THE NEW YORK TIMES - Quando David Ben-Gurion, um dos pais fundadores de Israel, foi alertado em 1955 que seu plano para tomar a Faixa de Gaza do Egito provocaria uma reação nas Nações Unidas, ele ridicularizou a ONU brincando com a sigla em hebraico, “Um-Shmum”.
O episódio passou a simbolizar a disposição israelense de desafiar as organizações internacionais quando o país acredita que seus interesses centrais estão em jogo.
Quase 70 mais tarde, Israel enfrenta outra onda de reprovação nas Nações Unidas, na Corte Internacional de Justiça e por parte de dezenas de países por causa de sua operação militar em Gaza, que já matou mais de 29.000 palestinos, entre eles muitas mulheres e crianças, e deixou a maior parte do território em ruínas.
O grande aumento na pressão global deixou o governo israelense e seu primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, profundamente isolados, mas sem fazê-los ceder, principalmente por ainda contarem com o apoio de seu aliado mais irredutível, os Estados Unidos.
Mas, dessa vez, Israel está diante de uma rara ruptura com Washington. O governo Biden está fazendo circular o rascunho de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que alertaria o exército israelense contra a realização de uma ofensiva terrestre em Rafah, perto do Egito, onde mais de um milhão de refugiados palestinos estão abrigados. Seria proposto também um cessar-fogo temporário assim que as circunstâncias permitirem.
“É um grande problema para o governo israelense porque, anteriormente, ele pôde se esconder atrás da proteção dos EUA”, disse Martin Indyk, ex-embaixador americano em Israel. “Mas agora Biden está indicando que Netanyahu não pode mais contar automaticamente com essa proteção.”
“Há um contexto mais amplo de condenação por parte da opinião pública internacional, que não tem precedentes em sua amplitude e profundidade, e que chegou aos EUA”, disse Indyk. “O eleitorado progressista, jovem e de origem árabe do Partido Democrata ficou furioso e passou a criticar duramente Biden por seu apoio a Israel.”
Mais de Israel
Até agora, o presidente Biden não permitiu que a pressão internacional ou doméstica o fizesse mudar de posição. Na terça feira, os EUA assumiram novamente um papel conhecido, usando seu poder de veto no Conselho de Segurança para derrubar uma resolução, apresentada pela Argélia, pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza. Foi a terceira vez durante a guerra de Gaza que os EUA vetaram uma resolução pressionando Israel.
Desde o estabelecimento das Nações Unidas em 1945, três anos antes da criação do Estado de Israel, os EUA usaram seu poder de veto mais de 40 vezes para proteger Israel do Conselho de Segurança. Na Assembleia Geral da ONU, onde os EUA são apenas um voto entre muitos, as resoluções contra Israel são comuns. Em dezembro, a assembleia aprovou por 153 votos a favor, 10 votos contra e 23 abstenções um pedido de cessar-fogo imediato.
“Do ponto de vista dos israelenses, essas organizações estão majoritariamente contra nós”, disse Michael B. Oren, ex-embaixador israelense nos EUA, referindo-se à ONU, à CIJ e outros organismos. “O que elas fazem não afeta nossa estratégia, tática ou operação.”
Mas Oren reconheceu que qualquer tipo de ruptura com os EUA, seu maior fornecedor de armas, poderoso aliado político e principal defensor internacional, seria “uma situação completamente diferente”.
Embora Israel esteja sob forte pressão desde os primeiros dias de sua ofensiva em Gaza, o coro de protesto nas capitais estrangeiras se tornou poderoso nos dias mais recentes. Em Londres, o Partido Trabalhista, da oposição, pediu um cessar-fogo imediato na terça feira, assumindo posição diferente do Partido Conservador, no governo, sob pressão de seus próprios membros e outros partidos da oposição.
Até o príncipe William, 41 anos, herdeiro do trono britânico, pediu “o fim dos combates assim que possível”, rara intervenção geopolítica de um membro de uma família real que costuma evitar temas do tipo. “Já foram mortes demais”, disse William em um pronunciamento na terça feira.
Talvez o retrato mais claro do isolamento de Israel seja a Corte Internacional de Justiça, em Haia, onde representantes de 52 países estão se alternando essa semana para argumentar em um caso que examina a legalidade da “ocupação, assentamento e anexação” de territórios palestinos por parte de Israel, incluindo a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A maioria das opiniões apresentadas é duramente crítica a Israel.
A África do Sul comparou o tratamento dos palestinos por Israel a uma “forma extrema de apartheid”. O governo sul-africano apresentou à corte um caso separado acusando Israel de cometer genocídio em Gaza.
Na quarta feira, os EUA mais uma vez saíram em defesa de Israel, implorando à corte que não emitisse uma decisão segundo a qual Israel teria que se retirar incondicionalmente desses territórios. Um advogado do departamento de estado, Richard Visek, argumentou que isso tornaria um acordo de paz entre Israel e os palestinos ainda mais difícil, pois não levaria em conta a segurança de Israel.
Mas a voz americana ecoou no vazio, e somente os britânicos apresentaram argumento semelhante.
“Na verdade, é exatamente o contrário”, disse Philippe Sands, advogado defensor dos direitos humanos que falou em nome dos palestinos. Destacando que a corte já tinha confirmado o direito de autodeterminação dos palestinos, ele disse, “A função desta corte, dos juízes, de vocês, é afirmar a lei: enunciar os direitos e obrigações legais que permitirão uma solução justa no futuro”.
Uma decisão da Corte Internacional de Justiça não seria vinculante, e Israel se recusou a participar das audiências. Mas a resistência de Israel aos organismos internacionais não significa que o país os ignore.
Inicialmente, o governo israelense descreveu a acusação sul-africana de genocídio como “desprezível e vergonhosa”. Falou-se que Netanyahu pensou em mandar o advogado Alan Dershowitz, que defendeu Donald Trump e o financista e criminoso sexual Jeffrey Epstein, para defender Israel — uma escolha que, de acordo com alguns, transformaria a audiência em um circo. No fim, ele enviou uma equipe jurídica de peso, liderada pelo respeitado advogado australiano israelense Tal Becker, que argumentou que a África do Sul tinha apresentado “uma descrição amplamente contrafactual” do conflito.
Em decisão provisória no início de fevereiro, a corte ordenou que Israel evitasse e punisse declarações públicas que incitassem o genocídio e garantisse a chegada de ajuda humanitária a Gaza. Mas não foi atendida uma das principais solicitações dos sul-africanos: a suspensão da campanha militar de Israel.
Mesmo em relação à própria ONU, o impulso israelense de dizer “Um-Shmum” tem algum limite. Israel frequentemente manobra para derrubar ou abrandar resoluções do Conselho de Segurança porque reconhece que elas poderiam abrir caminho para sanções.
Em dezembro de 2016, autoridades israelenses fizeram lobby junto ao recém-eleito Trump para que este pressionasse o ainda presidente Barack Obama a vetar uma resolução do Conselho de Segurança, condenando Israel pelos assentamentos judaicos na Cisjordânia (os EUA se abstiveram, e a resolução foi aprovada).
“Eles entendem a necessidade de manter a oposição global no nível retórico”, disse Daniel Levy, ex-negociador israelense pela paz que comanda atualmente o U.S./Middle East Project, um grupo de pesquisas com sede em Londres e Nova York. “Não se pode permitir que entremos no âmbito dos custos e consequências.” /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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