Com guerras mais sangrentas, 2022 teve o maior número de mortos em conflitos em 30 anos

Embora a guerra da Ucrânia seja a primeira em duas décadas que envolve dois países e tenha impactos globais, ela foi a segunda mais letal, atrás do conflito do Tigré, na Etiópia

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Foto do author Jéssica Petrovna

Com mais de 230 mil mortes estimadas em conflitos, o ano de 2022 registrou as batalhas mais letais em quase 30 anos, batendo um recorde desde o sangrento genocídio de Ruanda em 1994. Embora a guerra na Ucrânia seja responsável por mais de 80 mil baixas e tenha impactos econômicos e bélicos globais, ela não foi a mais letal, com a Etiópia liderando o ranking. Os dados são do Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala, na Suécia.

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Até a última sexta-feira, 14, foram registradas 238 mil mortes em violência organizada em 2022, termo utilizado para definir conflitos que envolvem países, atores não-estatais como grupos armados e violência unilateral contra civis. A violência promovido por Estados foi responsável por quase 205 mil baixas, com os conflitos na Etiópia e na Ucrânia acumulando 75% do total.

“Poucas guerras concentram a maioria das baixas porque geralmente são conflitos envolvendo grandes Estados com grandes Exércitos”, explica Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão.

Tropas em uniformes da Eritreia são vistas em cima de um caminhão perto da cidade de Adigrat, Etiópia, 14 de março de 2021 Foto: Baz Ratner/Reuters

“Ainda que haja guerras civis como no caso da Etiópia, os mais comuns são conflitos envolvendo Estados de ambos os lados, em que ambos têm Exércitos com artilharia, aeronaves, tanques e armamentos que causam muito mais perdas de vidas do que uma guerra de guerrilha”, completa.

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Embora não seja a primeira na lista de letalidade, a guerra na Ucrânia contribui para um aumento da percepção de um mundo mais inseguro por ser o primeiro conflito envolvendo diretamente dois países desde a Guerra Fria. Além disso, ela serviu para jogar uma lupa em cima de batalhas cada vez mais sangrentas e com tecnologias que contribuem para um maior número de baixas militares e civis.

“A guerra na Ucrânia quebrou uma série de tabus, incluindo um conhecido como o ‘tabu da água’ [que impede que a água seja utilizada como arma de guerra] e que dita que não se pode explodir represas. Atores em guerras desde a 2ª Guerra se abstiveram de explodir represas, mas isso aconteceu [na Ucrânia]”, lembra o pesquisador.

Já no relatório de 2021, quando foram registradas 119 mil mortes que já eram um recorde desde 1994, o grupo de pesquisa ressaltou que o uso de drones era o principal responsável por tornar os conflitos mais letais. Com a Ucrânia, os usos de drones kamikaze, grupos mercenários e armamentos considerados proibidos no direito internacional - como as bombas de fragmentação que os EUA enviaram a Kiev - chamaram atenção para as violações de direitos, algo que já ocorre há muitos anos em conflitos menos notados.

É o caso da Etiópia, que é palco de uma guerra sangrenta desde 2020 e viu seus números de fatalidades explodirem em 2022. O governo etíope trava batalhas contra o grupo da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF), na região de mesmo nome, e conta com o apoio das forças militares da Eritreia.

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No último ano, foram mais de 100 mil mortes no conflito que é marcado por intensas denúncias de crimes de guerra. Segundo o relatório do grupo de pesquisa, o país sofre o pior nível de violência organizada desde o pós-Guerra Fria.

“Assemelhando-se aos combates da 1ª Guerra, assumiu a forma de uma sangrenta guerra de infantaria em várias frentes, com ambos os lados acusados de usar combatentes recém-recrutados como bucha de canhão, lançando ataques de ondas humanas através de áreas minadas em direção às trincheiras inimigas”, informa o relatório sobre o país.

Para contabilizar essas mortes em conflitos, os pesquisadores coletam registros na imprensa de cada batalha travada em que tenha ocorrido ao menos uma fatalidade. Também são consultados relatórios de ONGs locais, instituições como ONU, comissões da verdade e perfis de mídia social especializados na cobertura de conflitos. O resultado é um gigantesco banco de dados com informações de baixas, atores envolvidos e até latitude e longitude de cada evento individualmente.

Buracos de bala são vistos em uma mesquita, causados por combates entre a Força de Defesa Nacional da Etiópia (ENDF) e as forças da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) na cidade de Kasagita, região de Afar, Etiópia, em 25 de fevereiro de 2022 Foto: Tiksa Negeri/Reuters

Um mundo mais conflituoso

Não apenas mais pessoas estão morrendo em combates, mas mais conflitos estão sendo travados anualmente. Em 2022, os pesquisadores registraram ao menos 55 choques envolvendo países. Embora a maioria deles seja considerada batalhas menores, ao menos oito se enquadram na definição de guerras, em que há ao menos mil mortes durante o intervalo de um ano. Em 2021 esse número era de cinco.

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“Eu me lembro quando começou a guerra da Ucrânia que perguntavam se ia ter uma guerra mundial” afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH. “Eu respondia que uma guerra mundial nos traços da 1ª e da 2ª não estava no nosso horizonte, mas isso não significa que a gente não tenha até níveis maiores de mortes”.

Os motivos para este aumento são vários, explica, desde disputas territoriais a conflitos por identidade, até a resultados de Estados falidos. Mas a globalização e a maior possibilidade de trânsito de armas, bem como armas mais leves, baratas e tecnológicas, facilitaram esse salto.

“Não existe nenhuma região no mundo hoje, talvez a Oceania, que não tenha pelo menos um foco de conflito com alto índice de mortes, exatamente por essa questão, porque agora a gente ampliou a nossa capacidade de comunicação e de trânsito de armas”, completa.

Entre as explicações, complementa Öberg, estão a ocorrência de crises econômicas que historicamente despertam revoltas sociais, fortalecimento de novas potências econômicas e militares como Rússia e China, choques sociais como a Primavera Árabe e a crescente polarização vista na Europa, Estados Unidos e Brasil, afirma.

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Em 2023 o mundo ganhou um novo conflito com grandes repercussões regionais, no Sudão, onde mais de 15 mil refugiados já fugiram Foto: Amanuel Sileshi/AFP

Além de Ucrânia e Etiópia, entram nessa categoria a guerra na Síria, que já se arrasta há mais de dez anos e em 2022 registrou mais de mil mortes; no Iêmen, onde Arábia Saudita e Irã travam uma guerra de procuração desde 2014 que deixou mais de 3 mil mortos no último ano; Afeganistão, onde o Taleban ataca civis e deixou 1,5 mil deles mortos em 2022, entre outras batalhas.

Apesar de os conflitos envolvendo nações corresponderem a 86% da violência de 2022, o tipo mais comum de violência é a não-estatal, geralmente envolvendo dois grupos criminosos. Nessa categoria foram registrados cerca de 82 conflitos no ano passado, resultando em 21,5 mil mortes.

Esse tipo de combate é mais comum no norte da África e na região das Américas, especialmente América Latina que tem grande influência do narcotráfico. Nesse sentido, o Brasil costuma aparecer entre os países com maiores números por causa de grupos criminosos como PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho).

O México lidera este tipo de violência, sendo acompanhado por El Salvador, Honduras e Colômbia. “A gente observa que esse tipo de violência aumentou muito porque os mercados da droga aumentaram muito no mundo”, explica Mendonça.

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E por fim há a violência unilateral, em que um governo ou grupo criminoso ataca civis não armados. Sua predominância é maior no Oriente Médio, onde o autointitulado Estado Islâmico liderou as fatalidades. Em 2022, foram 11,9 mil baixas nesta categoria.

Combatentes do Taleban exibem armas apreendidas em Mazar-i-Sharif em 13 de julho de 2023 Foto: Atif Aryan/AFP

Os custos da guerra

Além dos custos humanos, as guerras também trazem um alto custo econômico, e a Ucrânia tem se mostrado o maior exemplo desta outra face. O mundo inteiro sentiu quando um comércio que ainda se recuperava do golpe da pandemia foi abalado pela disparada do petróleo e da retenção de grãos nos portos ucranianos.

As sanções de Estados Unidos e Europa - uma tentativa de parar a máquina de guerra de Vladimir Putin - causaram uma disparada nos custos de energia. O preço do barril de petróleo chegou ao patamar mais alto desde a crise de 2008, puxando consigo a inflação.

Apesar da pressão sobre a Rússia, a guerra se arrasta há mais de 500 dias e manter o conflito tem um preço alto. No ano passado, o custo da violência foi equivalente a 63% do PIB da Ucrânia que ficou no topo do ranking, seguido por por Afeganistão (46%) e Sudão (39%), de acordo com o estudo do Instituto para Economia e Paz.

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Esses países, onde o custo da violência corresponde a um percentual alto do PIB, têm características em comum apontadas pela pesquisa: alto nível de conflito armado, grande número de deslocados internos, elevada violência interpessoal ou grandes forças armadas.

Munição é vista ao lado de um tanque destruído em uma luta entre a Força de Defesa Nacional da Etiópia (ENDF) e as forças da Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF) em 2022 Foto: Tiksa Negeri/AFP

No caso específico da Ucrânia, só os gastos militares chegaram a quase US$ 190 bilhões (R$ 912 bilhões), se aproximando dos US$ 193 bilhões (R$ 927 bilhões) investidos do outro lado da guerra pelo Kremlin. Os recursos que Kiev destinou para as forças armadas no ano da invasão russa correspondem a US$ 4.770 por habitante ou 36% do PIB.

A Ucrânia não está sozinha nessa, tem o apoio de aliados de peso da Otan, que contribuíram para um aumento investimento global em defesa. Só os Estados Unidos destinaram US$ 820 bilhões (R$ 3,9 trilhões) - quase o dobro da China, que vem em segundo lugar com cerca de US$440 bilhões (R$ 2,1 trilhões).

No mundo, a soma de gastos militares chegou a US$7,6 trilhões. O valor é a fatia mais significativa do que o estudo define como “impacto econômico da violência”, que foi de US$ 17,5 trilhões (R$ 84 trilhões) no ano passado - quase 13% do PIB global.

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Em um mundo cada vez mais beligerante, os pesquisadores também analisaram qual seria o custo de um eventual bloqueio da China à Taiwan, que entrou no horizonte depois do ataque à Ucrânia. A previsão é de que a economia global sofreria um baque duas vezes pior que a crise de 2008, com perdas de US$ 2,7 trilhões (R$ 13 trilhões) no primeiro ano.

Com um impacto econômico tão grande, que tem puxado as taxas de inflação dos países para cima e com um cenário cada vez mais polarizado, a tendência é de um mundo ainda mais conflituoso, ressalta Magnus Öberg. “Teremos momentos difíceis pela frente. Mas esses são os momentos em que você também precisa tentar encontrar outras maneiras, devemos sempre tentar encontrar soluções pacíficas”, finaliza.