JERUSALÉM — Pouco menos de um ano atrás, parecia que a carreira política de Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel que ocupou a função por mais tempo, estava praticamente encerrada. Longe do poder, ele enfrentava dificuldades para manter sua relevância. Procuradores tinham oferecido aos seus advogados um acordo que lhe teria permitido evitar a cadeia no processo que ele responde atualmente por corrupção; em troca, ele deixaria a política por sete anos.
Mas as negociações fracassaram, o julgamento continua, e Netanyahu, que nega as acusações de corrupção, terminou o ano passado, em vez disso, premiê pela terceira vez — o que cimentou sua reputação de mágico capaz de escapar de qualquer camisa de força política.
Na noite da segunda-feira, Netanyahu tentou uma manobra de destreza similar. Depois de avançar por semanas com uma reforma no Judiciário profundamente contenciosa, que tem afrouxado as tessituras da sociedade israelense, Netanyahu buscou outra escotilha de fuga.
A reforma será postergada, anunciou ele um dia depois de protestos e greves enormes, assim como negociações de bastidores, até o fim do recesso de Pessach, a Páscoa judaica, o que deixa aberta a possibilidade de uma concessão mútua mediada com a oposição. E sua coalizão de ultraconservadores de extrema direita e religiosos seguirá de pé, ainda que cambaleante, pelo menos até a próxima crise.
Um truque difícil de executar
Superficialmente, a coisa pareceu o tipo de ato de equilíbrio no qual Netanyahu sempre se sobressaiu. Mas este movimento poderá se mostrar o mais difícil de alcançar.
E trata-se de um desafio que, como a crise social que emergiu nos dias recentes, o consumirá e o afastará de prioridades a longo prazo, como o fortalecimento das relações diplomáticas de Israel com o mundo árabe e trabalhar com os Estados Unidos para combater a ameaça do programa nuclear do Irã.
“Ele é um mágico que sempre tira um coelho da cartola”, afirmou Anshel Pfeffer, um dos biógrafos de Netanyahu. “Mas agora está cada vez mais difícil para ele encontrar algum coelho.”
Apesar de secular, Netanyahu manteve por anos uma profícua aliança política com partidos judaicos ultraortodoxos. Apesar de ter ascendência europeia, ele desde sempre se apresentou como defensor dos judeus originados no Oriente Médio. Na arena mundial, ele estabeleceu uma relação calorosa com o russo Vladimir Putin ao mesmo tempo que preservou as fortes relações de Israel com os EUA. E, na política doméstica, ele frequentemente formou coalizões de governo com partidos à direita e à esquerda, que era capaz de colocar um contra o outro.
A capacidade de Netanyahu de triangular lhe permitiu em 2020 forjar acordos diplomáticos históricos — sem ceder nenhum território aos palestinos — com três países árabes que anteriormente negavam qualquer relação com Israel até a criação de um Estado palestino. Netanyahu definiu o primeiro desses acordos, com os Emirados Árabes Unidos, como uma troca pela suspensão de um plano de anexação da Cisjordânia ocupada, cuja intenção do primeiro-ministro de realmente colocar em prática foi colocada em dúvida por alguns analistas.
A vocação de Netanyahu para desafiar previsões lhe permitiu entrar na política pela primeira vez em 1996, derrotando Shimon Peres depois de superar uma diferença de 20 pontos percentuais nas pesquisas. E sua vocação para resiliência o trouxe de volta ao poder — primeiro em 2009 e novamente no fim do ano passado, apesar do indiciamento por corrupção.
Na mão da extrema direita
Mas, na segunda-feira pairava uma sensação de que desta vez Netanyahu não tem uma rampa de saída para a crise em que meteu a si mesmo, seu governo e seu país. Ele ganhou algum tempo. Mas, no jogo de soma-zero entre seus oponentes nas ruas e seus aliados no poder, isso não deve durar tanto.
Se depois do recesso de abril Netanyahu diluir — ou cancelar totalmente — a reforma no Judiciário, ele arrisca uma ruptura irremediável com os partidos de extrema direita que lhe dão maioria no Parlamento.
E se Netanyahu ceder aos radicais e avançar com o plano de enfraquecer a independência da Suprema Corte e sua capacidade de atuar como fiscalizadora do governo, ele arrisca aprofundar e prolongar a crise social que produziu greves em hospitais, aeroportos e escolas e agitação entre os militares.
“É uma situação em que todos perdem”, afirmou Pfeffer.
O ocaso do fiador da estabilidade
Para muitos, Netanyahu já perdeu algo: sua reputação de condutor seguro, que prioriza a estabilidade e a segurança de Israel.
Antes de retornar para o gabinete, em dezembro, Netanyahu disse repetidamente para aliados e jornalistas que continuaria uma influência estabilizadora apesar de ter formado a coalizão mais à direita e religiosamente conservadora na história do país. “Minhas duas mãos firmes estarão no volante”, afirmou Netanyahu em dezembro à NPR.
Mas sua decisão, do domingo, de demitir seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, um dia depois dele ter alertado que as convulsões sociais causadas pela reforma no Judiciário colocavam em risco a segurança de Estado, deu pareceu aos críticos uma ação de um líder motivado por considerações políticas, em vez de segurança.
E o rebuliço que continuou na segunda-feira — agitação civil, greves em todo o país, suspensões em serviços de saúde e coleta de lixo, fechamentos de escolas e cancelamentos de voos — pareceu qualquer coisa exceto estabilidade.
Uma pesquisa publicada pela Kan, a emissora pública de rádio e TV, sugeriu que muitos israelenses estão mudando de opinião a respeito do primeiro-ministro. Pela primeira vez, mais israelenses afirmam que prefeririam ser liderados por Benny Gantz, legislador da oposição e ex-comandante do Exército, do que por Netanyahu. Quase dois terços se opuseram à demissão de Gallant, e um número similar apoiou o fim imediato da tramitação da reforma no Judiciário.
Tudo isso emana em grande medida de um cálculo anterior de Netanyahu: continuar na política apesar de ser investigado, indiciado e julgado por corrupção. Essa decisão levou a um cisma entre ele e seus aliados mais moderados, o que lhe deixou poucos parceiros de aliança possíveis, exceto entre partidos de extrema direita e ultraconservadores.
Críticos afirmam que Netanyahu tem razões pessoais para minar o Judiciário: tirar dos trilhos o processo a que responde, uma acusação que ele nega. Mas foram aliados de coalizão de Netanyahu, Yariv Levin e Simcha Rothman, que conduziram a reforma no Judiciário nas semanas recentes, não o próprio premiê.
Prejuízos na política externa
Para além do Judiciário, os parceiros de coalizão de Netanyahu também estão minando alguns dos objetivos de política externa que mais o preocupam.
Itamar Ben-Gvir, o ministro de Segurança Nacional de extrema direita, enfureceu muçulmanos ao entrar no complexo da Mesquita de Al-Aqsa, um lugar sagrado em Jerusalém, conhecido por judeus como Monte do Templo, escoltado por policiais armados.
Bezalel Smotrich, o ministro das Finanças de extrema direita, causou indignação ao afirmar recentemente que o povo palestino não existe e pedindo que o Estado de Israel “apague” uma cidade palestina no centro da violência recente na Cisjordânia.
Ambos os ministros prejudicaram os objetivos de Netanyahu de estabelecer pela primeira vez relações entre Israel e Arábia Saudita, fortalecendo o laço que ele ajudou a criar em 2020 entre seu país e os Emirados Árabes Unidos e encorajando Washington a ajudar Israel e atacar a infraestrutura nuclear iraniana.
As relações entre Netanyahu e o governo Biden também estão desgastadas. As preocupações dos EUA com a reforma no Judiciário aliadas às frustrações em relação a Ben-Gvir e Smotrich consumiram grande parte da comunicação na relação bilateral. Há um risco de que a atenção dos EUA às preocupações de Netanyahu a respeito de Irã e Arábia Saudita pode acabar desviada.
Em coalizões anteriores, Netanyahu poderia ter relegado a Ben-Gvir uma posição menos importante. Mas agora seu poder depende do apoio de Ben-Gvir. Para manter esse apoio, Netanyahu lhe ofereceu um prospecto de mais influência, prometendo considerar a formação de uma guarda nacional e colocá-la sob seu controle. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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