Argentina pode mergulhar em espiral de incertezas; leia coluna de Lourival Sant’Anna

Provável renúncia de Massa deve criar vazio político depois que presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, saíram de cena

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colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna

A Argentina pode mergulhar esta semana em uma grande espiral de incertezas econômicas e políticas. A reunião entre o presidente eleito, Javier Milei, e o atual, Alberto Fernández teve de ser cancelada. Isso porque Fernández e o ministro da Economia, Sergio Massa, derrotado por Milei, não querem arcar com o custo político da maxidesvalorização do peso, demandada pela presidente eleito.

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Massa falou em renunciar na noite de domingo, quando a reunião foi acertada entre Milei e Fernández. Parece ter recuado nessa segunda-feira. O governo estudava estender o feriado de segunda, Dia da Soberania Nacional, para essa terça-feira, para ganhar mais um dia de mercado fechado, já que os agentes econômicos não sabem como precificar o peso argentino.

Milei, por sua vez, anunciou “mudanças drásticas” em seu discurso de vitória: “A situação da Argentina é crítica. Não há lugar para fraquezas e meias tintas”. O presidente eleito não voltou a falar de dolarização da economia. Mas a combinação de sua vitória com a saída de Massa da Economia pode levar a um derretimento ainda mais agudo do peso argentino e a uma marcha rumo à hiperinflação.

A “licença” de Massa, como deve ser apresentada, até a posse de Milei, prevista para 10 de dezembro, cria um vazio político. O presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, já haviam saído de cena nos últimos meses, para não atrapalhar Massa, diante de sua profunda impopularidade e do desastre econômico de seu governo, com uma inflação de mais de 140%.

Presidente eleito Javier Milei discursa após vitória no segundo turno. Foto: AP / Rodrigo Abd

A situação lembra a renúncia do então presidente Raúl Alfonsín e a posse de seu sucessor Carlos Menem em julho de 1989, cinco meses antes da data prevista, em meio a uma hiperinflação, lembra o cientista político argentino Eduardo Viola.

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A emergência econômica e o vazio de poder reduzirá ainda mais o já escasso tempo que Milei tem para organizar uma base no Congresso que lhe garanta governabilidade. Seu partido, Liberdade Avança, elegeu apenas 38 dos 257 deputados e 8 dos 72 senadores.

Para ampliar a base de seu governo, ele está contando com o apoio da frente Juntos pela Mudança, parcialmente liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri e pela adversária de Milei no primeiro turno, Patricia Bullrich, que ficou em terceiro lugar. Por isso Milei agradeceu no discurso da vitória a ambos por, “de forma desinteressada e em ato de grandeza, defender a mudança de que a Argentina precisa”.

Se estivessem efetivamente “juntos”, os deputados dessa frente, com 93 cadeiras, seriam em número suficiente para garantir maioria absoluta a Milei na Câmara, embora não no Senado. Entretanto, existem partidos dentro da frente, como o do prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que estão mais ao centro e não gostam de Milei.

Por outro lado, na Argentina as províncias dependem das verbas do governo central. Há uma forte tradição de os governadores fecharem acordos com o presidente e garantirem apoio das bancadas provinciais às propostas de interesse do governo central, depois de árduas negociações.

Além disso, o peronismo, esse movimento heterogêneo ao qual pertencem Massa, Fernández e Kirchner, sai profundamente debilitado dessa derrota. Até ele se reagrupar e encontrar novos líderes, talvez não esteja suficientemente armado para tentar inviabilizar o novo governo.

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Milei era o favorito nas pesquisas. O que ninguém previa, nem mesmo a equipe de Milei, era a margem de 12 pontos porcentuais. Esse resultado mostra que o eleitorado de Bullrich, que teve 24% no primeiro turno, migrou em massa para Milei no segundo. O presidente eleito teve 30% no primeiro turno e 56% no segundo.

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Isso dá a ela e a Macri, líderes do PRO (Proposta Republicana) potencialmente grande ascendência sobre o novo governo. Esse poderia ser um fator moderador da gestão Milei. Bullrich apresentou na campanha uma plataforma de reformas para cortar gastos públicos. É consenso entre economistas sérios que a Argentina precisa disso com urgência. Por outro lado, Bullrich e Macri não acreditam nas medidas mais radicais, como a dolarização. Embora Macri tenha um trauma com o chamado gradualismo, que o levou a só aumentar os juros quando era tarde demais e a inflação estava sem controle.

Entre a recusa do gradualismo por Macri e Bullrich e a dependência de Milei do apoio da direita e do centro, pode ser que o presidente eleito encontre um ponto de equilíbrio e moderação. Mesmo nesse caso, as tarefas que ele tem pela frente são hercúleas.

As reformas necessárias incluem o corte de subsídios para serviços e produtos essenciais, como energia. Os gastos excessivos ao longo de décadas provocaram a alta dos preços e o empobrecimento da população que por sua vez aumentou a dependência desses subsídios, em um círculo vicioso. Rompê-lo será doloroso.

Milei pode não ter uma base sólida no Congresso, mas assume com o apoio de 14,3 milhões de votos, 3 milhões a mais que Massa. O presidente eleito venceu em 21 das 24 províncias do país, embora tenha sido derrotado na mais importante, Buenos Aires. Esse capital político pode significar também apoio nas ruas, quando enfrentar a previsível resistência a medidas impopulares por parte dos sindicatos, controlados pelo peronismo.

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Mas essas medidas afetarão também os seus seguidores, e serão um teste da confiança deles. Assim, Milei terá de demonstrar enorme habilidade para negociar e ceder.

Apoiadores de Milei reunidos em frente à sede da campanha celebram vitória no segundo turno. Foto: AP / Matias Delacroix

Num certo sentido, essa foi uma condição para vencer o segundo turno, e ele venceu. No debate, há uma semana, Massa foi tão agressivo e incisivo, questionando a sanidade mental de Milei e o colocando contra a parede em temas como o corte de subsídios e as privatizações, que o agora presidente eleito teve de se desmentir e moderar suas propostas. Com isso, Massa acabou ajudando involuntariamente Milei a garantir os votos que o levaram a essa vitória de 56% a 44%.

Essa flexibilidade sofrerá testes muito maiores a partir de agora. Algo parecido se aplicará às relações com o Brasil. Milei chamou o presidente Lula de “ladrão” e “comunista” e disse que não se reuniria com ele. O presidente eleito é a favor do livre comércio, e portanto da redução drástica da Tarifa Externa Comum do Mercosul. Já Lula é protecionista.

O embaixador do Brasil em Buenos Aires, Julio Bitelli, contou que fez contatos com Diana Mondino, cotada para ministra das Relações Exteriores de Milei. E que a mensagem é de que eles querem “modernizar o Mercosul”, algo a que o governo Lula não se oporia, segundo o embaixador. “Vai haver discussão mais profunda entre os sócios do Mercosul para ver qual caminho seguir.”

Depois de Massa admitir a derrota, a conta do presidente Lula no X (antigo Twitter) parabenizou “as instituições argentinas pela condução do processo eleitoral”, o que não deixa de ser uma estocada a Milei, que antes da vitória questionava a lisura do processo.

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Lula desejou “boa sorte e êxito ao novo governo”, sem citar Milei, e colocou o Brasil “à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos”. O momento exige flexibilidade de todos os lados.

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