender do populismo que ascendeu após Reagan por várias razões. Muito tem a ver com o que aconteceu no mundo do rádio e da televisão. Havia uma regra de radiodifusão nos EUA que dizia, por exemplo, que cada estação de rádio tinha que apresentar os dois lados de uma questão política. Isso foi abolido durante os anos Reagan. O que ocorreu em seguida foi que surgiram locutores de rádio que ganharam fama e ficaram ricos alimentando ideias populistas radicais. Também,por alguma razão, aqueles que estão na direita realmente perderam a cabeça por causa de Bill Clinton. Clinton era, de muitas maneiras, conservador. Fiscalmente, ele era conservador e tirou pessoas dos programas de assistência social. Mas, por ele ser jovem e moderno, isso, por alguma razão, afetou profundamente as pessoas de direita. A outra coisa que ocorreu foi o Nafta, o acordo de livre comércio com o Canadá e México.
Então, todas essas coisas se juntaram, e a velha tradição conservadora, naquele momento representada pela família Bush, nunca se reproduziu, nunca teve filhos, ideologicamente falando. No primeiro debate da eleição de 2016 entre os pré-candidatos republicanos, houve aquele contraste incrível entre Jeb Bush (ex-governador da Flórida), que era um dos filhos de George Bush, e Trump.
Trump entendia de televisão, entendeu que a nação havia mudado e simplesmente destruiu Bush. Hoje, podemos dizer que o conservadorismo americano morreu, porque Trump e seus seguidores não são conservadores, apesar de serem muitas vezes chamados assim. São populistas reacionários que querem fazer uma contrarrevolução na política e na sociedade. Ao contrário do que se pensava, a era Reagan não representou um rejuvenescimento do conservadorismo americano,mas o início do seu fim.
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Quais foram as razões materiais para essa transformação do conservadorismo em populismo?
Acho que três coisas podem ser mencionadas. A primeira foi o Nafta, que destruiu áreas do país onde as pessoas eram tradicionalmente democratas, como em Detroit, onde eu cresci. As pessoas começaram a votar nos republicanos para presidente, enquanto permaneciam democratas em outros aspectos. De repente, todos esses homens perderam seus empregos e não podiam mais sustentar suas famílias. Suas esposas arrumaram empregos e passaram a ganhar mais dinheiro do que eles. Então, isso gerou uma grande crise social e muita raiva.
O abuso de drogas aumentou em todo o país. A segunda coisa é que a economia mudou no sentido de que a indústria passou a importar cada vez menos, e você passou a precisar de um diploma para ter uma vida de classe média, o que não era o caso antes. Então, você tem um grande grupo de pessoas insatisfeitas. Nem é uma classe econômica, mas um grupo de pessoas presas nessa situação insatisfatória. A última coisa a ser mencionada, obviamente, é a internet e como ela, em vez de moderar a opinião política, apenas inflama as paixões das pessoas.
A morte do conservadorismo deixou um vácuo na política americana. Vê alguma possibilidade desse vácuo ser preenchido no futuro?
Apenas em um futuro distante. Não há nenhum democrata importante agora que possa fazer isso, e enquanto Trump estiver por perto, nenhum republicano o fará. Então, minhas energias agora estão sendo dirigidas para tentar criar programas de educação para criar uma nova elite democrata que não seja progressista de esquerda ou radical de esquerda, mas moderada e centrista.
Os conservadores e agora os “trumpistas” têm todas essas escolas de verão em todo o país, pagas por fundações, aonde jovens, seja no ensino médio ou na faculdade, vão por duas semanas, estudam grandes livros, encontram políticos e ingressam num pequeno mundo. Isso nunca aconteceu do lado democrata, e então estou interessado em buscar isso. Temos que começar do zero.

O ex-presidente Joe Biden é um democrata centrista. No entanto, seu governo não conseguiu impedir o retorno de Donald Trump ao poder. Quais foram os principais motivos desse fracasso? A inflação durante o governo Biden ou a política identitária seguida pelos setores mais esquerdistas do Partido Democrata?
Tudo isso foi importante, mas a primeira coisa a mencionar é a imigração. O governo Biden teve o instinto suicida de deixar mais e mais pessoas cruzarem ilegalmente do México para os EUA. O problema da imigração não é a imigração em si, mas o fato de que ela deixa, para as pessoas com mentalidade populista, mais visíveis todos os problemas pelas quais estão chateadas e acumulam raiva, como a perda de seus empregos, o multiculturalismo e uma sensação de desrespeito porque os imigrantes têm acesso a serviços sociais que pessoas da classe trabalhadora deixaram de ter. Biden não conseguiu ver isso. Seu declínio mental já era evidente no primeiro ano após sua eleição, e ele realmente entregou a maior parte do trabalho às pessoas do seu governo. Ele não prestou atenção à imigração e não a controlou. Kamala Harris também não viu problema com a imigração.
O senhor acha então que a chamada política identitária seguida pelo Partido Democrata teve um peso menor na derrota de 2024 do que na primeira eleição de Trump, em 2016, quando o senhor escreveu um artigo de grande repercussão, criticando o “identitarismo”?
Certamente, essa foi uma questão de fundo, mas os democratas tentaram, de alguma forma, “limpar” sua imagem. A convenção nacional que nomeou Kamala Harris como candidata presidencial não colocou ênfase na questão identitária e se esmerou em mostrar bandeiras americanas tremulando. Mas o partido ainda se organizava de acordo com grupos de identidade. Quando as pessoas que concorriam ao Congresso saíam à busca dos eleitores, ainda usavam essa linguagem.
Mais do que isso, desde que escrevi sobre os problemas da política identitária, ela se institucionalizou nas universidades e nas corporações e começou a parecer que seria uma característica permanente da vida americana. Quando eu conversava sobre isso com meus colegas democratas, eles diziam: “Você está exagerando só porque escreveu um livro sobre isso”. Mas desde que Trump foi reeleito, ele se concentrou em acabar com os programas de ação afirmativa em todas essas instituições e está sendo aplaudido pela direita e pela base de seu partido. Isso claramente importa para eles.

Quão séria o senhor considera a ameaça do governo Donald Trump à democracia nos EUA? O país está em um caminho para o autoritarismo, como alegam alguns críticos de Trump?
O perigo maior é que nos tornemos mais oligárquicos. Se você olhar para a foto das pessoas que estavam na posse de Trump, não havia nada além de bilionários atrás dele. Há também os favores especiais que estão sendo dados a Elon Musk e à Tesla. Trump está promovendo uma grande quebra da estrutura do Estado e isso vai gerar muito caos. Sobre a questão do autoritarismo, na verdade não saberemos a resposta para essa pergunta até vermos como os tribunais respondem. Vários casos estão percorrendo o sistema judiciário, mas ainda não sabemos como os juízes decidirão. Eventualmente, as principais questões terão que ser decididas pela Suprema Corte. Lá, podemos ter certeza de que dois dos juízes votarão com Trump, não importa o quê.
O senhor se refere aos juízes Samuel Alito e Clarence Thomas?
Sim.

Como vê a postura adotada até agora contra o governo Donald Trump pelo Partido Democrata, que parece estar passando por uma espécie de crise existencial?
Bem, há posturas e ações. Posturas, não estou interessado agora. Estou interessado em ação. Há muitas pequenas manifestações em todo o país, mas ninguém organizou uma marcha em Washington ainda, o que é muito surpreendente para mim. O problema dos democratas é que eles não têm um candidato presidencial forte ou um ex-presidente que possa aproveitar o momento.
E é desesperador que Chuck Schumer (que votou a favor de extensão do Orçamento apresentada pelos republicanos no Congresso americano) seja o líder da oposição no Senado. Muitas pessoas estão impulsionando Alexandra Ocasio-Cortez, a deputada de esquerda de Nova York, para assumir um papel de líder. Ela é jovem. Ela é enérgica. Ela é persuasiva em certas questões. Mas ela não é alguém que pode falar com a América média. Tê-la como líder significaria também desistir de uma política externa forte, porque ela, à sua maneira, é uma espécie de isolacionista.
Vê algum papel do Congresso na resistência a possíveis planos autoritários de Trump?
Não vejo. A resistência teria que vir dos republicanos. Os democratas podem votar contra Trump o quanto quiserem, mas se Trump tiver maioria, ele será protegido pelo Congresso. O que está faltando são precisamente vozes conservadoras que se preocupam com a República. Uma das minhas primeiras memórias políticas é o caso Watergate e assistir às audiências sobre as investigações no Congresso.
Havia, pelo menos,um terço dos republicanos, desde o início, que queriam que Richard Nixon renunciasse ou pensavam que havia problemas que deveriam ser investigados. E eles defenderam as instituições democráticas. Não há hoje um único republicano no Congresso que faria isso agora. A última foi Liz Cheney (ex-deputada por Wyoming, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney, que votou pelo impeachment de Trump após a invasão do Capitólio) , e ela foi expulsa do partido

Qual é a razão para tal domínio do Partido Republicano por Trump?
Trump entrou na eleição de 2016 por uma espécie de projeto de vaidade pessoal. Mesmo na noite da eleição, ele não esperava vencer. Melania (a primeira-dama) ficou chocada e deprimida quando ele venceu. Mas ele começou a soar como um demagogo clássico, um tribuno do povo, e um culto de personalidade se desenvolveu em torno dele. Então, essa coisa foi colocada no colo de Trump por uma grande parte do público americano. Então,não é só o que há de errado com Trump. A pergunta é: o que há de errado com os americanos?
Qual é sua resposta para essa pergunta?
Há muitas coisas erradas com a América, que se encontram em outros países, certo? O que é mais profundamente perturbador para mim e sobre o qual escrevi em meu livro “Ignorance and Bliss” (sem tradução no Brasil) é a falta de vontade das pessoas de aceitar a ciência, a razão e as evidências ao tomar suas decisões. Isso afetou sua visão da política e do engajamento político. Um número significativo de eleitores republicanos agora diz que ficaria feliz com um regime militar. Houve uma quebra do patriotismo e da responsabilidade cívica nesse grande grupo de pessoas brancas insatisfeitas. A podridão já estava lá, mas no momento em que Trump apareceu e foi eleito, as pessoas se alinharam atrás dele. Então, claramente, há alguma doença na alma americana agora.

Como professor de Columbia, em Nova York, como viu a decisão da direção da universidade de concordar com exigências da administração Trump para restaurar fundos de US$ 400 milhões cortados pelo governo, sob a alegação de que estudantes judeus não foram protegidos de assédio durante protestos contra a guerra na Faixa de Gaza. Viu uma capitulação a uma pressão indevida?
O governo Trump não cortou os fundos apenas pelo que aconteceu durante as manifestações. O caso inclui também o programa de estudos do Oriente Médio, iniciado por Edward Said(intelectual palestino, um dos fundadores dos estudos pós-coloniais) ,que se tornou um lugar hostil especialmente para estudantes israelenses que vieram estudar em Columbia após o serviço militar, devido a professores que eram muito antissionistas e traziam suas opiniões para a sala de aula. Isso tem sido um fato da vida em Columbia há muito tempo.
Na minha opinião, não cabe ao governo federal intervir nisso. Mas eles usaram a lei de direitos civis para justificar a intervenção. Imagine todo o aparato administrativo que foi criado para lidar com a discriminação no campus e para proteger estudantes negros.Todas essas regras podem ser usadas para proteger judeus e judeus israelenses, mas não estavam sendo aplicadas. Algo deveria ter sido feito internamente na universidade em relação a este departamento e essas manifestações, porque se houvesse um departamento onde estudantes negros se sentissem desconfortáveis em estudar, isso seria intolerável. Uma intervenção não deveria ter vindo do governo federal e isso, de fato, é uma capitulação.
A questão é saber se a universidade não tínha outra escolha a não ser capitular, porque não são apenas os US$ 400 milhões. Se não aceitasse os termos do governo, todo o financiamento de Columbia poderia ser interrompido, caso em que a universidade teria que fechar imediatamente. Então, é uma situação muito complicada.
O governo Trump está travando uma guerra contra as universidades de elite dos EUA e Columbia foi o primeiro alvo nessa guerra?
Sim. Há uma guerra total agora. JD Vance (o vice-presidente) disse uma frase, agora famosa: “A universidade é nosso inimigo”. Há um ativista político, Christopher Rufo, que tem sido o principal responsável por fazer com que políticos da direita usem todos os meios possíveis para punir universidades que, em sua opinião, se tornaram “woke” (termo em inglês, hoje usado de forma pejorativa para designar tentativa de imposição de ideias progressistas) . Há um esforço em duas frentes: um é tirar o financiamento de universidades que seriam progressistas; o outro é criar universidades separadas – há algumas na Flórida agora e em outros lugares – que seriam oficialmente não “woke”.

Como vê as consequências dessa mudança nos EUA para o futuro da democracia no mundo?
Há duas coisas a serem ditas. Uma é que Trump está fornecendo um manual para tipos ditatoriais em outros países imitá-lo. Os governantes muitas vezes se imitam. Quando Luís XIV construiu Versalhes, isso despertou muita inveja em outros reis, que passaram a tentar construir pequenas Versalhes em toda a Europa. Agora, líderes de outros países estão tentando imitar Trump - Bolsonaro no Brasil, especialmente.
Então, Trump é especialmente tóxico para o Brasil neste momento. Por outro lado, os americanos– especialmente aqueles que são conservadores – têm a impressão de que o mundo não faz nada além de reclamar da América. Eles simplesmente não estão cientes do fato de que, abaixo de algumas críticas superficiais, as pessoas querem vir para os Estados Unidos, não apenas por razões econômicas, mas porque gostam da ideia de autogoverno, de viver sob um Estado de direito, sem que a autoridade seja usada arbitrariamente contra eles.
Então, quaisquer que sejam as reclamações que possam ser feitas sobre a política externa americana na ONU e em outros fóruns internacionais, pessoas comuns em todo o mundo ainda veem nos EUA coisas que as inspiram. Isso não vai desaparecer da noite para o dia, mas é difícil crer que o efeito do governo Trump no resto do mundo será bom. Por outro lado, com a retirada dos EUA da Europa, os países europeus terão que encontrar seus recursos internos para serem exemplos de democracia e terem sua própria política externa. Algo novo e talvez bom saia disso.