Como a China está expandindo bases militares secretas no Oriente Médio

Serviços de espionagem dos EUA detectaram atividades de construção em uma instalação chinesa supostamente militar nos Emirados Árabes Unidos em dezembro

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Por John Hudson, Ellen Nakashima e Liz Sly

Os serviços de espionagem dos Estados Unidos detectaram atividades de construção em uma instalação chinesa supostamente militar nos Emirados Árabes Unidos (EAU) em dezembro — um ano depois que o país aliado dos americanos rico em petróleo anunciou que suspendeu o projeto em razão de preocupações de Washington, de acordo com documentos ultrassecretos de inteligência obtidos pelo jornal The Washington Post.

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As atividades em um porto próximo de Abu Dhabi estão entre várias ocorrências nos EAU envolvendo militares chineses que a inteligência dos EUA tem monitorado em razão de uma preocupação de que os Emirados — antigos parceiros dos americanos em segurança — estejam desenvolvendo relações de segurança mais próximas com a China em detrimento dos interesses de Washington, de acordo com os documentos e entrevistas relacionadas ao tema com graduadas autoridades do governo Biden. Trabalhadores chineses vistos em torno de campos de construção sensíveis também deixaram autoridades americanas inquietas.

Os esforços de Pequim nos EAU são parte de uma campanha ambiciosa do Exército de Libertação Popular (ELP), para construir uma rede militar global que inclui pelo menos cinco bases e 10 centros de apoio logístico fora da China até 2030, afirma um dos documentos, que incluem um mapa de outros projetos de instalações no Oriente Médio, no Sudeste Asiático e em vários pontos da África.

Autoridades militares chinesas chamam a iniciativa de “Projeto 141″, afirmam os dados vazados.

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O príncipe herdeiro de Abu Dhabi, Sheikh Mohammed bin Zayed Al Nahyan, à esquerda, e o presidente chinês, Xi Jinping, após uma cerimônia de assinatura no Grande Salão do Povo em Pequim Foto: Andy Wong/Reuters - 22/7/2019

O Post obteve os documentos secretos, que não haviam sido revelados anteriormente, em um conjunto de dados de inteligência vazado na plataforma de mensagens Discord. As revelações, que incluem detalhes a respeito do programa de vigilância aérea de Pequim e planos de desenvolvimento de drones supersônicos, ocorrem em um momento de tensões elevadas entre EUA e China, conforme ambos os países competem por influência global e recursos.

O nível de preocupação a respeito das ações da China nos Emirados varia entre autoridades americanas, algumas considerando o desdobramento algo administrável e outras percebendo uma ameaça significativa que justificaria uma pressão mais contundente dos EUA. Também não existe consenso a respeito de os Emirados terem tomado uma decisão estratégica de se alinhar profundamente com a China ou preferido manter um equilíbrio delicado que inclui os EUA, seus protetores de longa data.

“Há algumas pessoas no governo pensando que os Emirados decidiram fundamentalmente trabalhar conosco. Eu não acredito nisso”, afirmou uma graduada autoridade do governo, que, como outras fontes entrevistadas para a elaboração desta reportagem, falaram sob condição de anonimato.

Os líderes dos EAU “consideram a China enormemente importante neste momento e crescendo no Oriente Médio”, afirmou a fonte.

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Papel global

As revelações coincidem com a busca da China em expandir seu papel de player global — mediando a reaproximação entre os arqui-inimigos Arábia Saudita e Irã, no mês passado, e propondo um plano de paz de 12 pontos, em fevereiro, para pôr fim à guerra na Ucrânia. O Oriente Médio se tornou um foco de interesse particular na competição entre EUA e China, conforme Pequim assina acordos e forja relações políticas mais próximas na região anteriormente dominada pelos americanos.

Um representante dos EAU, aludindo para o fato de o FBI ter prendido um suspeito no caso do vazamento, recusou-se a responder perguntas a respeito dos documentos de inteligência, afirmando que “nossa política é não comentar material fora de contexto presumivelmente obtido de forma criminosa”.

Liu Pengyu, porta-voz da Embaixada da China em Washington, afirmou que as preocupações americanas a respeito de instalações militares chinesas no exterior são equivocadas.

“Enquanto princípio, a China conduz policiamento normal e cooperação em segurança com outros países sobre a base da igualdade e do benefício mútuo”, afirmou Liu. “Os EUA mantêm mais de 800 bases militares no exterior, o que causa preocupação a muitos países em todo o mundo. Eles não estão em posição para criticar outros países”, acrescentou ele.

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Autoridades americanas insistem que não permitirão que uma base chinesa torne-se operacional nos EAU, afirmando que uma instalação desse tipo colocaria em risco atividades militares sensíveis dos EUA no Oriente Médio.

“EAU são aliados próximos, e nós estamos regularmente envolvidos com sua alta liderança em vários temas regionais e globais”, afirmou uma segunda autoridade do governo. Essa fonte disse que “não há indícios atuais” de que uma base chinesa poderia ser completada sem uma elevação significativa na atividade, o que seria detectável.

As autoridades americanas têm foco principalmente no Porto de Khalifa, cerca de 80 quilômetros ao norte da capital, onde um conglomerado chinês de frete opera. Em dezembro de 2021, os EAU anunciaram que suspenderam uma construção chinesa naquele terminal marítimo após autoridades americanas argumentarem que Pequim pretendia usar o local com objetivos militares.

“Paramos o trabalho nas instalações”, afirmou Anwar Gargash, conselheiro diplomático da liderança dos EAU, durante um evento em um instituto de análise de Washington, enquanto seu país enfrentava pressão pública para se posicionar em relação a uma reportagem do Wall Street Journal que detalhou as atividades chinesas.

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Mas um ano depois, a instalação do ELP “provavelmente foi conectada às redes municipais de eletricidade e água”, e “um perímetro murado foi completado para um campo de armazenamento logístico do ELP”, afirma um dos documentos de inteligência dos EUA vazados. Um segundo documento alerta que “a instalação do ELP” é “um elemento importante” do plano de Pequim de estabelecer uma base militar nos EAU.

Sistemas defensivos de mísseis balísticos

A atividade detectada recentemente no local convenceu algumas autoridades americanas de que os EAU não têm sido “honestos” com Washington. “Não acho que eles tenham chegado nos chineses e falado, ‘Acabou, nós não vamos adiante com isso’”, afirmou a primeira autoridade do governo.

O governo Biden também está preocupado em razão de membros do ELP terem sido vistos em duas bases militares dos EAU, no interior do país, onde os aliados árabes operam drones e sistemas defensivos de mísseis balísticos, afirmaram autoridades familiarizadas com o assunto.

Além disso, autoridades americanas acreditam que o ELP esteja envolvido na construção e expansão de uma pista de pouso e decolagem na costa perto de Abu Dhabi, mas alguns integrantes do governo ponderam que a existência de membros do ELP em um campos de construção chineses não é, por si só, alarmante, notando que eles estão presentes em construções realizadas em outros países que não funcionam como posto militar avançado.

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A expansão da presença da China nos portos do mundo facilita para o país coletar dados de inteligência a respeito de movimentos militares e atividades dos americanos nessas regiões, afirmou Camille Lons, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. Sob uma legislação aprovada na China em 2017, até empresas comerciais chinesas são obrigadas a compartilhar informações com os militares se lhe for requisitado. “É difícil saber se isso acontece, mas o tema causa preocupação”, afirmou ela.

Como outros especialistas entrevistados para esta reportagem, Lons falou em termos gerais e não analisou diretamente os documentos vazados.

Dificuldades para os EUA

Jacqueline Deal, pesquisadora-sênior do Instituto de Pesquisa em Política Externa, afirmou que a China estabelecer uma base e instalações associadas nos EAU complicaria a capacidade dos americanos de operar na região. Uma das maiores bases dos EUA no Oriente Médio, Al-Dhafra, fica a cerca de 80 quilômetros do Porto de Khalifa.

“Se nós tivermos forças na região, tentando movê-las ou usá-las, eles terão uma base para observar e possivelmente interferir”, afirmou ela. “E terão mais influência com o governo local.”

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O terminal do Porto de Khalifa é parte de uma rede de mais de 100 portos comerciais localizados estrategicamente nos quais a China tem investido ao redor do mundo. Além de EAU, autoridades americanas identificaram instalações chinesas em Cingapura, Indonésia, Sri Lanka, Quênia, Tanzânia e Angola, entre locais em que portos chineses podem servir a um uso duplo, potencialmente possibilitando a Pequim “tanto interferir em operações militares americanas quanto apoiar operações ofensivas contra os EUA”, de acordo com um relatório do Pentágono ao Congresso de 2020.

Em algumas partes do mundo, como na Europa, é improvável que instalações portuárias sejam usadas com objetivos militares, porque os países-anfitriões jamais permitiriam. Mas a Rota Marítima da Seda, como Pequim chama sua rede, oferece outras vantagens.

F-22 Raptor da Força Aérea dos EUA chega à Base Aérea de Al Dhafra, Emirados Árabes Unidos Foto: U.S. Air Force Central Command/Sgt. Chelsea E. FitzPatrick via Reuters - 12/2/2022

Participações da China em pelo menos uma dúzia de portos europeus dão a Pequim um nível de controle sobre rotas de fornecimento que dificultaria aos europeus impor sanções sérias contra os chineses, caso vejam necessário, e poderiam permitir aos chineses perturbar ou desviar rotas de fornecimento ocidentais no advento de um conflito, afirmou Francesca Ghiretti, do Instituto Mercator para Estudos de China, um centro de análise alemão.

Autoridades americanas acreditam que as relações econômicas da China em expansão dão ao país oportunidade de estabelecer presença militar em regiões novas — apesar de reconhecer que a rede global de bases dos EUA é muito mais ampla e poderosa.

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Atualmente, Djibouti é a única localidade no exterior em que a China reconhece ter base, inaugurada oficialmente em 2017 pela Marinha do ELP. Lá, de acordo com o documento, em fevereiro, o ELP “quase certamente se aproximava de completar a construção de um prédio para a operação de antenas em Doraleh”, para espionagem via satélite sobre a África, a Europa e o Oriente Médio.

Em junho, o Post noticiou que a China estava avançando com planos secretos de construir uma instalação para uso exclusivo do ELP em uma base naval do Camboja no Golfo da Tailândia. Ambos os países negaram que isso ocorresse, as autoridades cambojanas afirmaram que a China estava apenas financiando uma reforma na base e ajudando a treinar cambojanos para consertar navios. Mas uma autoridade chinesa em Pequim confirmou ao Post que “um setor da base” será usado pelos “militares chineses”. Um dos documentos secretos reforça a versão, afirmando que um setor da instalação seria designado como uma base militar “adequada para uma divisão”.

Em outras regiões, um grupo de trabalho chinês tinha planos de visitar Guiné Equatorial e Gabão em fevereiro, para dar assistência aos preparativos para a construção de um centro de treinamento conjunto e treinar cidadãos locais para operar equipamentos de comunicação, de acordo com os documentos vazados.

Mas a maioria desses projetos não soou o mesmo alarme em Washington que as atividades da China nos EAU porque esses países-anfitriões não são tão próximos dos EUA. Desde 2012, os EAU são o terceiro maior comprador de armas dos americanos e suas Forças Armadas combateram ao lado de soldados dos EUA no Afeganistão, no Iraque e na Síria. Os EAU também abrigam 5 mil militares americanos em Al-Dhafra, e navios de guerra americanos ficam ancorados no porto de águas profundas de Jebel Ali.

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Contêineres são vistos no Porto Khalifa de Abu Dhabi após sua expansão Foto: Satish Kumar/Reuters - 11/12/2019

Os EAU estão começando a considerar um futuro em que a China poderá se rivalizar com os EUA e até eclipsá-los enquanto potência militar, afirmou Riad Kahwaji, diretor da consultoria em segurança Inegma, com base em Dubai. “Os chineses conseguiram substituir vocês em todos os outros aspectos. Então por que isso não ocorreria com a segurança?”, disse ele.

O analista político dos EAU Abdulkhaleq Abdulla afirmou que seu país começou a explorar outros parceiros em segurança depois da resposta dos EUA, considerada vagarosa pelos Emirados, ao ataque a míssil contra Abu Dhabi praticado por rebeldes houthi, apoiados pelo Irã, do Iêmen. Os EAU integraram a coalizão apoiada pelos sauditas que empreendeu por anos uma feroz campanha de ataques aéreos contra militantes houthi.

Mas duas graduadas autoridades afirmaram duvidar que os EAU chegariam ao ponto de colocar em risco sua relação de segurança com os EUA, mesmo que prefiram a posição agnóstica da China em relação a direitos humanos e democracia.

Ainda assim, as relações dos EAU com a China tensionaram planos de avançar com uma venda de US$ 23 bilhões de caças de combate F-35, drones Reaper e outras armas dos EUA, ao mesmo tempo que causaram hesitações dentro do governo Biden a respeito da necessidade de Washington de priorizar a preservação de seu legado de parcerias no Oriente Médio ou afrontar a ascensão da China.

“Tem gente pensando que o momento é muito angustiante no Oriente Médio, e o elemento mais importante da nossa diplomacia agora tem de ser um grau de paciência”, afirmou uma graduada autoridade americana. “Mas há debates, sem dúvida.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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