Com a morte da rainha Elizabeth II, ex-colônias repensam laços antigos

Debate sobre violência praticada pelo Império Britânico em colônias e demanda por prestações de conta ganham força após sepultamento da monarca

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Por Damien Cave
Atualização:

ILHAS SALOMÃO — Millicent Barty passou anos tentando descolonizar as Ilhas Salomão registrando a história oral de seu país e promovendo a cultura melanésia. Seu objetivo: priorizar o conhecimento local; e não apenas o que foi trazido pelo Império Britânico. Na manhã da sexta-feira, quando indagada a respeito da morte da rainha Elizabeth II, ela suspirou e fechou a cara. Seus olhos pareciam conter uma torrente gélida de emoções complicadas enquanto ela recordou de um encontro que teve com a rainha em 2018, durante um programa para jovens líderes da Commonwealth.

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“Eu amo a rainha”, afirmou ela, diante de uma xícara de café, na ilha Salomão de Guadalcanal, no Pacífico, a 15 mil quilômetros do Palácio de Buckingham. “Isso é realmente lamentável.”

Conciliar uma rainha aparentemente benevolente com o legado frequentemente cruel do Império Britânico é o dilema no centro da influência britânica pós-imperial. A família real britânica reinou sobre mais territórios do que qualquer outra monarquia na história, e entre os países que jamais se desvincularam completamente da coroa, a morte de Elizabeth acelera um impulso para acertar as contas com o passado de maneira mais plena e extirpar vestígios remanescentes do colonialismo.

Príncipe William revisa guarda de honra das Ilhas Salomão em visita realizada em 2012. Morte da rainha Elizabeth II reacendeu discussão sobre o papel da monarquia britânica nas ex-colônias Foto: Daniel Munoz / Reuters

“A monarquia morre com a rainha?”, indagou Michele Lemonius, que cresceu na Jamaica e recentemente graduou-se em um doutorado no Canadá com foco em violência entre jovens em ex-colônias escravocratas. “É um momento de diálogo. Chegou a hora de conversar.”

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Muitas ex-colônias britânicas permanecem unidas na Commonwealth, uma associação voluntária de 56 países. A vasta maioria se conecta por suas histórias em comum, com sistemas jurídicos e políticos similares, e a entidade promove intercâmbios em áreas como esporte, cultura e educação. Especialmente para integrantes menores e mais novos, incluindo alguns países africanos que não foram colônias britânicas e aderiram mais recentemente, o grupo pode conferir prestígio, e ainda que a Commonwealth não possua um acordo comercial formal, seus membros mantêm laços comerciais mais intensos do que a média.

A maioria dos integrantes da Commonwealth é de repúblicas independentes, sem laços formais com a família real britânica. Mas 14 são monarquias constitucionais, que mantiveram a monarca britânica enquanto chefe de Estado, em um papel principalmente simbólico.

Nesses países, a monarquia é representada por um governador-geral que possui deveres cerimoniais, como receber juramentos de novos parlamentares, apesar de ter havido momentos em que suas ações se provaram contenciosas — um governador-geral destituiu o ex-primeiro-ministro australiano Gough Whitlam, em 1975, para pôr fim a um conflito político. E mesmo que o príncipe Charles tenha sido proclamado o novo rei de todos esses “reinos e territórios”, em muitos deles a morte da rainha foi recebida por chamados mais ousados pela independência completa.

No sábado, o primeiro-ministro de Antígua e Barbuda anunciou planos para organizar um referendo a respeito de transformar o país em república daqui a três anos. Em Austrália, Bahamas, Belize, Canadá e Jamaica, debates antigos a respeito dos laços de suas democracias com um reino distante começaram a se aquecer novamente. Do Caribe ao Pacífico as pessoas perguntam: por que juramos lealdade a um monarca em Londres?

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Historiadores especialistas em colonização descrevem esse fenômeno como um acerto de contas vencidas, após um reinado de sete décadas de uma rainha tão diminuta em estatura quanto no comando de sua função e que sorriu tanto para suavizar a imagem de um império que cometeu atos de violência com frequência ao longo do seu declínio.

“A rainha, de certa maneira, garantiu que todo esse quebra-cabeças permanecesse unido pelo tempo que ocupou o trono”, afirmou o historiador Mark McKenna, da Universidade de Sidney. “Mas não estou certo de que ele continuará montado.”

Aos 73 anos, seu filho, o rei Charles III, tem pouca chance de alcançar o poder que a rainha deteve como formadora de opinião global — tarefa que ela assumiu ainda jovem, em outro tempo.

Indianos prestam homenagem à rainha diante de fotografia exposta no Memorial de Kolkata, na Índia, nesta segunda-feira, 19 Foto: Dibyangshu Sarh / AFP

Seu reinado começou no exterior, quando seu pai morreu em 1952. Elizabeth tinha 25 anos e viajava pelo Quênia imbuída da missão de facilitar a transição do regime colonial para a era seguinte. No Natal de 1953, em um discurso em Auckland, na Nova Zelândia, ela enfatizou que sua ideia de Commonwealth “não se assemelha em nada aos impérios do passado”. “É uma concepção inteiramente nova, construída sobre qualidades elevadas do espírito humano: amizade, lealdade, desejo de liberdade e paz”, afirmou ela.

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Elizabeth visitou quase 120 países, reuniu-se com mais líderes do que qualquer papa e com frequência empreendeu giros de milhares de quilômetros ao redor do mundo, tudo isso enquanto colônia após colônia dava adeus à antiga Brittania após a 2.ª Guerra.

Índia e Paquistão tornaram-se nações independentes em 1947 e declararam-se repúblicas nos anos 50. A Nigéria fez o mesmo na década seguinte. Sri Lanka tornou-se república em 1972, e o país a romper os laços com a coroa mais recentemente foi Barbados, no ano passado.

Mesmo em países com cicatrizes profundas do colonialismo, a rainha com frequência pareceu beneficiar-se de uma crença de que ela era capaz de se distinguir em relação ao período do jugo britânico, por vezes cruel. Pouca culpa foi atribuída a Elizabeth quando as autoridades britânicas no Quênia torturaram rebeldes Mau Mau nos anos 50 ou quando as forças britânicas que combateram insurreições anticoloniais usaram táticas similares contra civis no Chipre, em 1955, e em Áden, no Iêmen, em 1963.

Rainha Elizabeth II e o primeiro-ministro de Malta, Lawrence Gonzi, assistem apresentação de dança durante cerimônia da Commonwealth na capital Valeta, no dia 25 de novembro de 2005  Foto: Chris Helgren / Reuters

“Ela era vista meramente como uma monarca mulher”, afirmou a historiadora Sucheta Mahajan, da Índia, onde a rainha também era bem-recebida após décadas de exploração colonial dos britânicos. “Nada mais, nada menos que isso.”

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Décadas depois, Elizabeth ainda foi vista por muitos como um símbolo unificador de valores justos. Mesmo em países em que o impulso republicano crescia, as pessoas acabavam se afeiçoando à rainha.

“Ela não era apenas a monarca constitucional do país em que nasci”, afirmou a executiva de relações públicas Sarah Kirby, de 53 anos, nas Bahamas. “Para mim, ela também foi uma representação impressionante do que uma mulher é capaz de fazer e de como servir seu país com honra e também se tornar a espinha dorsal do país.”

Mas conforme a rainha envelheceu e se apartou do público — e o mundo empreendeu uma análise mais ampla dos pecados do colonialismo, ficou mais difícil manter uma distância benigna entre a monarquia e o racismo e outros atos do império. Em ex-colônias por todo o mundo, demandas por uma prestação de contas plena a respeito da dor, do sofrimento e das riquezas saqueadas que colaboraram para a enorme fortuna da família real têm aumentado.

Em novembro, na cerimônia que marcou o fim do status da rainha enquanto chefe de Estado de Barbados, Charles reconheceu “a deplorável atrocidade da escravidão” na ex-colônia britânica.

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O então príncipe Charles em cerimônia de recepção em Bridgetown, Barbados, em 29 de novembro de 2021. Visita foi marcada pelo reconhecimento da violência praticada ao longo da história pelo Império Britânico Foto: Toby Melville/Reuters

Na Jamaica, em março, o príncipe William e sua mulher, Kate, foram recebidos com protestos que exigiam um pedido de desculpas e reparações. E em agosto, o presidente Nana Akufo-Addo, do Gana, que conquistou sua independência do Reino Unido em 1957 — pediu que as nações europeias paguem reparações para a África em razão do comércio escravagista, que sufocou o “progresso econômico, cultural e psicológico” do continente.

E ainda assim, tentar descolonizar — libertar um país da influência dominante de uma potência colonizadora — é em si um trabalho de magnitude imperial. O retrato da rainha está cunhado nas moedas de muitos países, e seu nome batiza hospitais e estradas. Instituições como o Escotismo criaram gerações que juraram lealdade à rainha, e sistemas educacionais de muitos países ainda priorizam o modelo colonial britânico.

“Pós-colonial não significa descolonizado”, afirmou Lemonius, que administra projetos comunitários na Jamaica, incluindo um programa com foco em esportes para meninas. “O olhar ainda é voltado para a monarquia, para o mestre. Uma vez que desviamos a atenção disso por tempo suficiente, temos tempo para começar a olhar para nós mesmos e nos movimentar no sentido da reconstrução.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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