Como a ofensiva da Ucrânia na região de Kursk, na Rússia, desmoronou

No auge da campanha, as forças ucranianas controlavam cerca de 1.300 quilômetros quadrados de território russo. Agora, detêm apenas uma pequena faixa de terra ao longo da fronteira

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Por Marc Santora (The New York Times)

As forças ucranianas se retiraram quase completamente da região de Kursk, na Rússia, encerrando uma ofensiva que surpreendeu o Kremlin no verão passado (Hemisfério Norte) com sua velocidade e audácia. Soldados ucranianos na linha de frente descreveram uma retirada organizada em certos pontos e caótica em outros, enquanto as forças russas invadiam suas posições e as forçavam a recuar para uma faixa de terra ao longo da fronteira.

Quando um pelotão de assalto ucraniano recuou de sua posição, há menos de uma semana, todos os seus veículos tinham sido destruídos, drones caçavam os soldados dia e noite e os combatentes ficaram quase sem munição.

As forças russas estavam se aproximando de todas as direções, disse o comandante do pelotão, “provocando nossa retirada”.

Imagem de 9 de janeiro mostra soldados ucranianos consertando um veículo próximo a fronteira ucraniana com a região de Kursk, na Rússia. Ofensiva mostrou poder da Ucrânia de levar guerra para dentro do país vizinho, mas terminou sem sucesso Foto: Finbarr O'reilly/NYT

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O comandante, que pediu para ser identificado apenas pelo seu codinome, Boroda, seguindo o protocolo militar, disse que sua unidade levou dois dias para caminhar mais de 19 quilômetros, de suas posições, próximo ao vilarejo russo de Kazachia Loknia, até a fronteira ucraniana. Naquele momento, “a região de nossas posições já estava ocupada por forças russas”, disse ele pelo telefone.

No auge da ofensiva, as forças ucranianas controlaram cerca de 1.300 quilômetros quadrados de território russo. No domingo, conseguiam se agarrar a apenas 77 quilômetros quadrados ao longo da fronteira russo-ucraniana, de acordo com o analista militar Pasi Paroinen, do Black Bird Group, sediado na Finlândia.

“O fim da batalha está próximo”, disse Paroinen em entrevista pelo telefone. Não foi possível confirmar de forma independente quanto território russo a Ucrânia ainda controla em Kursk, e soldados relataram que um combate feroz estava em andamento. Mas a luta perto da fronteira agora trata menos de manter territórios russos, disseram soldados ucranianos, e mais sobre tentar impedir que as forças russas invadam a região de Sumi, na Ucrânia, e abram uma nova frente na guerra.

Os soldados disseram que estão tentando estabelecer fortes posições defensivas ao longo das cristas do lado russo da fronteira.

“Continuamos a manter posições na frente de Kursk”, disse Boroda, o comandante do pelotão de assalto. “A única diferença é que nossas posições mudaram para mais perto da fronteira significativamente.”

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O oficial de inteligência ucraniano Andrii, que combate em Kursk, definiu de forma mais direta. “A operação Kursk está essencialmente encerrada”, disse ele. “Agora precisamos estabilizar a situação.”

A operação em Kursk foi vista por alguns analistas como uma aposta desnecessária, sobrecarregando os soldados ucranianos e ocasionando baixas pesadas em um momento em que eles já estavam lutando para defender uma extensa linha de frente dentro de seu país. Mas a investida produziu um impulso moral muito necessário para a Ucrânia, que tentou mostrar que poderia levar a guerra para dentro da Rússia e esperou que o território russo que ocupava servisse como moeda em qualquer negociação de cessar-fogo.

Veículos militares da Ucrânia atravessam região de Sumi em direção a Kursk, na Rússia, em imagem de 9 de janeiro. Tropas se retiraram depois de sofrerem derrotas para o Exército russo, apoiado por soldados norte-coreanos Foto: Finbarr O'reilly/NYT

Enquanto Kiev vem conseguindo impedir o avanço da Rússia no leste da Ucrânia, a reviravolta em Kursk ocorre no momento que o governo Trump pressiona por uma trégua rápida.

A reversão da sorte da Ucrânia em Kursk não se deveu a nenhum fator específico. As forças russas atacaram as linhas de abastecimento da Ucrânia e começaram a cortar rotas de fuga. As tropas norte-coreanas trazidas por Moscou, que titubearam no início, melhoraram suas capacidades de combate. E em um momento crucial, o apoio dos EUA — incluindo o compartilhamento de inteligência — foi suspenso.

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Como a maré mudou

Quando o New York Times visitou mais recentemente a fronteira entre Sumi e Kursk, no fim de janeiro, movimentar-se durante o dia era quase impossível porque os céus estavam repletos de drones russos.

A principal estrada entre Sumi e Sudzha, uma pequena cidade russa cerca de 9 quilômetros a nordeste que as forças ucranianas ocupavam desde agosto, já estava cheia de carros, tanques e veículos blindados queimados.

A Ucrânia tinha enviado algumas de suas brigadas mais experientes para a operação de Kursk, mas meses de ataques implacáveis das forças russas e o acionamento dos milhares de soldados norte-coreanos cobraram um preço cada vez maior.

Imagem de 8 de janeiro mostra cercas de arame instaladas nas florestas de Sumi, na Ucrânia, próximo à fronteira russa Foto: Finbarr O'reilly/NYT

Embora tenham se retirado do campo de batalha em janeiro para se reagrupar, as tropas norte-coreanas retornaram aos combates no início de fevereiro. E os soldados ucranianos disseram que suas habilidades melhoraram.

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“Muitos executaram manobras táticas muito inteligentes”, disse Boroda, o comandante do pelotão.

Em meados de fevereiro, as forças russas avançaram para posições a 8 quilômetros das principais rotas de reabastecimento da Ucrânia em Sudzha, o que lhes permitiu atacar estradas com enxames de drones — muitos dos quais amarrados a cabos de fibra ótica ultrafinos e, portanto, imunes a interferências.

Outros soldados ucranianos, que como Boroda pediram para ser identificados apenas pelo primeiro nome ou pelo codinome, seguindo o protocolo militar, afirmaram que as forças russas usaram drones de ataque em emboscadas.

“Os drones deles pousavam perto de rotas de abastecimento importantes e esperavam um alvo passar”, disse Cap, um combatente das Forças de Operações Especiais de 36 anos que pediu para ser identificado pelo seu codinome.

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Drones russos também atingiam explosivos instalados anteriormente para destruir pontes em Kursk, para tentar dificultar a retirada das tropas ucranianas, afirmaram soldados ucranianos.

Aviões de guerra russos também atacaram pontes, em uma das ações lançando uma bomba guiada de 2,7 toneladas para cortar uma via principal, de acordo com soldados ucranianos e analistas militares.

Artem, um alto comandante de brigada das forças ucranianas, disse que a destruição das pontes foi uma das principais razões pelas quais os soldados de Kiev tiveram que abandonar posições tão repentinamente nas últimas semanas. Nem todos conseguiram sair, mas a maioria conseguiu, disse ele.

A virada da Rússia

O domínio da Ucrânia em Kursk já estava em perigo quando o governo Trump anunciou a suspensão da ajuda militar e do compartilhamento de inteligência, em 3 de março.

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A perda repentina das informações de inteligência fornecidas pelos EUA para definição de alvos precisos agravou as dificuldades, de acordo com Andrii, o oficial de inteligência. Sem isso, afirmaram ele e outros soldados, os lançadores de foguetes múltiplos de fabricação americana conhecidos como HIMARS silenciaram.

“Não podíamos permitir que mísseis caros fossem disparados contra o alvo errado”, explicou Andrii.

Então, em 8 de março, as tropas russas fizeram um avanço, esgueirando-se atrás das linhas ucranianas, caminhando por quilômetros dentro de um gasoduto desativado para montar um ataque surpresa. Propagandistas e autoridades russas classificaram a operação como um feito heróico, enquanto fontes ucranianas a qualificaram como um movimento arriscado que ocasionou muitas mortes em razão do metano residual no gasoduto.

Imagem de 2 de dezembro mostra soldado russo em uma posição de artilharia na região de Kursk, na Rússia. Região estava sob ataque da Ucrânia Foto: Nanna Heitmann/NYT

Apesar de o número exato de soldados russos envolvidos e o sucesso do ataque terem sido impossíveis de confirmar de forma independente, “isso causou confusão e estragos suficientes atrás das linhas das forças ucranianas que provavelmente as levaram a começar a se retirar”, disse Paroinen, do Black Bird Group, que analisa imagens de satélite do campo de batalha e conteúdos em redes sociais.

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Os russos “nos superaram em certa medida”, disse Andrii. “Houve um pouco de pânico.”

Mais ou menos no mesmo momento, as tropas norte-coreanas ajudavam a liderar um ataque que rompeu as linhas ucranianas ao sul do pequeno vilarejo de Kurilivka, restringindo ainda mais a capacidade de Kiev de abastecer suas tropas.

Enquanto as forças ucranianas recuavam ao longo das linhas defensivas designadas, as forças russas continuavam avançando em direção a Sudzha, e o ritmo dos ataques aumentou.

Dadas as posições russas, retirar-se em veículos teria dado aos drones alvos fáceis, disseram analistas. E os veículos militares destruídos espalhados pelas estradas também criavam obstáculos para uma retirada — razão pela qual “parte significativa da retirada foi a pé”, de acordo com o analista militar Serhii Hrabskii, ex-coronel do Exército ucraniano.

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Vários fatores influenciaram a natureza da retirada: fadiga, ordens boas ou ruins de comandantes individuais, falta de comunicação ou coordenação bem estabelecida.

Boroda, comandante do pelotão de assalto da Ucrânia em Kursk

Antes de partir, alguns soldados ucranianos queimaram seus equipamentos para evitar que caíssem nas mãos dos russos, disseram os soldados.

Em 10 de março, algumas unidades receberam ordens para se retirar de Sudzha, afirmaram três soldados e comandantes ucranianos.

“Foi uma mistura entre retirada organizada e caótica”, disse Boroda. “Vários fatores influenciaram a natureza da retirada: fadiga, ordens boas ou ruins de comandantes individuais, falta de comunicação ou coordenação bem estabelecida.”

No entanto, apesar das alegações em contrário feitas pelo presidente russo, Vladimir Putin, e pelo presidente Trump, em nenhum momento uma grande quantidade de forças de Kiev foram cercadas, de acordo com analistas militares que usam imagens de combate geolocalizadas para mapear os desdobramentos no campo de batalha, soldados ucranianos que combatiam em Kursk e até mesmo alguns blogueiros militares russos proeminentes.

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Três dias depois, o Ministério da Defesa da Rússia declarou que tinha recuperado o controle total de Sudzha. No sábado, alegou que suas forças haviam retomado dois vilarejos fora da cidade.

Embora não tenha se pronunciado diretamente sobre a captura de Sudzha pela Rússia, o Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia divulgou no domingo um mapa do campo de batalha mostrando a cidade fora do território que Kiev controla em Kursk — que encolheu para uma estreita faixa de território.

Sudzha, que possuía anteriormente 5 mil habitantes, sofreu grandes danos durante os combates. E desde que a operação Kursk começou, dizem analistas militares, ambos os lados sofreram grandes perdas.

Temores sobre uma nova frente

Apesar de Kiev ter esperado usar seu controle sobre território russo como moeda em qualquer negociação para acabar com a guerra, agora Putin parece estar usando a retirada ucraniana para tentar fortalecer sua posição nas negociações com o governo Trump sobre uma pausa das hostilidades.

No sábado, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, acusou as forças russas de se agrupar ao longo da fronteira e tentar isolar e prender os soldados ucranianos em Kursk, avançando para a região vizinha de Sumi. Foi impossível verificar as afirmações de forma independente.

Agora, afirmam soldados ucranianos, eles estão determinados a impedir que os russos avancem em direção a Sumi.

Oksana Pinchukova, uma voluntária de 44 anos que vive em Sumi, disse que está preocupada com o que poderá ocorrer nas próximas semanas. “Viver sob constantes ataques e bombardeios, nem todos conseguem lidar com isso”, disse ela. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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