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Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Javier Milei é reflexo da atração por candidatos anti-establishment em tempos de crise

Presidenciável argentino usa velha retórica ‘nós contra eles’ e demonização de outros governos como estratégia para mobilizar seus seguidores

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Foto do author Oliver  Stuenkel

“Não vamos nos alinhar com os comunistas.” Foi assim que Javier Milei, líder nas pesquisas menos de um mês antes das eleições presidenciais argentinas, explicou por que ele, se eleito, rejeitaria o convite ao país para integrar o Brics. Milei já chamou Lula, presidente do parceiro comercial mais importante da Argentina, de “socialista com vocação totalitária” e diz que a China, o segundo parceiro comercial mais importante, de “governo assassino”. Para completar, descreveu o presidente Biden, mandatário do terceiro maior parceiro comercial da Argentina, como “socialista”, e o chileno Gabriel Boric, líder do quarto parceiro mais importante, de “comunista”.

Milei ataca lideranças internacionais a fim de se cacifar como outsider e suposto “representante do povo”. Ignora, sem medo, as regras da diplomacia, que está, na visão simplista do populismo antissistema, controlada por elites desconectadas da população. Os ataques a Xi Jinping e a Joe Biden, os líderes mais poderosos do planeta, são utilizados, na estratégia do candidato argentino, como provas de que Milei tem cojones para peitar a elite responsável pelos problemas que os argentinos estão enfrentando. Da mesma forma, quando Bolsonaro atacava Xi Jinping — líder do maior parceiro comercial do Brasil —, apoiadores vibravam, por acreditar que a ofensa seria uma espécie de confirmação de que o candidato mudaria as coisas de verdade. A famosa retórica ‘nós contra eles’ de Milei também isenta os apoiadores de qualquer responsabilidade pela crise: os seguidores do político argentino não precisam se culpar; o problema está na “casta” ou nas supostas ameaças internacionais, como o comunismo, o globalismo e o climatismo.

O candidato a presidência da Argentina, Javier Milei, gesticula durante comício em Buenos Aires, Argentina  Foto: Luis Robayo/AFP

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Milei se projeta como novidade e exibe uma série de ideias radicais e até contraditórias, produzindo amplos debates sobre o candidato ser libertário, de extrema direita ou anarcocapitalista, como gosta de se descrever. É negacionista climático, quer fechar o Ministério da Educação e o Banco Central, defende o “casamento gay”, mas quer criminalizar o aborto. Porém, a essência do fenômeno Milei pouco tem que ver com uma onda libertária ou conservadora, mas simplesmente com o sentimento “Que se Vayan Todos” e o desejo de mostrar o dedo do meio não apenas ao governo, mas a um sistema político em geral – a mesma sensação que tem levado, há décadas, outsiders ao poder na América Latina, como Abdalá Bucaram no Equador em 1996, Hugo Chávez na Venezuela em 1998, Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, Nayib Bukele em El Salvador em 2019, e Pedro Castillo no Peru em 2021. As consequências são quase sempre desastrosas e muitas vezes representam graves ameaças à democracia.

Se Milei sair vitorioso e assumir o poder em dezembro, a estratégia dos principais parceiros da Argentina, onde seja — Pequim, Washington, Santiago ou Brasília — deverá ser de contenção de danos. A relação bilateral mais afetada por uma presidência de Milei será, sem dúvida, com o Brasil: a chegada de Milei à Casa Rosada enterraria parte significativa das ambições regionais do presidente Lula, já frustradas depois do fracasso da tentativa brasileira de relançar a Unasul em maio. Além disso, a vitória de Milei elevaria o risco de convulsões sociais e representaria ameaça à própria democracia argentina, ainda uma das mais consolidadas da região – com consequências negativas para a imagem global da América do Sul. Apesar da postura anti-China do candidato, a diplomacia chinesa tem uma vantagem: a imprensa do país pode filtrar as declarações mais polêmicas de Milei e manter uma relação produtiva com a Argentina – diferentemente do governo Biden, uma vez que as posturas mais polêmicas de Milei podem mobilizar a sociedade civil nos EUA contra o argentino e aumentar o custo político de o presidente americano investir na relação bilateral. O mesmo aconteceu com Bolsonaro: apesar de ser anti-chinês, a relação do Brasil com os EUA, no fim de seu mandato, estava mais desgastada do que a relação com a China.

Diante dos profundos desafios econômicos e da incapacidade de numerosos governos argentinos, tanto de esquerda quanto de direita, de garantirem uma melhora sustentável, a maior surpresa talvez não seja que alguém como Milei esteja perto de se tornar presidente, mas que tenha demorado tanto tempo para isso acontecer. Quando o caos econômico adquire proporções que levam os eleitores a sentir que não há mais nada a perder, cria-se um terreno fértil para supostos salvadores da pátria.

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Opinião por Oliver Stuenkel

Analista político e Professor de Relações Internacionais da FGV-SP

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