A aparição de um balão da China sobre o céu dos Estados Unidos transformou nos últimos dias o uso destes equipamentos para a espionagem o foco das relações entre os dois países. As autoridades americanas, que derrubaram o balão, afirmam que o objeto se trata de um esforço de vigilância global chinês sobre as capacidades militares de vários países. A alegação gerou um protesto de Pequim, que diz se tratar de um equipamento para pesquisas científicas.
Segundo especialistas, os dirigíveis de vigilância provavelmente são operados pela Força de Apoio Estratégico, um braço militar relativamente novo e secreto das forças armadas chinesas, responsável por vigilância eletrônica e operações cibernéticas. Ela foi criada pelo presidente chinês, Xi Jinping, para modernizar o Exército de Libertação Popular.
A modernização também inclui a expansão da inteligência chinesa, com satélites no espaço e equipamentos no fundo do mar, disse Su Tzu-yun, analista do Instituto de Pesquisa de Defesa e Segurança Nacional em Taipei. “Os balões devem ser entendidos como uma parte do sistema de espionagem eletrônica”, disse.
O especialista acrescentou que mesmo os dados que os balões podem coletar sobre umidade e correntes de ar podem ser militarmente úteis. Segundo ele, se a China algum dia lançar mísseis intercontinentais, capazes de carregarem armas nucleares, a informação atmosférica poderia melhorar a precisão.
Uma revisão de estudos militares da China, artigos de jornais e registros de patentes também ajuda a esclarecer as ambições e os interesses de Pequim com balões semelhantes ao detectado pelos EUA.
Balão chinês nos EUA
Novos materiais e técnicas
Cientistas militares chineses têm estudado novos materiais e técnicas para tornar os balões mais duráveis, mais dirigíveis e mais difíceis de detectar e rastrear. Pesquisadores do Exército de Libertação Popular também têm testado balões como potenciais plataformas aéreas para disparar armas.
Entretanto, os pesquisadores militares alertam que governos rivais, sobretudo os Estados Unidos, poderiam vencê-los no quesito dos balões militares. A preocupação é sobretudo no domínio militar do “espaço próximo”, a camada inóspita da atmosfera entre 19 e 99 quilômetros acima da Terra. “O lugar próximo ao espaço se tornou um novo campo de batalha na guerra moderna”, destaca um artigo do Liberation Army Daily, o jornal oficial das forças armadas da China, em 2018.
O texto comemora o feito da China realizado em 2017 de enviar um balão com uma tartaruga a bordo a mais de 19 km de altura da Terra. Essa capacidade se expandiu de lá para cá e, no ano passado, a China testou o uso de foguetes para impulsionar balões até 40 km acima da Terra.
Os militares chineses, como outros militares, querem “tentar todas as opções”, disse Bates Gill, autor do estudo “Ousando a luta: as ambições globais da China sob Xi Jinping”. “Minha sensação é que o Exército de Libertação Popular está bastante ousado nos dias de hoje”, disse Gill, diretor executivo do Centro de Análise da China do Asia Society Policy Institute. “Não no sentido de ‘Velho Oeste’, mas no sentido de como ele testa os limites.”
Voos em Taiwan
Em 2021, moradores de Taipé, a capital de Taiwan, perceberam que havia um ponto pálido e minúsculo sobrevoando a ilha e alertaram autoridades meteorológicas. O chefe do Departamento Central de Meteorologia de Taiwan, Cheng Ming-dean, verificou que se tratava de um balão, mas não se atentou para o risco de espionagem. ”Naquela época, não acho que Taiwan estivesse prestando atenção especial a esse tipo de coisa”, disse.
Os balões foram vistos duas vezes no final de 2021 e em março do ano passado. Outros menores também foram vistos no início do ano passado.
À medida que alguns Estados menores – particularmente aqueles que os Estados Unidos descrevem como aliados e parceiros – passam a tratar os balões como uma nova ameaça potencial de vigilância a partir de agora, as opções de como responder podem ser limitadas. Segundo o vice-comandante aposentado da Força Aérea de Taiwan, Chang Yan-ting, derrubar balões provavelmente será difícil e caro para muitas forças aéreas.
Há mais de 30 anos, Yan-ting foi enviado como piloto de jato para inspecionar três balões que se acreditava serem chineses. No final, ele decidiu que eles não representavam ameaça, e teria sido muito difícil de derrubar, de qualquer maneira. “É muito difícil; esses balões não dão uma reflexão de radar”, disse.. “Olhe para os Estados Unidos: eles fizeram enormes esforços para enviar F-22s, seu melhor jato de combate, e usaram seus mísseis mais avançados para atacá-lo. É como usar um canhão para atirar em um pássaro pequeno.”
Satélites de inteligência e vigilância
Para ser claro, o núcleo do sistema de coleta de inteligência digital da China continua sendo uma armada de mais de 260 satélites dedicados à inteligência e vigilância. Os balões, no entanto, podem oferecer algumas vantagens sobre os satélites porque podem pairar sobre áreas e podem produzir imagens mais claras, de acordo com autoridades dos EUA que falaram sob condição de anonimato para discutir assuntos sensíveis.
Os militares chineses estão cientes de tais vantagens. Nos campos de batalha modernos, também, “manter a vigilância aérea constante tornou-se uma tarefa urgente”, disse um relatório do Diário do Exército de Libertação da China em 2021. Com satélites e aviões sozinhos, disse o relatório, “é difícil alcançar o alerta antecipado em tempo integral, de escopo completo, de ponto fixo e a vigilância do ar”.
Se a Força de Apoio Estratégico Chinesa foi responsável pela recente missão de balão sobre os Estados Unidos, a relativa novidade e o histórico fragmentado da força podem ajudar a explicar como a operação prosseguiu com aparentemente pouco cálculo do problema que poderia criar, disse Gill, que estudou a força. Foi formado como parte de uma ampla reorganização militar que Xi lançou em 2015, absorvendo partes da Força Aérea, Marinha e Exército.
A má comunicação interna entre o governo militar e civil chinês, e até mesmo dentro do Exército de Libertação Popular e da própria Força de Apoio Estratégico, pode ter contribuído para o problema, disse Gill. “É um bom exemplo de que a mão direita não sabe o que a mão esquerda está fazendo na China”, disse ele.
Novos balões
A recente atenção sobre o programa de balões da China pode desencorajar os militares chineses de implantar novos por um tempo, mas a pesquisa provavelmente avançará.
Cientistas militares, especialmente da Universidade Nacional de Tecnologia de Defesa da China, trabalharam em novos materiais, projetos e ferramentas de navegação para tornar os balões mais ágeis e duradouros. Eles registraram patentes para inovações como um “método de rastreamento de trajetória de voo tridimensional para um dirigível não tripulado”.
Artigos nos jornais militares chineses também indicam que os chineses estão de olho aos desenvolvimentos de balões nos Estados Unidos, França, Israel e outros países.
No ano passado, um professor da Universidade Nacional de Tecnologia de Defesa escreveu que a China poderia tentar desenvolver balões inteligentes de alta altitude que sejam capazes de escapar da atmosfera inferior mais turbulenta e capturar as correntes de vento mais estáveis da atmosfera superior, permitindo-lhes navegar longas distâncias ajudados por pequenos motores. “Com suas muitas vantagens”, disse outro artigo no mesmo jornal no ano passado, “os balões parecem estar inaugurando a primavera de desenvolvimento”.
Pesquisadores chineses também especularam sobre o uso de balões de alta altitude para transportar e lançar mísseis do espaço próximo, onde seriam mais difíceis de detectar, para a Terra. Em 2018, a emissora estatal da China disse que os pesquisadores testaram uma plataforma de balão que, segundo eles, poderia ser usada para lançar armas hipersônicas - que podem voar a várias vezes a velocidade do som - do ar.
Entretanto, os relatórios chineses sobre os avanços militares do país são propensos ao exagero. No estudo das armas hipersônicas, os militares observaram que o teste usou modelos em escala, e é discutível se as outras capacidades de balão militar da China sempre correspondem às alegações feitas.
Uma prova disso pode ser a aparição do balão nos EUA. Deficiências técnicas podem ajudar a explicar o aparecimento equivocado, na véspera da viagem do secretário de Estado, Antony Blinken, a Pequim. A viagem foi cancelada. “Pode ter sido um mau momento”, disse Su, o pesquisador militar taiwanês. “Tornou-se relativamente fácil controlar a direção dos balões, mas controlar sua velocidade é uma questão diferente.”/ COM W.POST
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