Na última terça-feira, 30, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez o primeiro comentário sobre as eleições na Venezuela e sugeriu que, se a oposição questionar o resultado apresentado pelas atas - quando ou se o chavismo apresentá-las -, deve fazê-lo via Justiça venezuelana. As forças da Justiça, porém, há anos são aliadas do chavismo, assim como o órgão eleitoral que no último domingo deu a vitória das eleições para Nicolás Maduro.
Forças controladas pelo chavismo
Em agosto de 2002, o então líder da Venezuela, Hugo Chávez, convocou uma manifestação contra o Supremo Tribunal de Justiça do país que, dias antes, havia absolvido os militares que tentaram um golpe de Estado em abril daquele ano. Classificada como “monstruosidade” por Chávez, a decisão cravou o destino da corte suprema do país que a partir de se transformo em mais um braço do chavismo.
O golpe de Estado falido, que manteve Chávez fora do poder durante três dias antes de ser respondido num contragolpe, foi o momento em que o então presidente ampliou sua marcha autoritária. Além da Justiça, o chavismo cooptou os demais poderes da república, desde a Assembleia Nacional, ao Conselho Nacional Eleitoral, a gigante petroleira PDVSA, a mídia e, acima de tudo, as Forças Armadas.
“Todos os cinco poderes públicos da Venezuela foram capturados pelo governo nesses 25 anos”, observa o cientista político Francisco Alfaro Pareja, pesquisador do Instituto de Investigações Históricas da Universidade Simón Bolívar. “A única vez em que se conseguiu que um dos poderes estivesse nas mãos da oposição foi em 2015, na eleição parlamentar, mas muito rapidamente o governo atuou para reverter isso”.
O processo de erosão da democracia na Venezuela tem sido progressivo. Chávez entra como presidente e a Venezuela era uma democracia liberal, com um sistema democrático e, progressivamente, ele foi caminhando rumo ao fim da democracia.
Francisco Alfaro Pareja, cientista político venezuelano
Essa cooptação foi lenta e progressiva. Para isso, as Forças Armadas foram peça fundamental, ao tomar cargos importantes de chefia nas mais diferentes instituições e ser o grande bastião do chavismo, sendo o próprio Chávez um militar. Outra peça foi a mudança da Constituição de 1999, que alterou muitas regras e permitiu ao governo adentrar os demais poderes.
As Forças Armadas
O primeiro poder político a respaldar o projeto de Hugo Chávez foram as Forças Armadas. Sendo um tenente-coronel, ele teve a habilidade de unir forças historicamente rivais dentro do militarismo. Na nova Constituição, que Chávez convocou pouco depois de vencer as eleições e assumir o poder, ele retirou a proibição aos militares de votar, garantindo assim a lealdade das forças.
Leia mais
“Ele consegue unir de alguma maneira dois grupos que historicamente estiveram muito brigados com a democracia liberal e com os partidos tradicionais”, lembra Alfaro Pareja.
Com respaldo das Forças Armadas, mas principalmente da população, Chávez consolidou sua manutenção no Executivo.
Porém, em abril de 2002, quatro chefes militares tentam o golpe de Estado e a partir daí Chávez recrudesce os expurgos entre os militares.
“Chávez iniciou um processo de depuração das Forças Armadas, colocando os membros mais leais do Exército em cargos de gerência em empresas estatais, lançando candidatos a governadores e fazendo com que esses candidatos militares também participassem das eleições para deputados na Assembleia Nacional”, explica o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP Rafael Villa. “Trata-se, portanto, de uma espécie de cooptação política.”
A partir daí, as Forças Armadas viram um novo poder da república bolivariana que vai respaldar a cooptação de outras forças políticas e econômicas.
“Os militares passam a comandar parte dos ministérios do Executivo. Por exemplo, em 2010 ou 2012, o gabinete ministerial de cerca de 30 ministros tinha pelo menos 12 militares”, lembra Villa.
Justiça
Antes de controlar os poderes pela via militar, o chavismo foi pouco a pouco corroendo os outros dois poderes políticos: Legislativo e Judiciário, além do conselho eleitoral.
Cooptar a Justiça foi o primeiro deles. “Na era da democracia de Punto Fijo (acordo pluripartidário para manter a estabilidade após o fim da ditadura), que durou até 1998, os membros do Supremo Tribunal de Justiça eram escolhidos pelo Congresso Nacional. Eles eram indicados pelos partidos e escolhidos em um acordo entre os principais partidos, o governo e a oposição”, lembra Rafael Villa. O mesmo ocorre com o Ministério Público.
O porém é que a partir de então, a Assembleia Nacional passou a ser dominada pelo chavismo, dentro da via eleitoral, já que Hugo Chávez possuía grande apoio popular. Mas essa maioria chavista contribuiu para, em 25 anos, transformar o Judiciário em um novo poder do movimento.
“Os juízes são eleitos pela Assembleia Nacional, que tem maioria chavista. Com isso, a maioria dos juízes está ligada ao chavismo”, completa o professor da USP.
Assim, o que se viu foi um crescimento da judicialização das questões políticas, como questionamentos eleitorais e, principalmente, a inabilitação de opositores políticos, entre eles: Henrique Capriles, Juan Guaidó, Leopoldo López e María Corina Machado, esta última inabilitada por Elvis Amoroso, na época procurador da República, hoje presidente do Conselho Nacional Eleitoral.
No último movimento de judicialização, Nicolás Maduro pediu ao Supremo Tribunal de Justiça que investigue o questionamento eleitoral feito pela oposição, bem como a publicação das atas eleitorais. No mesmo pedido, porém, instou o órgão a investigar uma suposta tentativa de golpe de Estado por meio do hackeamento de urnas eleitorais no domingo.
“O que Maduro está buscando agora é provavelmente uma decisão da Corte que, de alguma forma, gere algum tipo de decisão que daria razão a ele que e possa impedir que as atas publicadas pela oposição sejam corroboradas”, afirma Alfaro Pareja.
Um levantamento feito pelo advogado venezuelano Antonio Canova entre 2004 e 2013 de 45.474 sentenças emitidas pela corte suprema, em todas o chavismo vencia. O estudo foi publicado no livro “El TSJ al servicio de la revolución” (O TSJ a Serviço da Revolução, em tradução livre), publicado em 2014.
Conselho Nacional Eleitoral
Algo semelhante ocorreu com o órgão eleitoral do país. As mudanças no CNE (Conselho Nacional Eleitoral) já começaram em 1999, com a nova Constituição que mudou as regras para nomeação de reitores. Até então as nomeações eram feitas por critérios técnicos de pessoas sem associação político-partidária.
Com a nova Carta se passou a permitir pessoas envolvidas em partidos políticos, mas com a condição de ser uma divisão plural. “Isso por si só não é um problema, desde que o órgão gere a devida confiança”, afirma Alfaro Pareja. “É assim também no Uruguai, porém lá existe confiança no conselho eleitoral”.
A partir de 2004, observa o cientista político, o CNE começa a sofrer intervenções mais diretas, depois do plebiscito convocado pela oposição para revogar os poderes de Hugo Chávez.
Primeiro houve a negativa do CNE em convocar a votação, apesar de a oposição ter reunido as assinaturas necessárias, alegando fraude nas assinaturas. Mais tarde, o plebiscito aconteceu e Chávez saiu vitorioso com 59% dos votos pela sua permanência no cargo. A oposição, porém, acusou o processo de fraude.
A partir daí, o órgão foi se tornando cada vez mais chavista, até chegar aos dias de hoje em que o presidente, Elvis Amoroso, é um amigo pessoal da esposa do ditador Nicolás Maduro.
Seguro de que o órgão não agiria contra si, ao votar no último domingo, 28, Maduro afirmou que respeitaria os resultados “apresentados pelo CNE”. De fato o órgão o declarou vitorioso, embora não tenha apresentado as atas de votação que o comprovem.
São ao todo 15 reitores do CNE, sendo cinco principais e 10 suplentes. Dos cinco principais, atualmente, três são ligados ao chavismo e dois ligados à oposição. Os da oposição, porém, não se pronunciaram até o momento sobre as acusações de fraude por parte do grupo de María Corina Machado.
As nomeações dos reitores são feitas pela Assembleia Nacional que, em 25 anos de chavismo, só esteve nas mãos da oposição uma vez.
“O Poder Eleitoral é o único que mais ou menos sempre permaneceu plural, há sempre cinco reitores, a maioria sempre foi do governo nos últimos 25 anos em uma composição de 4 para 1 ou 3 para 2, neste caso o atual”, afirma Alfaro Pareja.
Assembleia Nacional
Tudo isso, o controle do CNE e da Justiça, só é possível graças ao controle chavista do Legislativo, afirmam os analistas.
Sob Hugo Chávez e com o crescimento econômico venezuelano baseado no petróleo, o chavismo contou por muitos anos com o respaldo popular para não precisar intervir em eleições legislativas e executivas. Além do Executivo, as forças chavistas sempre dominaram o parlamento do país, chamado de Assembleia Nacional, que é unicameral.
Mas, em 2015, Maduro mostrou que não permitiria uma força opositora dominando o Parlamento. Naquele ano, a oposição não só ganhou a maioria das cadeiras, mas garantiu uma “supermaioria”, que lhe dava mais poderes para desafiar o presidente.
Na época, o chavismo impugnou a candidatura de três deputados do Estado do Amazonas, o que reduziu a supermaioria da oposição para apenas uma maioria simples.
A assembleia, porém, resolveu empossar os três deputados, o que resultou no Supremo Tribunal de Justiça - já dominado chavista - colocando o Parlamento em “desacato” e assumindo as suas funções em meados de 2016. Uma das razões para o golpe parlamentar de Maduro, inclusive, foi impedir que o Congresso dominado pela oposição nomeasse juízes para a Suprema Corte.
Meses depois, em 2017, o chavismo convocou uma “Assembleia Nacional Constituinte” que deveria redigir uma nova Constituição para o país, mas que, no fim, se tornou um Parlamento paralelo.
“Essa assembleia ficou em vigor por cerca de um ano e meio e não fez muita coisa, mas era apenas uma espécie de Assembleia Nacional ou Parlamento paralelo que foi estabelecido naquela época”, afirma Alfaro Pareja.
O que acontece é que, com exceção de 2015, em que a oposição era maioria, o chavismo conseguiu ser eleito em todas as Assembleias Nacionais entre 1999 e 2019.
Rafael Villa, professor no Instituto Relações Internacionais da USP
A PDVSA e o poder econômico
Além do setor político, o chavismo adentrou o forte setor econômico venezuelano, sustentado pelo petróleo. “A PDVSA sempre foi uma empresa estatal e, por isso, sempre esteve muito próxima do governo nacional”, afirma Alfaro Pareja.
“Essa é uma das grandes diferenças entre o governo venezuelano e o de outros países. O presidente da República, por exemplo, precisa ter boas relações com empresários e outros poderes econômicos, porque muitas vezes o governo em si não tem os recursos à sua disposição. Na Venezuela, o governo sempre foi muito poderoso porque, ao dispor dos recursos do petróleo, o presidente se torna quase um superpresidente”, completa.
Depois do golpe de Estado falido contra Chávez, ele foi em cadeia nacional e anunciou a demissão de 18 mil funcionários da empresa, especialmente do alto-escalão e colocou seus militares no cargo.
“A PDVSA não era simplesmente, ou deixou de ser, uma empresa que coletava moeda estrangeira, dólares, para entrar na economia nacional. Chávez também criou a PDVSA como um serviço de financiamento para as missões. E ali ele colocou pessoas próximas ao seu projeto de governo, que tinha como ponto fundamental as chamadas missões”, explica Rafael Villa. As “missões” são uma série de metas do projeto bolivariano.
“Algo semelhante aconteceu com o Banco Central da Venezuela”, recorda Alfaro Pareja. “Normalmente, nos países, os bancos centrais têm certa autonomia para tomar decisões sobre, por exemplo, aumento das taxas de juros, desvalorização da moeda, impressão de mais dinheiro, mas na Venezuela tudo isso foi perdido e também foi progressivamente capturado pelo governo em 2002.”
A mídia
Por fim, um dos setores que o chavismo mergulhou foi a imprensa venezuelana, tomando canais e rádios estatais, retirando licenças de canais privados e forçando meios criticos à falência ou a compra por empresários amigos.
“Os canais estatais, que eram mais discretos até 1998, começaram a transmitir basicamente propaganda do governo, mensagens ideológicas do governo, por meio de sua programação”, afirma Villa. Entre eles o professor lista: TeleSur, Globovisión, El Universal e Ultimas Noticias.
E continua: “Houve todo um processo de cooptação dessa mídia, e os meios de comunicação que se opunham ao discurso de Maduro, como o El Nacional, foram banidos, seus editores, seus chefes, estão agora no exílio.”
“Esse foi um dos processos mais difíceis, eu diria, porque na Venezuela, a mídia tem resistido ao longo dos anos”, opina Alfaro Pareja. Segundo ele, a internet e as redes sociais tornaram este controle mais difícil para o chavismo, ainda que as pessoas acabem mais expostas a notícias falsas ou meias-informações.
“Houve casos em que os jornais impressos não tinham onde comprar papel e assim não tinham como publicar”, lembra. “Eles também sofreram censura. Outros, de alguma forma, sofreram pressão para se autocensurar, então você vê os meios de comunicação tentando dizer coisas, mas diminuem a forma como dizem.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.