Com avanço da esquerda, crescem o autoritarismo e a miséria na América Latina

Na última reportagem da série sobre a ascensão do grupo, o ‘Estadão’ apresenta uma síntese do conteúdo publicado ao longo das últimas semanas e mostra como o domínio da esquerda deverá moldar o futuro da região, inclusive o do Brasil

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Foto do author José Fucs

No dia 4 de setembro, logo após a divulgação dos primeiros resultados do referendo sobre o projeto da nova Constituição do Chile, que já indicavam a vitória do “não”, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, usou sua conta no Twitter para fazer um comentário sobre a consulta.

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“Pinochet reviveu”, disse Petro, em referência ao general Augusto Pinochet, que comandava uma ditadura militar quando a atual Carta chilena – já livre do “entulho autoritário” do passado – entrou em vigor, em 1980. “Só se as forças democráticas e sociais se unirem, será possível deixar para trás um passado que mancha toda a América Latina e abrir as alamedas democráticas”, acrescentou.

O comentário de Petro, um ex-guerrilheiro do M-19 que levou a esquerda ao poder na Colômbia pela primeira vez na história, não é apenas um exemplo bem acabado da percepção de muitos políticos e militantes do grupo em relação ao referendo, que inundou as redes sociais na ocasião. Ele também revela muito da mentalidade messiânica e do modus operandi da esquerda latino-americana, que, apesar do discurso em defesa da democracia, apresenta traços autoritários e se coloca como se tivesse o monopólio da virtude na sociedade.

“Para a esquerda da América Latina, democracia só existe quando eles ganham. Lamentável exemplo do presidente da Colômbia”, afirmou a economista Marina Helena Santos, ex-diretora de Desestatização do Ministério da Economia e do Instituto Millenium, um centro de estudos de políticas públicas e de divulgação das ideias liberais, em seu perfil no microblog. “Ao ver a repercussão da escolha feita pelos chilenos, é possível constatar: os progressistas amam a democracia. Só não suportam a opinião do povo”, disse o deputado federal Paulo Eduardo Martins (PL-PR), em sua conta na rede.

Esta reportagem, que encerra a série do Estadão sobre o avanço da esquerda na América Latina, traz uma síntese do conteúdo publicado ao longo das últimas semanas e mostra como a ascensão do grupo deverá moldar o futuro da região – inclusive o do Brasil, se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT ao Palácio do Planalto, ganhar mesmo as eleições, como apontam as pesquisas.

No total, foram cinco reportagens especiais, que abordaram os casos da Argentina, do Chile e da Nicarágua, além do cenário geral e desta avaliação final, e mais seis entrevistas exclusivas com analistas do Brasil e do exterior que acompanham com lupa os acontecimentos na América Latina. A série incluiu, ainda, a história de um imigrante venezuelano que trabalha numa pousada no sul de Minas e dá nomes de políticos latino-americanos aos animais do empreendimento – o burro recebeu o nome de “Maduro”, em “homenagem” ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro.

Como mostraram as reportagens e entrevistas da série, disponíveis na íntegra no portal do Estadão, um dos principais riscos trazidos pelo avanço da esquerda é justamente o da escalada do autoritarismo. Antes restrito a Cuba, o autoritarismo se espalhou pela Venezuela, com o “socialismo bolivariano” implementado por Hugo Chávez (1954-2013) e mantido por Maduro, e para a Nicarágua, sob o comando do ex-líder sandinista Daniel Ortega.

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‘Aparelhamento’ do Estado

Segundo o historiador Alberto Aggio, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), o exemplo da Revolução Cubana, de 1959, ainda alimenta o imaginário da esquerda latino-americana. Hoje, porém, a estratégia para alcançar o poder mudou. Em vez da guerrilha, que já seduziu Petro e outros líderes esquerdistas da região que agora se apresentam como democratas, a ideia é aproveitar as regras da chamada “democracia liberal” para chegar ao governo e depois exterminá-las, com o objetivo de se perpetuar no poder, como aconteceu nos casos da Venezuela e da Nicarágua.

Hoje, até as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), de orientação marxista-leninista, que defendiam a adoção de um regime socialista por meio da luta armada, transformaram-se em partido político, seguindo uma sugestão feita por Lula, em 2009. De acordo com o petista, seria “muito mais fácil” para as Farc chegar ao poder através de um partido e da disputa de eleições. “Se índio e metalúrgico podem chegar à Presidência, por que alguém das Farc, disputando eleições, não pode?”, afirmou Lula na época.

Para ganhar o apoio de eleitores de centro, centro-esquerda e até de centro-direita, sem os quais não conseguiriam vencer as eleições em países em que as instituições democráticas mantêm seu vigor, muitos líderes de esquerda se apresentam de forma mais ponderada nas campanhas, mas acabam seguindo uma agenda mais radical, ao assumir o comando.

“É sempre assim: antes das eleições, eles tentam se mostrar mais moderados, dizem que não são de esquerda, para conquistar os eleitores de centro. Eles sabem que os esquerdistas vão votar neles de qualquer jeito, mas tentam atrair as pessoas do centro”, afirma o historiador e sociólogo alemão, Rainer Zitelmann, autor do livro O capitalismo não é o problema, é a solução (Ed. Almedina), lançado no início do ano no Brasil. “Só que, depois, quando as pessoas se dão conta de que eles não eram tão moderados como imaginavam, não dá mais para voltar atrás.”

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Na Venezuela e na Nicarágua, com o “aparelhamento” do Estado e o controle do Judiciário e do Legislativo, promovidos dentro das regras do jogo, os governantes conseguiram mudar a legislação eleitoral para favorecê-los. Eles também restringiram as liberdades de expressão e de associação, colocaram os partidos de oposição na ilegalidade, deflagraram uma perseguição implacável a seus críticos e confiscaram o patrimônio de quem estava pelo caminho. Tudo sob um manto de aparente legalidade, mantida sob a mira das forças de segurança e de grupos paramilitares que atuam em defesa do regime.

“O governo controla todas as liberdades dos cidadãos, com a aprovação de leis que limitam os direitos individuais e com a realização de ações de repressão pela polícia e por grupos paramilitares, para deixar as pessoas com medo”, diz a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra, pesquisadora associada do Instituto de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas (Ieepp), hoje vivendo no exílio, na Costa Rica.

Mentalidade de esquerda

Embora as ditaduras de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua representem a face mais autoritária da esquerda latino-americana, os sinais de arbítrio se espalham, em maior ou menor grau, por outros países da região em que o grupo chegou ao poder. Na Bolívia, o atual mandatário, Luis Arce, pupilo do ex-presidente Evo Morales, parece disposto a superar o mestre, um aliado de primeira hora do “socialismo bolivariano” pregado por Chávez e incorporado por Maduro.

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Aproveitando-se do controle exercido sobre o Judiciário, Arce atuou para conseguir a condenação da ex-presidente interina Jeanine Añez a dez anos de prisão num julgamento “de fachada”, sob a acusação de ter tramado um “golpe” contra Morales. “A Bolívia não pode mais ser chamada de democracia”, diz o escritor Alvaro Vargas Llosa, co-autor do livro Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, no qual aborda com fina ironia a atuação e a mentalidade da esquerda na região.

No México, sob a direção do esquerdista Andrés Manuel López Obrador, o governo também vem tomando iniciativas para restringir a liberdade de expressão e controlar o Judiciário. No Chile, o presidente Gabriel Boric, da esquerda radical, já disse que não abre mão da mudança constitucional e pretende levar adiante um novo processo Constituinte, mesmo após a rejeição do projeto da nova Carta, do qual era um defensor entusiasmado, pela população.

Chilenos comemoram vitória do 'rechazo' no referendo sobre a nova Constituição. Foto: Martin Bernetti/ AFP

Mesmo no Brasil, nas gestões do PT, que agora pretende voltar ao poder com a eleição de Lula, houve tentativas de regular a imprensa, perseguição de jornalistas que criticavam o governo nas redes sociais e um “aparelhamento” sem precedentes do Estado, com a nomeação de milhares de servidores ligados à sigla para a administração direta e as estatais.

Com o objetivo de controlar o Legislativo, reforçar os cofres partidários e ampliar o patrimônio pessoal dos envolvidos, prosperou um esquema de corrupção em “escala industrial”. Até a ideia de acabar com o DEM, então o maior partido de centro-direita do País, foi ventilada nos governos do PT. “Precisamos extirpar o DEM da política nacional” declarou Lula, sem cerimônia, num comício da então candidata do partido à Presidência, Dilma Rousseff, em 2010.

Ainda que existam diferenças significativas entre os líderes de esquerda latino-americanos, eles costumam agir em bloco, para reforçar politicamente a posição do grupo. Nessas horas, mesmo os governantes ligados à chamada “esquerda democrática” costumam “passar pano” para os ditadores regionais e para os “aspirantes” a ditadores, como a Bolívia, que estão seguindo a mesma trilha.

Com exceção de Boric, do Chile, que tem se mostrado um crítico da política de direitos humanos em Cuba, na Venezuela e na Nicarágua, os demais mandatários de esquerda na América Latina, incluindo os presidentes Alberto Fernández, da Argentina, Obrador, do México, e Xiomara Castro, de Honduras, costumam evitar qualquer reprovação aos governos totalitários da região.

No Brasil, embora Lula esteja evitando declarações de apoio aos regimes autoritários de esquerda, para não abrir flancos para críticas em meio à campanha eleitoral, ele sempre deu seu apoio a eles, escorando-se no princípio da “autodeterminação dos povos”. Poucos analistas duvidam de que Lula manterá a mesma postura caso ganhe as eleições e até estimular as ações conjuntas do grupo. “Você não pode dizer que não tem democracia na Venezuela”, disse em entrevista à emissora de TV portuguesa RTP, em abril do ano passado. “Precisamos parar de condenar Cuba e condenar um pouco mais o bloqueio dos Estados Unidos. Se não tivesse o bloqueio, Cuba poderia ser uma Noruega, uma Holanda, uma Suíça”, afirmou em entrevista ao jornal espanhol El País, em novembro.

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No campo da economia, movida pelo propósito nobre de reduzir a desigualdade, a esquerda latino-americana não conseguiu promover o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida da população. Ao contrário. Conseguiu apenas “socializar” a miséria, ainda que, durante o percurso, tenha conseguido dar alguma sensação de melhora na vida dos cidadãos, com gastos sem lastro de recursos públicos e o uso de anabolizantes para turbinar a economia – uma fatura que, mais dia, menos dia, acaba chegando.

Na Venezuela, por exemplo, que já foi um dos países mais ricos da região, o PIB (Produto Interno Bruto) caiu 87%, de US$ 352,5 bilhões para US$ 46,5 bilhões, nos últimos 10 anos. Hoje, a renda per capita do país, medida pela paridade do poder de compra (PPP), é de apenas US$ 5,4 mil. Só é maior na América Latina que a do Haiti, de US$ 3,1 mil, o país mais pobre da região. Em 2022, a inflação deverá ficar em torno de 500%, conforme as previsões feitas pelo FMI.

A Argentina, que também tinha uma situação privilegiada antes da chegada de Juan Domingo Perón ao poder, em meados dos anos 1940, com qualidade de vida de Primeiro Mundo, chafurdou no caos econômico e não consegue deixá-lo para trás. O país, que representava 34,7% do PIB da América do Sul, viu a sua fatia na economia da região cair a menos da metade, para apenas 15,1% do total, em 2021.

Com uma inflação que deverá fechar o ano em cerca de 100%, segundo as estimativas mais recentes, decorrente da gastança ilimitada destinada à distribuição de benesses de todos os tipos e ao custeio de uma máquina administrativa obesa, quem acaba sofrendo mais são os mais vulneráveis. Há cinco anos, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas (Indec), 17,9% dos argentinos viviam abaixo da linha da pobreza. Hoje, são 37,5%, mais que o dobro.

Com a crise econômica e a disparada da inflação na Argentina, faltam itens básicos nas prateleiras dos supermercados. Foto: Maximiliano Luna

A receita para o fracasso na economia costuma ser sempre a mesma, temperada por um discurso nacionalista e anti-imperialista. A medida pode até variar. Os ingredientes, em geral, não se alteram: irresponsabilidade fiscal, aumento de tributos, intervencionismo do Estado, expansão de estatais, protecionismo, regulação excessiva, “demonização” do lucro e da livre iniciativa, favorecimento de sindicatos e concessão indiscriminada de subsídios e benefícios.

Trata-se de um coquetel indigesto que os brasileiros conhecem bem, dos tempos em que o PT ditava os rumos da economia. Para dar sustentação conceitual para as bruxarias heterodoxas petistas, criou-se a chamada “nova matriz econômica”, que previa uma política fiscal expansionista, juros baixos e câmbio desvalorizado, junto com o aumento do crédito subsidiado de bancos estatais e das tarifas de importação, para “impulsionar” a indústria nacional, a redução das tarifas de energia e o congelamento dos preços dos combustíveis.

O resultado da alquimia petista, como já era previsível, foi sinistro, muito sinistro. Quando Dilma deixou o governo, após a aprovação do impeachment, em 2016, a situação era tenebrosa. O País enfrentava sua maior recessão em todos os tempos e a inflação roçava os 11% ao ano, sem crise global para justificar a escalada dos preços. As finanças públicas estavam em frangalhos. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) tinha um “papagaio” junto ao Tesouro Nacional de quase R$ 500 bilhões e a Petrobras acumulava um “rombo” de cerca de R$ 400 bilhões. Com tudo isso, a confiança dos agentes econômicos caiu de forma significativa, os investimentos privados diminuíram, os investidores estrangeiros se recolheram, o desemprego aumentou e a renda da população encolheu.

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“Se você não propuser políticas que vão melhorar o ambiente de negócios, se só estiver pensando em aumentar impostos, em dificultar investimentos, a coisa não vai terminar bem”, afirma Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica The Economist. “Você terá baixo crescimento e uma população desapontada, porque não conseguirá entregar o que prometeu para as pessoas, como renda mais alta, e não poderá expandir massivamente os serviços sociais, para reduzir a pobreza.”

Como mostrou a série de reportagens publicada pelo Estadão, o avanço da esquerda tem perpetuado o subdesenvolvimento e levado a um aumento dos regimes autoritários na América Latina. Após as vitórias em série obtidas pela esquerda na região, o Brasil, maior país latino-americano, poderá ser a próxima vítima do grupo, nas eleições de 2 de outubro. Está nas mãos dos eleitores evitar uma volta ao passado e garantir para o Brasil um destino mais promissor, que preserve as liberdades e crie as condições para o crescimento sustentável e o bem-estar social.

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