A tentativa frustrada de decreto da lei marcial na Coreia do Sul nesta terça-feira, 3, escancarou o impasse político quase constante que o presidente Yoon Suk-yeol enfrenta com a oposição desde que chegou ao poder, em 2022, e deve aprofundar ainda mais sua impopularidade no país, de acordo com Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV especializado em relações internacionais da Ásia.
Yoon impôs a lei marcial em um momento de frustração com a oposição, prometendo eliminar as forças “antiestado” enquanto luta contra oponentes que controlam o parlamento e que ele acusa de simpatizar com a Coreia do Norte comunista, marcando a primeira declaração desta lei em mais de quatro décadas no país, que saiu da ditadura militar no final da década de 1980. Com poucas horas em pé, a decisão foi contestada logo depois por meio de uma votação na Assembleia Nacional.
Segundo Brites, a decisão de impor a lei marcial se insere em um contexto maior de instabilidade doméstica e impasses legislativos. “Desde que o atual presidente chegou ao poder, ele não teve como consolidar uma posição de liderança política afirmada”, explica.
Yoon, um ex-promotor, venceu uma eleição presidencial extremamente acirrada em 2022, trazendo os conservadores do país de volta ao poder com apelos por uma postura de maior confronto contra a Coreia do Norte e uma aliança mais forte com os Estados Unidos.
Em seu discurso declarando lei marcial na terça-feira à noite, Yoon disse que estava fazendo o movimento para “defender a República livre da Coreia das ameaças das forças comunistas norte-coreanas e erradicar as forças antiestado pró-norte-coreanas descaradas que estão saqueando a liberdade e a felicidade do nosso povo e proteger a ordem constitucional livre.”
Mas enquanto ele adota uma retórica assertiva e alinhada aos Estados Unidos, a oposição, que tem maioria parlamentar, defende o engajamento diplomático com o país vizinho, o que reduz a capacidade do governo de implementar uma agenda consistente. “A oposição, que tem essa visão mais de engajamento, conseguiu brecar quaisquer agendas que ele tivesse”, afirma o especialista. “A gente poderia dizer que, em alguma medida, reduziu a sua função como presidente.”
O presidente sul-coreano ainda se envolveu em uma crise de reputação depois que sua esposa, Kim Keon Hee, foi acusada de aceitar como presente uma bolsa da marca de luxo Dior estimada em US$ 2,2 mil, o que violaria a lei anticorrupção que proíbe funcionários públicos e seus cônjuges de receberem presentes avaliados em mais de U$750. A oposição vem aumentando a pressão para que os promotores investiguem o episódio, e os índices de aprovação da presidência têm apresentado queda.
Para o especialista, a tentativa de fechar o parlamento é uma clara resposta a esse contexto de enfraquecimento doméstico. Mas o esforço desesperado de Yoon para afirmar sua autoridade em um momento de isolamento crescente devera sair pela culatra, deixando em dúvida o seu futuro político. Nesta terça-feira, após o veto parlamentar, centenas de sul-coreanos foram às ruas pedir o impeachment do presidente. O líder do partido do governante, Partido do Poder Popular, descreveu a tentativa de impor a lei marcial como “trágica” e cobrou “explicações minuciosas”.
Brites avalia que o cenário deve intensificar o isolamento do mandatário, incluindo entre aliados, devido à maneira como o decreto foi tornado público, sem uma aparente avaliação entre os pares. E, como consequência, o emparedamento de Yoon deve empurrar a Coreia do Sul para um cenário de instabilidade.
“A instabilidade política, que já foi uma marca (no país), que já vivenciou outras presidências anteriores também com derrubada de presidente ou presidentes que não conseguiram ter muita estabilidade para levar suas agendas à frente, pode ser um problema para a Coreia do Sul nesses próximos tempos”, diz.
O impacto global
Diante da pressão interna e de um contexto internacional de tensões entre as duas Coreias, a leitura de Yoon pode ter sido de que existia um momento oportuno para tomar uma decisão ousada, como decretar a lei marcial, diz Brites. Regionalmente, apesar da preocupação, a reação de outros países como o Japão e China foi marcada por cautela.
No plano global, a imagem democrática da Coreia do Sul pode sofrer danos. “Ver as forças armadas entrando no parlamento é algo chocante para um país que se posiciona como modelo de democracia no leste asiático”, destacou o especialista. No entanto, ele pondera que a reação internacional dependerá de como Seul conseguirá estabilizar a situação interna nos próximos meses.
Mas o cenário coloca a região em um estado de ainda maior atenção para as relações na Península Coreana. Paradoxalmente, um eventual colapso do governo Yoon pode criar um cenário mais favorável ao diálogo entre as Coreias. O analista acredita que “caso o presidente renuncie, isso talvez possa ser uma janela de oportunidade para a Coreia do Norte voltar à mesa de negociações”.
“Com certeza, é um momento de alerta, porque, se essa iniciativa da lei marcial desse certo, talvez fosse um passo mais agressivo por parte da Coreia do Sul, precipitando reações da Coreia do Norte, justamente em um momento em que ela também está contribuindo contra as iniciativas globais de um aliado seu, como a Rússia, na guerra na Ucrânia, por exemplo”, afirma Brites.
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