WASHINGTON - O comitê da Câmara dos Estados Unidos que investiga o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 fez nesta segunda-feira, 19, a sua última reunião pública, e encaminhou à Justiça quatro acusações criminais contra o ex-presidente Donald Trump, algo sem precedentes na história americana. Foram 18 meses de uma investigação que expôs intenções golpistas de Trump para impedir a certificação de Joe Biden como presidente e abalou a política americana.
Por unanimidade, o grupo aprovou o relatório final da investigação, que só deve ser publicado na próxima quarta-feira, e encaminhou ao Departamento de Justiça ao menos quatro acusações contra Trump: obstrução de um processo oficial do Congresso, conspiração para fraudar o governo, conspiração para fazer uma declaração falsa e incitar ou auxiliar uma insurreição. Como o comitê não tem poderes legais, caberá ao Departamento de Justiça decidir se processa ou não o ex-presidente.
O relatório final diz haver indícios de que o ex-presidente cometeu vários crimes, em um cenário em que Trump já se vê enfraquecido por outras investigações e derrotas importantes nas eleições de meio de mandato deste ano. Das 17 conclusões específicas do relatório, 15 centram no papel de Trump na conspiração e no caos resultante da invasão ao Congresso americano.
Após a conclusão do relatório, Trump afirmou que as acusações feitas contra ele pela comissão são “falsas” e feitas com o objetivo de impedir a candidatura presidencial em 2024. “As falsas acusações feitas pela comissão altamente partidária de 6 de janeiro já foram arquivadas”, disse o ex-presidente em um post em sua rede social. “Eu GANHEI de forma convincente.”
O grupo também encaminhou acusações contra outros cinco outros aliados de Trump - Mark Meadows, seu último chefe de gabinete, e os advogados Rudolph Giuliani, John Eastman, Jeffrey Clark e Kenneth Chesebro - para possíveis processos no Departamento de Justiça. As acusações resultarão em longas sentenças de prisão se os promotores federais decidirem adotá-las e eles forem condenados.
O comitê também encaminhou quatro membros republicanos do Congresso ao Comitê de Ética da Câmara, incluindo o deputado Kevin McCarthy, da Califórnia, que pretende se tornar o próximo presidente da Câmara, por sua recusa em cumprir as intimações do grupo.
“O Congresso fez o que precisava ser feito: dar alguma satisfação no sentido de investigar uns dos piores ataques à democracia dos EUA na história”, afirmou o professor associado do Berea College, do Kentucky, Carlos Gustavo Poggio ao Estadão. “A questão central era o receio político de republicanos de participar do comitê e serem execrados pela base do partido, o que acabou deixando apenas uns poucos corajosos, como Liz Cheney.”
“As eleições de meio de mandato deixaram claro que se os republicanos se agarrarem a Trump, vão continuar perdendo eleições relativamente fáceis. Elas mudaram completamente a variável politica e podem inclusive dar outro peso ao comitê”, completa.
O comitê, que será dissolvido em 3 de janeiro com a nova Câmara liderada pelos republicanos, conduziu mais de 1.000 entrevistas, realizou 10 audiências públicas assistidas nacionalmente e coletou mais de um milhão de documentos desde que foi lançado em julho de 2021. Na sessão de hoje, o grupo apresentou trechos de entrevistas e conversas telefônicas do ex-presidente pedindo para autoridades estaduais interferirem nos resultados.
Leia mais
Precedente
O conteúdo completo do relatório de oito capítulos só será revelado na quarta-feira, que deve conter recursos interativos, vídeos e gráficos do ataque ao Capitólio. Os tópicos incluem a divulgação de mentiras de Trump sobre a eleição, a criação de listas falsas de eleitores pró-Trump em estados vencidos por Biden e a campanha de pressão do ex-presidente contra autoridades estaduais, o Departamento de Justiça e o ex-vice-presidente Mike Pence.
Após o fim da reunião, o comitê divulgou um resumo do documento com mais de 100 páginas. “Essa evidência levou a uma conclusão absoluta e direta: a causa central de 6 de janeiro foi um homem, o ex-presidente Donald Trump, que muitos outros seguiram”, afirma o relatório. “Nenhum dos eventos de 6 de janeiro teria acontecido sem ele.”
Embora o resumo executivo se concentre fortemente em Trump, o documento aponta descobertas de falhas na aplicação da lei, um tópico não abordado anteriormente nas audiências. O relatório concluiu que nenhuma análise reconheceu a escala total e a extensão da ameaça ao Capitólio em 6 de janeiro, apesar de a comunidade de inteligência e as agências de aplicação da lei terem detectado com sucesso o planejamento de violência em 6 de janeiro, incluindo pelos grupos Proud Boys e Oath Keeper que lideraram o ataque final.
Caso aceite processar Trump e seus funcionários envolvidos nos episódios do Capitólio, o Departamento de Justiça quebraria o precedente de presidentes em exercício não utilizarem a burocracia estatal para investigar antecessores, afirma Carlos Gustavo Poggio. “Seria a quebra de um tabu, uma administração usar poder de investigação contra a administração anterior. Pode abrir uma caixa de pandora, particularmente nesse ambiente de extrema polarização política no país.”
O Departamento de Justiça já está conduzindo sua própria investigação sobre os eventos de 6 de janeiro de 2021, mas acabou seguindo muitos dos testemunhos e descobertas feitas pelo Congresso. Nas últimas semanas, promotores federais emitiram intimações a autoridades em sete estados nos quais a campanha de Trump organizou eleitores para certificar falsamente a eleição de Trump.
“Estou convencido de que agora que nosso comitê divulgou nossas informações, eles vão pegar o que compartilhamos com eles e prosseguir com a investigação”, disse o presidente do comitê Bennie Thompson à CNN logo após a sessão, citando a investigação paralela da Justiça. “Não tenho dúvidas de que, uma vez que a investigação prossiga e seja concluída, se as evidências forem como as apresentamos, estou convencido de que o Departamento de Justiça acusará o ex-presidente Trump. Ninguém - incluindo um ex-presidente - está acima da lei.”
O ataque
Depois de passar pela segurança, ferindo ao menos 150 agentes, os manifestantes pró-Trump invadiram o Capitólio e interromperam a certificação da vitória do presidente Joe Biden, ecoando as mentiras de Trump sobre fraude eleitoral e enviando legisladores e outros funcionários correndo para bunkers para salvar suas vidas.
O ataque ocorreu após semanas de esforços de Trump para reverter sua derrota - uma campanha que foi amplamente detalhada pelo comitê em suas múltiplas audiências públicas. O comitê então foi formado depois que os republicanos do Senado bloquearam a formação do que teria sido uma comissão independente bipartidária para investigar a insurreição. Essa oposição estimulou a Câmara, controlada pelos democratas, a formar um comitê próprio.
O líder republicano da Câmara, Kevin McCarthy, um aliado de Trump, decidiu não participar depois que a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, rejeitou algumas de suas indicações. Isso deixou uma abertura para que dois republicanos anti-Trump na Câmara – Liz Cheney e Adam Kinzinger, deputado de Illinois – se juntassem aos sete democratas que atuam no comitê. Ainda assim, a participação no grupo teve consequências partidárias para Cheney, que perdeu as primárias em Wyoming.
Composto por mais de uma dúzia de ex-promotores federais, o comitê estabeleceu um novo padrão de trabalho de como realizar uma audiência no Congresso. Também ficou significativamente à frente da investigação paralela do Departamento de Justiça, com promotores federais entrevistando muitas das mesmas testemunhas com as quais o Congresso já havia falado.
Os legisladores também acreditam que desempenharam um papel significativo ao elevar a questão das ameaças à democracia na mente dos eleitores, que rejeitaram nas midterms muitos candidato que se juntaram à narrativa de fraude eleitoral de Trump. /Carolina Marins com AP, NYT e W.POST
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.