THE NEW YORK TIMES - Em 2017, pensamos ter testemunhado o que a política francesa tinha de pior a oferecer. Marine Le Pen, a líder da extrema direita, havia conseguido chegar ao segundo turno das eleições presidenciais. Pela primeira vez desde 2002, uma figura da extrema direita disputava o segundo turno – e consideravelmente com mais apoio.
Quando Le Pen perdeu para Emmanuel Macron, apesar de concentrando preocupantes 34% dos votos, demos um suspiro de alívio coletivo. Muitos esperavam que Le Pen, depois de fracassar na batalha final, desaparecesse na obscuridade.
Não foi isso o que aconteceu. Le Pen nunca foi embora. Em vez disso, aguardou pacientemente sua hora e preparou-se para a disputa seguinte pelo poder. Agora, ela tem mais chance de vencer do que jamais teve: depois de registrar 23% no primeiro turno, está 14 pontos porcentuais atrás de Macron no segundo (conforme o instituto Ipsos), que será disputado neste domingo, 24.
Ela se beneficiou da presença na disputa de Éric Zemmour, um direitista ainda mais conservador, cuja extravagante personalidade reacionária fez Le Pen parecer, por contraste, mais sensata. Além disso, ela também embarcou num esforço amplo para abrandar sua imagem, rebatizando seu partido, minimizando os elementos mais ríspidos de sua plataforma e apresentando a si mesma como uma mulher calorosa – e até mesmo simplória – que ama seus gatos.
Mas ninguém deve se deixar enganar. Líder de um partido que desde sempre abrigou colaboradores nazistas, Le Pen é uma figura autoritária, cuja política profundamente racista e islamofóbica ameaça transformar a França num Estado iliberal. Ela pode até fingir ser uma política comum, mas continua tão perigosa quanto sempre foi. Pelo bem das minorias e da própria França, ela não deve vencer.
Se Le Pen parece mais palatável ao mainstream agora, é porque o mainstream está mais parecido com ela. Nos anos que antecederam a eleição passada, ela fez campanha com base em uma plataforma de extrema direita atiçando antagonismos contra imigrantes e muçulmanos franceses, sob o pretexto de proteger a ordem pública. Ela mirou especialmente nas minorias – “para quem”, afirmou ela acidamente, “tudo é devido e para quem damos tudo”.
Em resposta ao seu sucesso, em 2017, quase todos os partidos do espectro político – de centro, da direita tradicional e até socialistas – usaram temas de discussão do partido dela, agora chamado Reagrupamento Nacional (anteriormente se chamava Frente Nacional).
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O rumo da discussão política, como resultado, pendeu substancialmente para a direita. Não restou praticamente nenhum espaço na política francesa para a defesa de cidadãos franceses que não compartilham da aparência, do comportamento, da religião ou da dieta que os franceses “tradicionais” deveriam ter – muito menos para a defesa de direitos de imigrantes e refugiados.
Nesse ambiente, Le Pen pôde voltar sua atenção para temas mais cotidianos, como o aumento dos preços da energia e do custo de vida, segura de que a respeito de imigração, cidadania e “identidade nacional” ela já ganhou a discussão.
Esse sucesso não veio da noite para o dia. Por mais de 30 anos, o debate político na França tem se centrado em torno de temas como identidade, em detrimento de tópicos mais prementes, como saúde pública, mudanças climáticas, desemprego e pobreza.
A extrema direita abriu o caminho. Explorando sensações de declínio no fim dos anos 60 – enquanto a França perdia seu império colonial e a guerra contra a Argélia, submetendo-se ao domínio americano sobre a Europa Ocidental – a extrema direita tornou-se uma potente força política, usando sua influência para defender seu conceito de identidade francesa, evocando uma civilização cristã europeia de mil anos ameaçada pela imigração dos muçulmanos norte-africanos.
Ressentimento
Foi sobre essa fundação que a Frente Nacional foi criada, em 1972, pelo pai de Marine Le Pen, Jean-Marie Le Pen. À medida que pessoas oriundas das ex-colônias francesas migravam para a metrópole, o partido colocou foco obsessivo sobre os supostos perigos da imigração.
O tom de Jean-Marie Le Pen com frequência era apocalíptico. “Amanhã”, afirmou ele sordidamente, em 1984, “imigrantes viverão na sua casa, tomarão a sua sopa e dormirão com a sua mulher, sua filha e seu filho”.
Esse ressentimento rancoroso encontrou respaldo em certos setores da sociedade francesa, onde os homogeneizadores efeitos da globalização e a crescente visibilidade do Islã entre cidadãos nascidos na França eram considerados algo que despia o país de sua essência.
Essa antipatia teve muitos alvos, entre eles os judeus franceses. Jean-Marie Le Pen era famoso por seus comentários antissemitas – pelos quais foi condenado na Justiça diversas vezes – e o partido criado segundo sua imagem trafegava por ideias, retóricas e imagens antissemitas.
Apesar de Marine Le Pen ter afirmado que superou a fixação de seu pai nos judeus, ela continuou a atiçar essas chamas – recusando-se, em 2017, a aceitar a culpabilidade da França sobre o papel do regime de Vichy no Holocausto e até sendo retratada num pôster de campanha, este mês, aparentemente fazendo um gesto associado a neonazistas. Coberto pela defesa franca de Zemmour ao regime de Vichy, o antissemitismo retornou para o mainstream da política francesa.
Os muçulmanos similarmente têm sido vítimas dessa intolerância. Inicialmente considerados uma ameaça externa – supostamente chegando à França para roubar os empregos dos jovens nascidos no país –, os muçulmanos passaram a ser vistos nas décadas recentes como uma ameaça interna.
Com a ascensão do terrorismo islâmico, os muçulmanos começaram a ser considerados praticantes de uma religião inerentemente violenta, que precisava ser contida pelas autoridades públicas. Ser muçulmano significava ser culpado até que se provasse o contrário.
A década passada levou essa equação a um novo nível. O medo disseminado atualmente não é que um punhado de pessoas entre quase 6 milhões de muçulmanos possa representar uma ameaça à segurança pública, mas que todos os muçulmanos franceses ameaçam, simplesmente por existir, a identidade cultural da “França tradicional”.
Para alguns eleitores, trata-se de um medo existencial. Em resposta, os políticos aplicaram medidas para coibir a suposta intromissão do Islã no cotidiano da França, como banir trajes religiosos em escolas públicas e proibir que muçulmanas cubram totalmente o rosto em espaços públicos e usem burquínis em praias públicas. E aprovaram uma lei que concede ao Estado poder para monitorar atividades religiosas e organizações islâmicas.
Para justificar tais manobras, os políticos transformaram em arma o conceito liberal de laicidade – na realidade, um secularismo estatal – para restringir a liberdade de religião e consciência segundo os interesses de uma agenda anti-islâmica.
Esse processo permitiu a Marine Le Pen se transformar de uma radical enfurecida em uma figura sensata e honesta. Mas, sob o lustro da normalidade, a ideologia brutalmente racista que seu partido promoveu nos últimos 30 anos permanece em grande medida intacta.
O manifesto de Marine Le Pen promete, por exemplo, uma emenda à Constituição que proíbe o assentamento de “um número de estrangeiros grande o suficiente para mudar a composição e a identidade do povo francês” – o que parafraseia a teoria supremacista branca da “Grande Substituição”.
Le Pen também planeja distinguir juridicamente “franceses nativos” de “outros”, para acesso a benefícios de habitação e emprego, além de permitir cidadania apenas para pessoas que “mereceram e assimilaram”. Completando o quadro, ela afirmou que pretende proibir que mulheres muçulmanas cubram o cabelo com véus em espaços públicos.
Ironia
Com essas promessas, e também de acordo com as amizades que mantém – ela se associou a Vladimir Putin, Bashar Assad e Viktor Orbán –, Le Pen deixou clara sua intenção de reconfigurar a França tanto domesticamente quanto na arena internacional.
Sua gestão ecoaria os governos de Brasil, Índia e outros países onde inclinações similares para a direita sucederam. Para minorias, imigrantes e dissidentes, assim como para a própria democracia, isso seria um desastre. Apesar do apoio a Le Pen parecer ter empacado nos dias recentes, ela continuará por aí, independentemente do que acontecer neste domingo. Enquanto cidadã francesa e muçulmana, nascida e criada na França, temo pelo meu país.
E este país é meu tanto quanto de Le Pen ou de Macron. Num momento em que políticos e eruditos exigem que os muçulmanos “adotem valores republicanos” se quiserem ser parte do país, é revelador que os franceses possam eleger uma candidata cuja ideologia essencial viola os valores de liberdade, igualdade e fraternidade que a França defende há tanto tempo. Nesta ironia reside o lapso entre o que a França poderia ser e o que ela é. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*É CANDIDATA PESQUISADORA EM DIREITO COMPARADO DA UNIVERSIDADE TOULOUSE 1 CAPITOLE
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