Como a alta dos gastos militares da Rússia e aliança com Trump aumentam pressão sobre a Europa

Investimentos russos saltaram 40% em um ano chegando a 6,7% do PIB e superam todos os europeus combinados

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Foto do author Jéssica Petrovna

A Europa soou o alarme. Com o apoio dos Estados Unidos cada vez mais incerto, o outro lado do Atlântico Norte tem urgência em garantir a própria segurança, mas vai precisar de muito para se recuperar na corrida das armas. O Kremlin colocou tanto dinheiro em sua máquina de guerra no último ano que os gastos militares da Rússia agora superam todos os países europeus combinados.

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Os números colocam ainda mais pressão sobre a Europa, que enfrenta um dilema de segurança. Seus líderes, escanteados por Donald Trump, pretendem investir bilhões de dólares na política de rearmamento mas, até aqui, esses esforços têm sido insuficientes para fazer frente à Rússia.

Em apenas um ano, os gastos militares russos saltaram 40% e chegaram a quase US$ 146 bilhões. É o equivalente a 6,7% do PIB. Se calculados com base na paridade do poder de compra, entretanto, os investimentos de Moscou somam US$ 461 bilhões, acima dos US$ 457 bilhões que toda a Europa investe na sua Defesa, segundo o Balanço Militar do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS da sigla em inglês).

Esse cálculo, explicam analistas, faz sentido porque as armas e equipamentos militares produzidos localmente — e precificados em rublos — têm custo bem mais baixo que no mercado internacional, pautado pelo dólar. Por isso, a paridade do poder de compra serve como instrumento para comparar os gastos e capacidades militares.

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O salto, é claro, reflete a mobilização para a guerra de Vladimir Putin, mas é resultado de investimentos militares contínuos, que começaram muito antes das tropas russas avançarem sobre a Ucrânia.

“Vimos a Rússia empreender um programa maciço de modernização militar após os eventos na Georgia, em 2008″, lembra Catherine Sendak, diretora do programa de Defesa e Segurança Transatlântica no Centro de Análise de Políticas Europeias, referindo-se ao apoio a separatistas na antiga República Soviética.

“Obviamente, depois da invasão da Ucrânia, vimos a Rússia se concentrar na indústria militar, na produção de munições também para repor as perdas em campo de batalha. As fábricas estão operando 24 horas por dia, 7 dias por semana, e há enormes investimentos em suas capacidades militares. Isso é parte do alerta para Europa”, afirma.

Outra alerta para Europa é o reconhecimento de que os países não estavam preparados, caso o conflito chegasse aos seus territórios. “A ameaça russa está aqui e afeta os países da Europa, nos afeta”, declarou o presidente Emmanuel Macron no discurso em que sugeriu usar a dissuasão nuclear da França para toda Europa. “Essa agressão parece não conhecer fronteiras”, seguiu, alertando para o aumento dos gastos militares de Moscou. “Quem pode acreditar que a Rússia vai parar na Ucrânia?”.

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Esse senso de urgência é acentuado pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca. Agora, o principal aliado da Europa, os Estados Unidos, dão sinais de aproximação com o seu maior adversário, a Rússia.

“A Otan funciona, em grande medida, pela expectativa de que a cláusula de defesa mútua — o ataque a um é o ataque a todos — será garantida. Esse pilar estruturado na estratégia de dissuasão coletiva está maculado com a expectativa de que os Estados Unidos não mais cumpririam”, aponta Augusto Teixeira, coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI-UFPB) e autor do livro “Geopolítica: do pensamento clássico aos conflitos contemporâneos”.

Donald Trump disse repetidas vezes que, para contar com a proteção dos Estados Unidos, a Otan terá que pagar a conta. Dos 32 aliados, só 10 cumpriam a meta de investir pelo menos 2% do PIB em Defesa até 2023. No ano passado, 23 atingiram esse objetivo.

Mas parece não ser suficiente para Trump. Os Estados Unidos agora pressionam os aliados a gastar 5% de tudo aquilo que produzem para se proteger. O lado europeu da Otan levará uma década para atingir essa meta, se mantiver o mesmo nível de investimentos do ano passado, o que é considerado improvável, segundo o Balanço Militar do IISS.

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(A meta de 2%) foi o ponto de partida para que todos na aliança reconhecessem que era necessário o maior investimento em segurança”, afirma Catherine Sendak, destacando que, mais importante que o número, são as capacidades de Defesa. “É algo tão simples como munições. Como ter, não apenas contratos que entreguem na hora cerca caso precise, mas ter estoques, ter uma mobilidade militar robusta, que permita a movimentação de tropas, plataformas e tecnologia em todo continente. Como compartilhar melhor as informações”.

Essas discussões, afirma, são mais relevantes do que o debate em torno do “número mágico”, que deve dominar a Cúpula da Otan em Haia, no meio do ano. “Os países precisam atingir essas capacidades para cumprir os planos de defesa regional. Isso inclui desde os sistemas de defesa aérea até a mobilização de pessoas”, conclui Catherine Sendak.

O Balanço Militar mostrou que os gastos militares da Europa cresceram 11,7% em no ano passado. Foi o décimo ano consecutivo de uma tendência de alta que começou com a anexação da Crimeia. Mas o dilema de segurança dos europeus vai além dos números.

“O grande problema é que, em matéria de segurança, não dá para improvisar”, afirma Sandro Teixeira, professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). “Para comprar tanques, blindados, mísseis, foguetes, é preciso mandar produzir. E boa parte dos equipamentos que estariam em estoque estão sendo enviados para Ucrânia. A Europa está no seu pior momento e é culpada por estar nessa situação. Todo mundo viu, mesmo antes da guerra, que os gastos militares da Rússia estavam crescendo”.

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A Europa tem uma indústria de Defesa competitiva, mas falta a capacidade de produzir em larga escala, segundo analistas. Esse é o resultado da dependência americana e da falta de investimentos nos tempos de paz que se seguiram à queda do Muro de Berlim. E recuperar essas capacidades militares leva tempo.

As ações das indústrias de Defesa da Europa dispararam este mês com a promessa de mais investimentos. Os líderes dos 27 países que integram a União Europeia concordaram com o plano chamado “ReArm Europe”, que prevê a liberação de 800 bilhões de euros em gastos militares a partir da flexibilização das regras fiscais.

Na mesma linha, o futuro chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, conseguiu aprovar no Parlamento a mudança o dispositivo da Constituição que limita os empréstimos a 0,35% do PIB. A ideia é isentar gastos militares do freio da dívida para aumentar os investimentos em Defesa. “A Europa está correndo atrás do tempo perdido”, resume Sandro Teixeira.

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Soldados da Espanha em tanque Leopard em exercícios da Otan na Polônia.  Foto: Wojtek Radwanski/AFP

Armas ou manteiga?

Acontece que o dinheiro para as armas têm que sair de algum lugar. E as economias europeias estão pressionadas: 17 países já ultrapassaram os parâmetros de referência do bloco para a dívida e déficit (60% e 3% do PIB, respectivamente), de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

“O aumento dos gastos em Defesa tem potencial para pressionar a inflação, mas também altera a composição das despesas do Estado, o que pode levar à pressão popular pela manutenção das políticas públicas e do estado de bem-estar social europeu. É o dilema armas ou manteiga”, afirma Augusto Teixeira.

Nesse sentido, Moscou tem vantagem. Classificada como uma autocracia, a Rússia de Vladimir Purin não está sujeita aos mesmos freios constitucionais e pressões populares que a Europa. Isso permite que o Kremlin mobilize a economia para a sua máquina de guerra, inclusive com a reestatização de empresas em áreas estratégias, como mostrou o Estadão.

A Rússia adicionou meio milhão de trabalhadores à sua indústria bélica, triplicou a produção de projéteis de artilharia, que chegam a 3 milhões por ano, além de fabricar bombas e drones em larga escala.

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“Com os níveis atuais de investimentos, não nos manteremos salvos”, admitiu o secretário-geral da Otan, Mark Rutte, em entrevista recente à Bloomberg. “Como Otan, o que nós produzimos em um ano inteiro em munições — que é crucial — o que a Rússia produz em três meses. Não é sustentável. Não poderemos nos defender se não resolvemos esses dois pontos: investimento e produção em Defesa”.

Rússia: investimento sem limites?

A enorme produção da indústria bélica russa se explica, em partes, pela reposição das perdas em campo de batalha. E são muitas. O Balanço Militar do IISS estima que as forças de Vladimir Putin perderam 1,4 mil tanques mais 3,7 mil veículos de combate de infantaria e blindados. Com isso, o prejuízo desde o começo da guerra chegou a 14 mil carros de combate.

Até aqui, o modelo soviético de produção em larguíssima escala tem conseguido manter a superioridade da Rússia numa guerra de atrito. “É a 1ª Guerra combinada com a tecnologia do Século 21. É uma conflito que combina trincheiras e drones”, define Catherine Sendak.

Em paralelo, os gastos militares criam empregos e mantém o crescimento da economia russa, ainda que de modo artificial. A dúvida é até que ponto Moscou conseguirá sustentar esse sistema.

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“Enquanto a indústria militar demonstra resiliência, os níveis atuais de produção e reforma de veículos armazenados não compensarão as perdas no campo de batalha indefinidamente”, destacou Bastian Giegerich, diretor do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.

As estimativas do IISS sugerem que a Rússia só terá os seus principais tanques de batalha em quantidades suficientes para ações ofensivas eficientes até o começo de 2026 se mantiver o mesmo ritmo de perdas do último ano.

Ainda que consiga manter a máquina de guerra, esse esforço tem efeitos de longo prazo para indústria da Rússia. Com a necessidade de manter as tropas abastecidas, as vendas de armas para outros países despencaram durante o conflito e os russos perderam o posto de segundo maior exportador de armas no mundo para os franceses.

“Isso é importante porque as exportações garantem não só as receitas para sustentar as empresas, que agora contam com elevados benefícios do Estado, mas também a pesquisa, o desenvolvimento, a participação no mercado internacional e, obviamente, a competição com os Estados Unidos”, ressalta Augusto Teixeira.

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“Uma coisa é ser bancado pela demanda do Estado e essencialmente prover armas para a guerra em curso. Outra é ter uma indústria de Defesa com exportações, que seguem os parâmetros internacionais de qualidade e pressionam por inovação. Até porque a exportação de armas não é uma exportação apenas de tecnologia, mas também de influência política”, conclui.