Como a cultura e a herança histórica viraram uma frente de batalha na guerra da Ucrânia

Em uma guerra em que Kiev acusa a Rússia de tentar apagar a história ucraniana, mais de 400 locais considerados propriedade cultural já foram destruídos ou danificados, segundo a Unesco

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL A KIEV, LVIV E CHERNIHIV* - Quando a Rússia promoveu a invasão em larga escala da Ucrânia em fevereiro de 2022, o curador de arte Leonid Marushchak correu para salvar uma coleção privada de artes da era soviética armazenada em uma estrutura militar na região de Donetsk.

Embora ele admita que a sua primeira preocupação deveria ser sua própria segurança, o seu maior medo nessa guerra é a destruição ou roubo das heranças históricas e culturais da Ucrânia.

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“Esta é uma guerra por identidade e existem muitos componentes que colocam em risco o patrimônio cultural”, afirmou em entrevista ao Estadão por vídeo-chamada, já que ele se encontrava na região de Kherson, atualmente sob ocupação russa.

Em uma guerra em que Kiev acusa a Rússia de tentar apagar a história ucraniana, mais de 400 locais considerados propriedade cultural já foram destruídos ou danificados, segundo a Unesco. O governo ucraniano, porém, fala em mais de mil, alegando que não é possível ter dimensão dos números nas áreas ocupadas pela Rússia, como o Donbas.

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Monumento Bohdan Khmelnitski em frente à Catedral de Sofia, na Praça Sofia, é protegido por fortes estruturas de ferro Foto: Carolina Marins/Estadão

O caso mais emblemático foi o bombardeio ao Teatro de Drama de Donetsk, em Mariupol, onde centenas de pessoas se refugiaram dos ataques. Quinze pessoas morreram no bombardeio, além da destruição de um edifício considerado histórico. O sul e o leste reúnem o maior número de patrimônios danificados, mas também foi possível encontrar resquícios de destruição em Lviv, Kiev e Chernihiv, cidades visitadas pelo Estadão em conjunto com uma delegação de jornalistas latino-americanos.

A destruição cultural não é uma exclusividade da guerra da Ucrânia. No território da Faixa de Gaza, onde uma guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas se desenrola desde outubro, cerca de 50 locais considerados históricos foram afetados. Considerado um crime de guerra, a destruição desses locais foi um dos argumentos que embasou o pedido pela África do Sul de investigação sobre genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça.

“A história não é só a história de um local, mas é a história da humanidade e você perder essas coisas é um crime, não ter acesso a artefatos, artes e locais que contam a história de toda a humanidade, é um crime”, observa Christie Chadwick, professora de Teologia no Centro Adventista de São Paulo (UNASP) e doutora em Arqueologia Bíblica e História do Antigo Oriente em entrevista ao Estadão em São Paulo.

A retirada de obras

“Quando uma guerra começa, a primeira coisa em que você pensa é em salvar a sua vida, e preservar um item artístico ou uma coleção artística é algo que não está no topo da sua lista, por isso muita coisa foi ficando para trás”, afirma Marushchak, que diz estar mais preocupado com a segurança das pessoas que atuam junto com ele do que com a sua própria. “Estou consciente dos riscos que corro”.

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As coleções privadas da região do Donbas, onde a Rússia reivindica como sua, foram as primeiras que ele ajudou a tirar do conflito e só então seu grupo passou a retirar obras de museus, onde o trabalho é mais difícil devido à falta de centralização das retiradas, o que aumenta o risco para que as peças sejam extraviadas, roubadas ou perdidas.

Em Lviv, monumentos são protegidos com estruturas para evitar de serem destruídos por ataques; na frente é colocada uma imagem da estátua protegida Foto: Carolina Marins/Estadão

“Os museus ficaram sozinhos nessa guerra. Eles esperavam que houvesse um mecanismo de retirada das obras depois da invasão de 2014 [da Crimeia], mas não foi o caso. Então tomamos a responsabilidade para nós”, disse.

Com ajuda do ministério da Cultura, diz, ele e seu grupo foram capazes de resgatar centenas de milhares de peças de museus em áreas consideradas de fogo ativo. “Pode levar dias para que uma ou duas toneladas de peças de museu possam ser retiradas. E ainda têm que colocá-las em um carro e andar por centenas de quilômetros para levá-las para outro lugar.”

Nesses dois anos, conta que já se viu em situações de risco mais de quarenta vezes, além de ter feito inimigos no caminho, já que há muitos interesses por trás da tomada de obras de arte.

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“Por exemplo, em uma região que foi imediatamente ocupada no início da guerra, todos os museus foram saqueados e alguns itens como realistas, artefatos ou as condecorações militares dos tempos soviéticos da 2ª Guerra Mundial foram roubados, especialmente porque na Rússia existe um grande número de pessoas que colecionam esse tipo de arte do socialismo ou essas condecorações militares”, relata.

Retirar uma obra de arte de lugar requer muito esforço, explicou o Ministro da Cultura da Ucrânia, Rostislav Karandieiev. Além do risco de ataque durante a retirada em um museu ou local de armazenamento, é preciso uma logística segura de transporte e um local para guardar peças que podem ter variados tamanhos.

“Antes da invasão em grande escala, não imaginávamos que todo o território da Ucrânia seria bombardeado por mísseis russos. Por isso, agora começamos a pensar em depósitos seguros para os artefatos do nosso museu”, afirma o ministro. Segundo ele, países europeus têm se oferecido para guardar os patrimônios e também passaram a repensar seus próprios locais de armazenamento.

Igreja tem vidraças protegidas por placas de metal em Lviv, Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

A cultura como campo de batalha

Não é incomum patrimônios culturais virarem alvos em guerras, especialmente aquelas de caráter étnico. A Convenção de Haia de 1954 prevê a proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra e torna crime de guerra a sua destruição intencional. O documento, criado após a 2ª Guerra, foi ratificado por mais de 130 países, entre eles Ucrânia e Rússia, bem como Israel.

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Qualquer dano a bens culturais, independentemente do povo a que pertença, é um dano ao patrimônio cultural de toda a humanidade, porque cada povo contribui para a cultura mundial.

Preâmbulo da Convenção de Haia de 1954

Quem caminha por Lviv, no oeste da Ucrânia, e na capital Kiev, ambas cidades na lista de Patrimônio Mundial em Perigo da Unesco, vê os esforços para proteger locais importantes. Na famosa Praça Sofia, no centro antigo de Kiev, o antigo monumento Bohdan Khmelnitski em frente à Catedral de Sofia, é protegido por pesadas estruturas de ferro para o caso de bombardeios.

Por toda cidade, e também em outros locais da Ucrânia, sacos de areia formam barricadas ao redor de estátuas e prédios históricos. Vidraças de catedrais são protegidas por tapumes.

Em Lviv, apelidada de “Paris ucraniana” devido à sua importância cultural, os monumentos espalhados por praças e calçadas foram substituídos por estruturas de ferro com uma ilustração da estátua original que ocupa aquele espaço.

Em Lviv, monumentos são protegidos com estruturas para evitar de serem destruídos por ataques; na frente é colocada uma imagem da estátua protegida Foto: Carolina Marins/Estadão

“Esta não é um guerra travada contra o governo ou o Estado. Esta é uma guerra travada contra a nação. De forma semelhante a como Hitler estava apagando os judeus, a Rússia continua a apagar os ucranianos”, afirmou o governador de Lviv, Maksim Kozytski.

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Em Chenihiv, o histórico prédio do Centro Regional da Juventude, construído em 1939 para ser um cinema, foi bombardeado já nos primeiros dias da guerra, em fevereiro de 2022. Até hoje o edifício está em destroços e tenta se reconstruir com ajuda de financiamento privado e internacional. No total, a cidade tem 22 patrimônios históricos danificados, segundo contagem da Unesco atualizada em 6 de junho de 2024.

“A destruição do patrimônio cultural pelo uso de armas explosivas ganhou uma importância adicional neste conflito armado porque a cultura é central para a justificativa da Rússia para invadir a Ucrânia, sua negação da soberania e Estado ucraniano, e sua aparente intenção de apagar a identidade ucraniana”, escreveu a Human Rights Watch em um relatório publicado em abril sobre a destruição da herança cultural na Ucrânia.

Um relatório do Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU considerou que os ataques russos ao patrimônio cultura da Ucrânia são intencionais, “incluindo tentativas de apagar a cultura local, a história e língua nos territórios ocupados”, diz no documento de fevereiro de 2023.

Gostaria de enfatizar mais uma vez que a Ucrânia não é apenas um país vizinho para nós. É uma parte inalienável da nossa própria história, cultura e espaço espiritual.

Vladimir Putin em seu discurso no dia da invasão da Ucrânia

Prédio do Centro Regional da Juventude de Chernihiv, considerado histórico, foi bombardeado durante um ataque aéreo russo em 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

O desafio de reconstruir

De acordo com o ministro Rostislav Karandieiev, a Ucrânia já traça um plano para tentar recuperar o que já foi perdido na guerra, mas reconhece que muitas peças e obras não poderão ser recuperadas e muito provavelmente serão substituídas por réplicas. Mas o maior desafio será de pessoal.

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“Eram principalmente mulheres que trabalhavam na área cultural, nas bibliotecas, nos teatros, nos cinemas, nos museus etc. E foram essas mesmas mulheres que fugiram por causa da guerra com seus filhos, deixando o setor quase sem força de trabalho em todas as comunidades locais”, aponta.

Da mesma forma que é quase impossível recuperar o patrimônio que foi destruído, o mesmo ocorre com algumas profissões na cultura, como músicos, pintores, artistas, dançarinos; é uma área que as pessoas não conseguem dominar já sendo adultos e se tornarem profissionais.

Rostislav Karandieiev, ministro da Cultura da Ucrânia

Para isso, afirma o ministro, o país tem se preocupado em trazer de voltar os mais de 6 milhões de refugiados, pedir fundos para investir na recuperação cultural e também firmar contratos de formação de profissionais da área com países aliados, principalmente da Europa.

De acordo com as contas da Unesco, dos 400 patrimônios danificados, 137 são locais religiosos, 191 são edifícios de interesse histórico ou artístico, 31 são museus, 25 são monumentos, 15 são bibliotecas e ao menos um arquivo. A região de Donetsk lidera com mais de 90 locais destruídos, seguida por Kharkiv com 69, Odessa com 49 e Kiev com 44.

“Na guerra a gente não perde só artefatos e locais, mas a gente perde pessoas que estão há tanto tempo num local que elas se tornam os preservadores de uma história local, de um costume local e de uma linhagem”, observa a professora Christie Chadwick. “Isso é o que mais acontece na questão da Ucrânia. Temos pessoas, famílias é grupos étnicos que estão lá há tanto tempo e que ao perder este grupo, você perde a história que esse grupo conta e a contribuição que esse grupo tem”.

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Interior do Centro Regional da Juventude de Chernihiv, que tenta se reconstruir com ajuda de verba internacional Foto: Carolina Marins/Estadão

Crime de guerra e o caso de Gaza

Em outra guerra, na Faixa de Gaza, a destruição de locais históricos e culturais foi um dos argumentos que embasou o pedido de investigação apresentado pela África do Sul à Corte Internacional de Justiça. “Israel danificou e destruiu numerosos centros de estudos e de cultura palestinos”, diz um trecho do documento listando os locais. “Os ataques de Israel destruíram a história antiga de Gaza”.

Sendo a região de Israel e da Palestina um dos locais mais antigos habitados pelo ser humano e o berço das três religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo, diversos organismos internacionais exigem a proteção dos patrimônios culturais.

A Unesco já lista cerca de 50 locais danificados em Gaza desde 7 de outubro, entre eles: 11 locais religiosos, 28 edifícios de interesse histórico ou artístico, dois depositos de bens culturais móveis, quatro monumentos, um museu e quatro sítios arqueológicos. Organizações que cuidam de herança cultural falam em números entre 100 e 200.

Chadwick ressalta que no caso de Gaza a situação se torna ainda mais dramática considerando que há muitos locais históricos e arqueológicos que nunca foram explorados. “Gaza foi ocupada pelos filisteus há muito tempo e há muito material lá que nunca foi escavado. Tirar os artefatos de lá não resolve porque você terá um artefato que foi tirado do seu contexto, não tem como datar precisamente, não há uma garantia de de ser realmente um artefato original”, afirma.

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Estátua protegida de ataques em Lviv, na Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia

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