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Cúpula do Brics deve celebrar o Sul Global e atacar a ordem liberal liderada pelos EUA

Encontro em Kazan, na Rússia, será uma vitrine para Putin se mostrar menos isolado e impulsionar a agenda contra o Ocidente de Moscou e Pequim

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Foto do author Carolina Marins

Kazan, na Rússia, não é uma cidade qualquer. Mais antiga que Moscou, conhecida como “terceira capital” da Rússia, ela foi fundada no final do século 13 pelos mongóis (tártaros), e conquistada em 1552 por, Ivan o Terrível. Desde então, se tornou uma joia russa. A cidade é um dos centros industriais e financeiros do país, e o principal centro econômico da região do Volga. Com tanta importância econômica e histórica, Kazan vai sediar a 16ª cúpula dos líderes do Brics, que começa nesta terça-feira, 22, e é a primeira com a nova composição do bloco que, no ano passado, ampliou os seus membros de cinco para dez.

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Como Vladimir Putin não dá ponto sem nó, a escolha de Kazan é um recado para o mundo ocidental: a reunião quer afastar a sombra de pária internacional por causa da guerra na Ucrânia. A reunião é vista no Kremlin como uma grande oportunidade para Putin demonstrar que o país não está sozinho, e fazer um desafio direto ao Ocidente. Tanto Moscou quanto a China de Xi Jinping buscarão se projetar como líderes do chamado Sul Global e utilizar-se disso para pressionar os aliados por um novo sistema econômico que os afaste dos Estados Unidos.

A grande novidade do encontro deste anovai ser a participação dos cinco novos membros: Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Arábia Saudita (esta última ainda não respondeu ao convite de adesão e enviará o ministro de Relações Exteriores). Neste fim de semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cancelou sua ida à cúpula em razão de um acidente doméstico no sábado, 19, e enviará o chanceler Mauro Vieira.

Não apenas os antigos e os novos membros vão comparecer, mas a Rússia convidou mais de 30 países e organizações para acompanharem a cúpula como observadores. Isso também tem como objetivo fortalecer Putin politicamente, já que o líder russo faltará à reunião do G-20 no Rio e também não esteve na cúpula anterior do Brics na África do Sul por ter um mandado de prisão no Tribunal Penal Internacional contra si. Assim, a reunião servirá para colocar o líder russo na foto com dezenas de líderes internacionais.

A cidade de Kazan, na Rússia, receberá nos próximos dois dias a 16ª Cúpula do Brics Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Em uma reunião a portas fechadas com jornalistas que viajaram à Rússia na semana passada, Putin negou que esta cúpula será um evento “antiocidental”, mas sim “uma alternativa ao Ocidente”. Seu ministro das Finanças, Anton Siluanov, já adiantou que Moscou advogará com mais força pela desdolarização da economia mundial e por um novo sistema de trocas financeiras.

Por sua guerra na Ucrânia, a Rússia foi banida do sistema financeiro de transações internacionais Swift, o que afeta diretamente as transações comerciais com os bancos do país. O tema também é de interesse da China, que vive uma disputa econômica com os americanos e deseja realizar comércio em sua própria moeda e não em dólar.

“Esses não são temas novos, é importante ressaltar, vêm desde 2012 e 2013. O presidente anterior da China, Hu Jintao, já dava sinais de que isso interessava à China na época da crise de 2008″, observa o professor de Relações Internacionais da FGV Guilherme Casarões. “Mas eles se tornaram mais urgentes nos últimos tempos.”

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Agenda antiocidental e Brasil isolado

Se por um lado Rússia e China buscam colocar o Brics em uma posição de rivalidade com o Ocidente, especialmente com as pautas do G-20, por outro Brasil e Índia sempre foram as vozes dissonantes nesse sentido dentro do grupo, evitando que ele se transformasse numa coalizão antiocidental. Com a expansão do bloco, no entanto, que agregou países com interesse em se aproximar de Pequim e sem constrangimentos a Moscou, esse equilíbrio se dilui.

“As dinâmicas dentro do bloco estão em um processo de transição”, afirma o professor da FGV Pedro Brites. “Em termos relativos, o Brasil perdeu um pouco seu poder com a entrada de novos membros e ainda perdeu a oportunidade de incluir um membro latino-americano”. A Argentina chegou a ser convidada na cúpula do ano passado, mas o libertário Javier Milei recusou.

“O Brasil nessa história acabou ficando um pouco isolado tanto em termos geopolíticos quanto em termos do próprio alcance da sua política externa porque hoje a posição brasileira está diluída”, afirma Casarões. “Ela nunca foi dominante por razões óbvias, mas uma coisa é não ser dominante e conseguir construir equilíbrio quando eram cinco membros, outra coisa é agora com dez”.

O que o Brasil vai fazer ao ver o grupo caminhando para uma agenda, visão e apresentação de mundo que é fundamentalmente antiocdental sendo que o Brasil ainda tem uma um lugar que é muito mais de construir pontes entre o Ocidente e o não-Ocidente do que de ficar confrontando o Ocidente?

Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da FGV

Essa divergência de agenda, segundo Casarões, também pode ser vista nas próprias pautas do Brics em comparação com os temas da próxima reunião do G-20 que será no Brasil em novembro. “A desdolarização e um novo sistema de comércio deveriam ser debates do G-20, mas o Brasil preferiu levar os temas do combate à fome e das mudanças climáticas que refletem as necessidades de urgência da política externa brasileira. Isso já mostra um desalinhamento de pautas e expectativas”.

A disputa pela liderança do Sul Global

Um fato é que as novas adesões dão ainda mais peso ao Brics como um bloco do chamado Sul Global e sua proposta de buscar uma alternativa financeira e geopolítica à ordem mundial vigente.

O Sul Global reúne os países de fora do eixo EUA-União Europeia-Japão, que buscam fazer frente à ordem unipolar em nome de um mundo multipolar e com maior integração entre economias emergentes.

Rússia e China tentam se projetar como as lideranças do Sul Global e usarão a cúpula do Brics para isso Foto: Sergei Bobylev/AP

Esse projeto do Sul Global que tem caído como uma luva para a Rússia, a nação mais sancionada no mundo e que precisa buscar novos mercados para não colapsar. Para Pequim também o discurso é perfeito para avançar sua agenda de expansão global e rivalidade com os EUA. Pela lógica do conceito - que não é preciso - o “Norte Global” seria justamente o Ocidente.

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No entanto, para Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global no Quincy Institute e professor na Universidade George Washington, nem China nem Rússia na verdade pertencem ao que se define como Sul Global pelo simples fato de serem potências. E esse choque pode ficar mais evidente no Brics ampliado.

“Sul Global ao meu ver é Brasil, Índia, África do Sul e assim por diante, e suas perspectivas estão longe de ser as mesmas de China e Rússia”, argumenta. “Quem tende a se dar melhor com isso é a China, porque ela pode argumentar que não é a Rússia, portanto, não sofre tanta pressão do Ocidente e ao mesmo tempo é um país forte para o Sul Global”.

Embora eu discorde que a China seja Sul Global, ela vai dizer que está focada em desenvolvimento - e se aproxima de países do Sul Global para isso - e ela vai amplificar essa mensagem na cúpula.

Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global no Quincy Institute

Não à toa, a China foi habilidosa em fazer de suas pautas os debates centrais das últimas cúpulas do Brics, incluindo com a escolha dos países a serem convidados.

“Estamos diante de um bloco de uma natureza muito diferente da qual ele foi criado″, observa Casarões. “Por um lado, indica a construção de uma nova realidade geopolítica centrada, principalmente, na China; e segundo que temos uma redefinição da própria ideal de Sul Global e mundo emergente”.

O que esperar da cúpula

Apesar da pressão de Rússia e China para avançar nas discussões sobre desdolarização e um novo sistema financeiro, a ideia deve avançar muito pouco na prática nesta 16ª cúpula, pelo simples fato de não ser uma mudança que se faça do dia para a noite. É por isso, afirma Sarang Shidore, que esta cúpula não trará mudanças incrementais ao Brics.

“A conversa sobre moeda comum não é prática no momento”, diz. “Com certeza, eles vão continuar falando sobre trocas comerciais em moedas locais, por exemplo, o Brasil fazer comércio com a China em reais e a China fazer comércio em rúpias com a Índia ou até moedas digitais. Mas não estão muito próximos disso. Eu acho que as conversas sobre isso vão progredir um pouco, mas não haverá um avanço significativo.”

“A Rússia quer, a Rússia está muito interessada nisso. Mas os países do Sul Global estão mais relaxados, não é tão urgente para eles”, completa.

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A lua cheia nasce sobre o Kremlin de Kazan, em Kazan, Rússia, cerca de 700 km a leste de Moscou, em 29 de julho de 2015 Foto: Denis Tyrin/AP

Um dos desafios com o Brics ampliado é com a coesão dos seus membros. Se antes havia divergências consideráveis entre eles, com o dobro de participantes de formatações econômicas e políticas tão distintas pode dificultar ainda mais os consensos.

“Vai ser importante observar se os países conseguem avançar em resultados efetivos tendo em vista justamente a ampliação”, aponta Pedro Brites. “Com cinco países era uma de uma dinâmica de funcionamento e isso vai ser importante para entender que tipo de aportes os novos membros vão trazer para as discussões também.”

O que sim deve avançar, segundo Brites e Shidore, são as discussões sobre os critérios para adesão de novos membros e a sugestão russa de incluir parceiros observadores. Novamente, a China tende a sair ganhando neste campo e o Brasil perdendo.

“A grande expectativa com esta cúpula é com o seu processo de adesão. Se passaram dez meses desde a adesão dos novos membros e se espera que a expansão continue e se defina quais serão os critérios para novas entradas”, diz Shidore.

“Se o Brics continuar expandindo de acordo com os interesses da China, a chance de o Brasil sobrar como um dos pouquíssimos membros democráticos é muito grande”, sugere Guilherme Casarões. “Os critérios de expansão poderão ser mais ou menos objetivos, mas dificilmente vai tornar o Brasil mais influente no médio prazo dentro do bloco, pode acontecer o efeito contrário”.

O grande risco, defende o professor da FGV, é que em uma futura expansão o próximo país latino-americano a aderir seja a Venezuela, o que deixaria o Brasil em um saia ainda mais justa.

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