Com Biden em Israel e Putin na China, novas divisões globais ficam evidentes; leia a análise

O forte apoio de Washington a Israel contra o Hamas é um contraste evidente aos esforços russos e chineses para se alinhar com a luta palestina

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Por Steven Erlanger
Atualização:

THE NEW YORK TIMES — Enquanto o presidente dos EUA, Joe Biden, visita Israel nesta quarta-feira, buscando reforçar o eterno apoio americano ao país em meio à uma crise que se intensifica após uma explosão letal em um hospital na Faixa de Gaza, o presidente Vladimir Putin, da Rússia, está em Pequim, reunido com Xi Jinping, o principal líder da China, buscando demonstrar sua parceria “sem limites”.

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As duas viagens mostram como o cenário político global foi amplamente redesenhado pela invasão em grande escala da Rússia na Ucrânia, e como esse cenário alterado está em plena exibição na guerra entre Israel e o Hamas, o grupo terrorista que controla Gaza.

A Rússia, a China e o Irã já estavam formando um novo eixo em relação à Ucrânia, um eixo que eles têm buscado reforçar diplomática, econômica, estratégica e até ideologicamente. A Rússia depende de armas do Irã e do apoio diplomático da China para lutar na Ucrânia. O Irã foi isolado pelos EUA, mas ficou muito feliz em ter novos parceiros comerciais e alguma fonte de legitimidade internacional. A China, cuja economia está em dificuldades, poupou bilhões de dólares ao importar quantidades recordes de petróleo de países sob sanções ocidentais, como a Rússia e o Irã.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao desembarcar em Tel Aviv nesta quarta-feira, 18 Foto: Avi Ohion/EFE

Juntos, eles encontraram uma causa ideológica comum ao denunciar e desafiar os Estados Unidos em nome da reforma da ordem internacional existente, dominada pelo Ocidente desde a 2ª Guerra Mundial.

Ao fazer isso, eles não escondem as queixas que têm sobre a maneira como as coisas eram feitas no passado. No entanto, cada lado vê hipocrisia no outro, forçando cada vez mais todas as nações a escolherem um lado.

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A guerra entre Israel e Hamas ressaltou as diferenças cada vez maiores entre o Ocidente, de um lado, e a Rússia e a China, de outro. Essas diferenças não se referem apenas a quem é o culpado pela escalada da violência. Elas também dizem respeito a visões concorrentes das regras que sustentam as relações globais – e quem pode defini-las.

“Esse é outro conflito que impulsiona a polarização entre as democracias ocidentais e o campo autoritário da Rússia, China e Irã”, disse Ulrich Speck, um analista alemão. “Este é outro momento de esclarecimento geopolítico, como a Ucrânia, em que os países precisam se posicionar.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping, durante fórum internacional que marca o 10º aniversário da iniciativa chinesa de infraestruturas conhecida como Novas Rotas da Seda Foto: Sergei Guneyev/Sputnik via AP

A Rússia, com o apoio da China, retratou sua invasão da Ucrânia como uma defesa contra a subversão ocidental da esfera tradicional de dominação cultural e política de Moscou. Os Estados Unidos e a Ucrânia retrataram a guerra da Rússia como um esforço agressivo de recolonização que viola as normas internacionais e a soberania.

No que diz respeito ao Oriente Médio, talvez não exista nenhuma região em que a natureza de “através do espelho” dessas visões concorrentes seja mais aparente.

A Rússia e a China se recusaram a condenar o Hamas. Em vez disso, criticaram o tratamento israelense aos palestinos, especialmente sua decisão de cortar o fornecimento de água e eletricidade a Gaza e o número de mortes de civis no local. Eles pediram uma mediação internacional e um cessar-fogo antes que Israel considere que sua guerra tenha começado completamente.

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Após o horror da noite de terça-feira, quando centenas de palestinos morreram em um hospital após uma explosão quando buscavam abrigo, espera-se que a Rússia e a China intensifiquem seus pedidos de uma resolução da ONU e de um cessar-fogo imediato. De acordo com a RIA Novosti, uma agência de notícias estatal russa, o ministro das relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, chamou a explosão de “crime” e “ato de desumanização” e disse que Israel teria que fornecer imagens de satélite para provar que não estava por trás do ataque.

Apesar de os israelenses negarem a responsabilidade pela explosão, as reações violentas entre os palestinos e árabes comuns tornaram a viagem de Biden consideravelmente mais difícil.

Os planos de Biden de se reunir com líderes israelenses e árabes, incluindo Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, foram frustrados, e será mais difícil para ele agir como um mediador confiável. Haverá mais pressão sobre Biden para persuadir Israel a permitir a entrada de ajuda humanitária, incluindo água e eletricidade, em Gaza. As autoridades israelenses sugerem que ele também tentará impedir que o premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, reaja de forma exagerada, de modo a prejudicar os interesses regionais mais amplos dos Estados Unidos e de Israel.

Para Putin, a guerra apresentou outra oportunidade para se gabar, já que ele culpa Washington pelo conflito. “Acho que muitas pessoas concordarão comigo que esse é um exemplo claro do fracasso da política dos Estados Unidos no Oriente Médio”. Segundo Putin, os EUA sempre ignoraram os interesses palestinos.

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A China já demonstrou a ambição de ampliar sua influência no Oriente Médio com sua surpreendente intermediação da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita este ano; Pequim está tentando se apresentar como um intermediário honesto em comparação com Washington. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, disse que as ações de Israel já foram além da autodefesa e se transformaram em punição coletiva contra os palestinos em Gaza.

A Rússia e a China estão do lado de um povo palestino que busca a libertação e a autodeterminação, enquanto, aos olhos de Washington, eles próprios negam essas mesmas possibilidades aos ucranianos, aos tibetanos, aos uigures aos taiwaneses.

Mas em sua relutância em culpar o Hamas e em seu esforço para se associar à causa palestina, tanto a Rússia quanto a China estão apelando para um sentimento mais amplo no chamado Sul Global – e também em grande parte da Europa. Para eles, é Israel que está conduzindo uma política colonialista por meio da ocupação da Cisjordânia, do incentivo à instalação de colonos judeus em terras palestinas e do isolamento dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza, que estão sujeitos, mesmo em tempos normais, a fortes restrições em suas liberdades.

O Sul Global, termo que designa as nações em desenvolvimento, é uma área vital da nova competição entre o Ocidente e a alternativa sino-russa, disse Hanna Notte, diretora de um programa para a Eurásia no James Martin Center for Nonproliferation Studies.

Do ponto de vista de muitos no Sul Global, disse ela, “os Estados Unidos lutam contra a Rússia, o ocupante da Ucrânia, mas quando se trata de Israel, os EUA estão do lado do ocupante, e a Rússia aproveita isso”.

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A Rússia também vê a vantagem de apelar para o grande público árabe em nome dos palestinos em países como o Egito, a Jordânia e os países do Golfo, que não gostam do Hamas ou da Irmandade Muçulmana, têm relações decentes com Washington e Israel e têm pouco desejo de aceitar refugiados palestinos de Gaza.

Esses aliados podem estar relativamente calados enquanto Israel bombardeia Gaza, mas isso será muito mais difícil agora, após a explosão do hospital e a raiva de sua própria população. Ainda assim, eles também estão satisfeitos em ver os Estados Unidos se inserindo novamente com tanta força na região, com poder militar. Washington enviou dois porta-aviões para deixar claro ao Hezbollah, talvez o aliado mais importante do Irã, que ele não deve tentar abrir uma segunda frente contra Israel a partir do sul do Líbano.

A Rússia sempre se ressentiu de Washington por dominar o Oriente Médio e o processo de paz e veria benefícios se a guerra contra o Hamas desacelerasse ou destruísse o esforço do presidente Biden para solidificar as relações com a Arábia Saudita, incluindo um possível tratado de defesa mútua, em troca da normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel, disse Notte.

“Os Estados Unidos marginalizaram a Rússia com seu apoio aos Acordos de Abraão” entre Israel e os Estados do Golfo, “e a Rússia não gosta de ser marginalizada”, disse ela. “Se a normalização descarrilar, isso seria outro benefício secundário do ponto de vista de Moscou.”

Já aliada da Síria e influente na Líbia, a Rússia também se aproximou do Irã, o principal patrocinador do Hamas, especialmente por causa da guerra na Ucrânia, com a  Rússia buscando armas, mísseis e drones iranianos. Mas os interesses do Irã e da Rússia na região não são os mesmos.

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A Rússia reluta em ver a guerra em Gaza se transformar em uma guerra regional, porque ela inevitavelmente prejudicaria, se não engolisse, o Líbano e a Síria, onde a Rússia tem bases militares que são importantes para sua projeção de poder.

“Presos na Ucrânia, os russos não têm poder de fogo para tantas frentes”, disse Notte. “Se houver uma guerra regional mais ampla e os Estados Unidos ficarem do lado de Israel, a Rússia teria que se desviar ainda mais para o lado iraniano, e não consigo ver a Rússia querendo escolher lados na região”.

É claro que, se a guerra entre Israel e Hamas desviar a atenção de Washington da guerra da Rússia na Ucrânia e desviar os armamentos americanos, como defesa antimísseis e munição de artilharia, da Ucrânia para Israel, isso será um benefício extra para Moscou.

A China também foi fundamental para convidar o Irã a participar do Brics, o clube de nações em desenvolvimento, que pretende ser uma espécie de aliança contra a hegemonia ocidental no sistema internacional.

No entanto, essa guerra também destaca “o projeto hegemônico do Irã na região”, disse Speck – uma tentativa de dominação que não atende necessariamente aos interesses da Rússia ou da China e que está gerando uma resposta cada vez mais vigorosa de Israel e dos Estados Unidos.

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Por esse motivo, “estou convencido de que o Irã não quer a guerra neste momento”, disse Ori Goldberg, especialista em Irã da Lauder School of Government, Diplomacy and Strategy da Reichman University.

“O Irã gosta de enganos, campanhas de guerrilha e guerras por procuração, mas não gosta de guerras de fato”, disse ele. “Eles estão dispostos a apoiar os combatentes árabes, mas não estão dispostos a entrar em combate eles mesmos.”

* Steven Erlanger é o principal correspondente diplomático do The New York Times na Europa, baseado em Berlim.

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