Passado um ano e meio da posse do presidente Gustavo Petro, na Colômbia, a indústria do sequestro tem disparado no país sob o protagonismo de diversos grupos guerrilheiros, revivendo um dos maiores traumas históricos dos colombianos. E à medida que o governo negocia o cessar-fogo com movimentos como o ELN (Exército de Libertação Nacional), a popularidade do líder esquerdista despenca e o forte escrutínio coloca seu projeto de “Paz Total” em xeque.
Em 2016, presságios de paz e convivência normalizada tomaram conta da Colômbia. O acordo de paz entre o então presidente, Juan Manuel Santos, e o comandante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), Rodrigo Londoño “Timochenko”, havia marcado o início do fim de um sangrento conflito interno de mais de cinco décadas.
Contudo, sete anos depois, a situação entre o governo e os outros grupos armados se deteriorou gravemente, e os níveis de sequestros e extorsões aumentaram, com números que se assemelham aos de décadas mais obscuras. De acordo com um relatório publicado em dezembro pela Fundação Paz e Reconciliação (Pares), baseada em Bogotá, foram registrados 287 sequestros em todo o país entre os meses de janeiro e outubro de 2023, o que corresponde a um aumento de 73% em relação ao mesmo período de 2022. Estas são as cifras mais altas dos últimos oito anos.
O mesmo informe, que utiliza dados divulgados pelo Ministério da Defesa colombiano, indica que, entre agosto de 2022 — o mês em que Gustavo Petro assumiu a presidência da nação — e outubro de 2023, ocorreram 411 sequestros na Colômbia.
Luis Manuel Díaz, o pai do jogador de futebol colombiano Luis Díaz, que joga pelo clube britânico Liverpool, foi uma das vítimas recentes desta onda de crimes no país. O homem foi raptado por membros do ELN no final de outubro e mantido como refém durante 12 dias, até que uma negociação entre o governo e o alto escalão do grupo paramilitar o entregou a uma missão da ONU.
Isso abalou parcialmente a continuidade das negociações de paz, e o grupo se viu forçado a reconhecer o erro no sequestro, culpando a desorganização dos seus soldados.
O caso de Díaz comoveu o país, e a credibilidade do projeto de Paz Total do governo foi questionada pela população e por diversos membros do Congresso.
Paz dificultada
Durante sua campanha à Presidência, Petro promoveu seu interesse de criar um processo de negociação para acabar de forma pacífica com o conflito entre o Estado e os grupos armados que operam na nação. Gerada como slogan panfletário, a “Paz Total” virou posteriormente uma proposta e, subsequentemente, uma política pública oficial.
Em dezembro do ano passado, o projeto virou lei, e o governo passou a ampliar sua margem de manobra para iniciar as conversas com os rebeldes. Mas isso foi rejeitado por uma parte importante da cidadania colombiana, que não vê com bons olhos a iniciativa oficial.
O cenário do governo atual é bem diferente do de 2016. O país encontra-se dividido entre uma população que quer uma mudança progressista e outra parcela que prefere a manutenção de valores conservadores. Várias das diversas reformas promovidas por Petro têm sido duramente criticadas e rejeitadas no Congresso. Os guerrilheiros passaram a acelerar a produção da cocaína para financiar suas atividades. E as recentes ondas de violência têm mudado os sentimentos da população em relação à negociação da paz.
Com as novas políticas implementadas pelo governo atual, o panorama da violência mudou no país. O governo reduziu drasticamente as ações de combate aos grupos armados. E agora as guerrilhas tradicionais, as dissidentes de grupos como as Farc e os cartéis narcotraficantes como o Cartel del Norte del Valle, espalham a violência pelo país lutando entre si pelo controle de regiões estratégicas para o tráfico de drogas.
Segundo especialistas entrevistados pelo Estadão, esse cenário é bastante desfavorável para Petro, que encontra dificuldades para concretizar seu projeto de governo.
“O aumento de crimes como sequestro e extorsão aumentou a percepção de insegurança em nível nacional, o que prejudicou o apoio político e social à “Paz Total”, pois o desejo real de paz das organizações armadas é questionado, e cresce a ideia de que elas estão usando a negociação como meio de fortalecimento político, militar e econômico”, disse em entrevista ao Estadão Luis Fernando Trejos, profesor de Ciência Política da Universidad del Norte e reconhecido acadêmico colombiano no estudo do crime organizado.
Trégua estratégica
Diversas tréguas foram anunciadas entre o governo e o ELN desde dezembro de 2022, mas a mais recente, acordada em agosto, foi quebrada pelos guerrilheiros com o sequestro de Díaz. Apesar disso, as delegações dos países envolvidas na negociação entre as partes (incluindo o Brasil) garantiram a continuidade do processo. E em 17 de dezembro, no México, o ELN concordou em cessar os sequestros no final de janeiro do próximo ano, quando conclui o primeiro prazo do cessar-fogo bilateral.
A “suspensão das retenções econômicas”, como os paramilitares se referem ao sequestro de civis para a posterior solicitação de resgate é o avanço mais significativo até o momento nas negociações promovidas por Petro.
Nesta semana, o representante especial do secretário-geral da ONU na Colômbia, Carlos Ruiz Massieu, comemorou nas redes sociais o avanço nas negociações. “Meu reconhecimento ao governo colombiano e ao ELN, que, por meio do diálogo construtivo, da vontade política e com compromisso pela paz, superaram diferenças alcançando acordos importantes para a sociedade colombiana neste Quinto Ciclo de diálogos”, disse ele na rede social X.
Já defensor público da Colômbia, Carlos Camargo, declarou sua satisfação com o compromisso do grupo guerrilheiro, mas disse que o caminho para a paz ainda deve passar pela resolução de diversas questões. “Além de pôr fim ao sequestro, eles também devem abandonar recrutamento, uso e utilização de meninas, meninos e adolescentes, e entregar imediatamente todos os menores de idade que têm em suas fileiras”, declarou Camargo à mídia local.
“Essa decisão, no mesmo sentido da anunciada há alguns dias pelo autodenominado Estado-Maior Central das dissidências das Farc, nos enche de otimismo e nos permite reiterar aos outros grupos armados ilegais e organizações do crime organizado que também cessem o sequestro”, disse Camargo.
Para Trejos, a negociação é conturbada, e o governo está ainda encontra dificuldades para alcançar um acordo de paz substancial com o grupo. Segundo ele, os acordos de cessar-fogo (ou tréguas informais) “permitiram que os grupos armados interrompessem uma frente de confronto (com o Estado) e concentrassem seus esforços na expansão territorial e no ataque a seus concorrentes armados”.
“Na prática”, afirma o especialista, as tréguas “diminuíram a violência vertical (grupos armados contra o Estado) e aumentaram a violência horizontal (entre grupos armados), em um contexto em que a estratégia de segurança e defesa nacional ainda não foi implantada em todo o território”.
Elizabeth Dickinson acredita que as tréguas do início deste ano tiveram um papel significativo na expansão do poder dos grupos armados em algumas regiões do país. “Petro anunciou o cessar-fogo essencialmente sem nenhuma regra, sem protocolos, sem mecanismos de monitoramento, e isso foi realmente um presente tático para os grupos armados”, disse ela.
“O recuo nas operações militares não só beneficiou a expansão dos grupos, quanto [permitiu] sua consolidação. Então, hoje, o número de municipalidades que são afetadas pela presença armada é muito maior do que era no início da presidência. Mas [esta presença] está também mais consolidada, é mais profunda, está mais profundamente enraizada na sociedade”, afirmou.
Para a analista do Crisis Group, o ELN se destaca porque hoje é o único grupo com redução no território e que não está perdendo no confronto com o Estado, mas para outros grupos armados. “O ELN está sob pressão, mas o que é interessante nisso é que a pressão não está vindo do Estado”, afirmou.
Busca por novas fontes de financiamento
De acordo com a pesquisa da Pares, o ELN é o maior responsável pelos sequestros na Colômbia desde 2022. Enquanto o governo recua no seu papel de combate aos grupos armados, o aumento no número de sequestros também está diretamente relacionado com a crise no financiamento desse tipo de grupos.
Com a produção de drogas como principal atividade financeira, os grupos paramilitares colombianos se viram afetados pela crise do preço dos produtos derivados da folha da coca. De acordo com o Escritório de Washington para Assuntos da América Latina (WOLA), nos primeiros seis meses do ano anterior, os compradores de folha de coca e pasta de coca — que servem para o processamento da cocaína — pararam de adquirir os produtos na região de Catatumbo, no nordeste da Colômbia, perto da fronteira com a Venezuela.
O colapso do mercado da coca continuou neste ano. Em Nariño — estado ao sudoeste da Colômbia que serve como base de exportação da cocaína para o Equador, e subsequentemente para a Europa —, por exemplo, o preço do alqueire de folhas de coca recuou de cerca US$ 20 para US$ 7. Em regiões do norte do país, o preço da pasta de coca caiu 30% em um ano.
O colapso desse mercado se deu, em parte, pela superprodução da folha de coca. E tanto os grupos guerrilheiros quanto os cartéis acabaram se voltando para a indústria dos sequestros, seguida de extorsões, como outra fonte de renda.
Colombianos querem resultados imediatos
Um acordo com o ELN para o fim dos sequestros, segundo negociadores do grupo, passa por um dos pontos mais sensíveis para os colombianos: a criação de condições do governo para o financiamento dos guerrilheiros após o processo de paz. Mas especialistas afirmam que a população não tem suficiente fé no compromisso de paz dos grupos armados. Por isso, propostas como essa tendem a ser rejeitadas pelo país.
“Na Colômbia, há muito pouca paciência em relação ao assunto da paz. As pessoas querem resultados imediatos”, disse o cientista político colombiano Mauricio Jaramillo Jassir em entrevista ao Estadão.
“Então, eu acredito que uma das políticas mais impopulares de Petro tem sido a da Paz Total. As pessoas a interpretaram como uma espécie de condescendência, demasiada permissividade com as guerrilhas, como se o governo tivesse entregado muito e recebido muito pouco em troca. Penso que não tem suficiente apoio”, afirma ele.
“Também a imagem das guerrilhas na Colômbia está muito desgastada, as pessoas não acreditam que elas tenham vontade de paz, e há muita polarização, sobretudo nas cidades do interior. Onde há mais riqueza, rejeita-se a Paz Total, mas na periferia, onde historicamente tem sido sentida mais a guerra, há mais apoio à Paz Total.”
Segundo a tradicional pesquisa de opinião colombiana Invamer Poll, que mede o pulso da opinião pública do país há 40 anos, a imagem do presidente Gustavo Petro desabou na Colômbia no seu primeiro ano e meio de poder. 66% dos entrevistados desaprovam a gestão do presidente e somente 26% dos participantes da pesquisa disseram que a aprovavam. No início da sua gestão, 56% dos entrevistados aprovavam seu plano de governo.
Mas o governo não planeja desistir da Paz Total. “Espera-se que o governo consiga pressionar o ELN a suspender definitivamente todos os sequestros, pois até agora o compromisso tem sido com sequestros por resgate e em caráter temporário”, disse Trejos ao Estadão. “Por outro lado, é necessário começar a falar sobre a deposição de armas e a justiça transicional”, afirmou o especialista.
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