ENVIADO ESPECIAL A FARIDABAD - Todas as manhãs, a dona de casa Shobha Panderi, de 35 anos, caminha por até 1 quilômetro de seu casebre em Krishna Nagar a um matagal próximo. Ela se embrenha entre arbustos baixos, porém densos o suficiente para se ocultar. Busca um pouco de privacidade para se aliviar. Se não se arriscar no mato, Shobha precisa esperar até 1h30 na fila do banheiro de um templo hindu. O local fica na entrada da favela onde ela vive na periferia de Faridabad, Estado de Haryana, ao Sul da capital da Índia, Nova Délhi.
“A fila fica muito grande no templo de manhã, então é mais rápido ir no mato”, diz Shobha. “A vida é assim, entendemos que tem problemas na ocupação. Vivemos aqui. Outros lugares não são bons também e são caros.”
Shobha e sua família - o marido e uma filha de 9 anos - moram na favela de casas diminutas, com cômodos únicos de poquíssimos metros quadrados. Como não há água encanada nos lares, os moradores lavam a louça e roupa ao ar livre, com baldes de água que buscam em alguma fonte de água próxima - às vezes, apenas uma bica comunitária. Crianças e bebês brincam ao lado de enormes poças de esgoto, em meio a lixo doméstico de toda sorte e fezes de animais, como cães e vacas.
Risco de doenças e assédio
Sem água encanada, é comum que indianos usem bicas coletivas nas ruas para encher pequenas canecas e baldes improvisados e até mesmo para se lavar. Em que pese o calor intenso de 35ºC e a umidade extrema, sem duchas em casa o banho diário se torna inviável.
No caminho para a mata, onde sujeita-se a riscos de contaminação e a ataques sexuais, Shobha cruza com ao menos 22 cabines de sanitários públicos instalados na comunidade de Krishna Nagar. Eles deveriam ser compartilhados pelos moradores. No entanto, sete anos depois de construídos, todos estão imundos, destruídos e fora de uso.
Estadão na Índia
A situação é um menos pior para a família da dona de casa Kiren Nirmeli, de 27 anos. Eles improvisaram uma latrinas simples, mas limpa, na laje de casa. Sem saneamento - os dejetos descem conduzidos por canos aparentes ao solo. Um balde com água serve de descarga. Tudo manual. Kiren mora com o marido, operário da construção civil, e dois filhos, um de 6 e um de 11 anos, num casebre da favela, logo na viela principal.
Para usar a latrina particular, ela e os filhos precisam se equilibrar e subir uma escada solta de bambu, com cerca de cinco metros de altura, até chegar à laje do casebre. Não há iluminação, tampouco qualquer pia e nem sequer uma porta. Eles têm somente um pedaço de pano improvisado como cortina na porta e um teto com pedaços de madeira.
Apesar das instalações precárias, Kiren não é contabilizada pelo governo da Índia como parte dos indianos que têm o hábito diário de fazer as necessidades a céu aberto. A vizinha Shobha, embora sem acesso a qualquer latrina, também não. O governo alega ter eliminado o fecalismo ao ar livre.
Um plano de saneamento
Em 2014, o governo do primeiro-ministro Narendra Modi lançou um programa para erradicar a prática, até hoje muito mais grave nas aldeias do país. Conhecida pela sigla SBM, a Missão Índia Limpa - ou Swachh Bharat Mission - notabilizou-se pela meta ambiciosa e ficou conhecida na propaganda oficial como maior programa sanitário do mundo.
Segundo o governo da Índia, já foram construídos e instalados mais de 100 milhões de sanitários, sejam instalações privadas, nas casas das pessoas, ou comunitárias. Ao todo, 600 milhões de pessoas teriam sido beneficiadas, assim como 600 mil vilarejos.
Cinco anos depois, em 2019, Modi faria um anúncio controverso, apesar dos avanços notáveis. Ele diria que a Índia havia eliminado o problema e se tornara um país Open Defecation Free (ODF) - livre do fecalismo a céu aberto. A data foi simbólica. O discurso ocorreu durante a celebração dos 150 anos do nascimento de Mahatma Gandhi, que contribuiu para melhorias na saúde pública indiana. O governo escolheu os óculos e a silhueta de Gandhi como marcas da campanha.
A realidade suja das ruas
A realidade nas ruas das principais cidades do país mostram que nem tudo é como se anuncia. O Estadão percorreu as cidades de Agra, Nova Délhi, Faridabad e Hyderabad, passando por zonas periféricas, centrais e trechos de interior. A reportagem encontrou fezes humanas em calçadas, em bairros pobres como Seemapuri, na divisa entre Delhi e Uttar Pradesh, e testemunhou pessoas uriando na beira da estrada.
Em todas as cidades foi possível encontrar banheiros do programa SBM, que podem ser localizados por usuários na internet. Embora alguns estivessem em condições de uso, principalmente nas áreas mais nobres, havia também muitos fechados, imundos, com lixo e dejetos humanos acumulados, esgoto escorrendo para a calçada. Ou mesmo depredados. Até banheiros de uso comum dentro de instalações particulares, como a sede de um coworking em Faridabad, encontrava-se com acúmulo de sujeira e teias de aranha aparentes. Também era muito mais comum encontrar banheiros masculinos do que femininos.
Em 2020, o Narendra Modi lançou uma nova fase da campanha Índia Limpa, a SBM 2, também conhecida como ODF+. Segundo o governo, os principais objetivos são ampliar a cobertura do tratamento de resíduos sólidos e líquidos, a manutenção na limpeza e no comportamento das pessoas.
O Departamento de Água Potável e Saneamento, ligado ao Ministério Jal Shakti, promete “não deixar ninguém para trás”. O governo não respondeu ao Estadão se reconhe que a meta de eliminar o problema permanece inalcançada.
Estudos de instituições internacionais também se chocam com o discurso de Modi. As Nações Unidas reconheceram neste ano a Índia como país mais populoso do mundo, com 1,428 bilhão de pessoas, ultrapassando a China. Cerca de 157 milhões de indianos, ou 11% da população, ainda defecam a céu aberto. O país está acima da média mundial, de 5,2%. A situação é mais grave nas zonas rurais da Índia, onde o índice chega a 17%. Em áreas urbanas, somente 0,5% recorre à prática.
Esses dados são mais recentes da plataforma Wash, mantida pelo programa cojunto de monitoramento de abastecimento de água, saneamento e higiene da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O programa coleta dados em todo o mundo desde 1990.
O painel Wash mostra que o patamar caiu desde o lançamento da Missão Índia Limpa. Em 2014, ao menos 33% dos indianos tinham de procurar um lugar aberto para defecar. E revela que o cenário mudou bastante desde início do século. Em 2001, 70% dos indianos defecavam a céu aberto.
Estudos da OMS também mostram que o hábito está diretamente ligando a doenças como o cólera, uma infecção bacteriana causada pela contaminação por fezes humanas, principalmente dos cursos de água. O célera é endêmico na Índia, e os casos se agravam no período das Monções, quando há intensas tempestades e alagamentos.
Pesquisadores citados pela OMS estimam que, anualmente, ocorrem de 1,3 milhão a 4 milhões de casos de cólera no mundo. Se os sintomas mais graves não forem tratados, a doença pode matar. Entre 21 mil e 143 mil pessoas morrem de cólera, a cada ano, ao redor do planeta, conforme a autoridade de saúde da ONU.
No artigo científico Surtos de cólera na Índia, 2011-2020: uma revisão sistemática, cientistas de indianos estudaram 565 surtos notificados no país no período. Eles publicaram no ano passado, na Revista Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública, que a análise destes surtos destacou como principais fatores de transmissão do cólera: água potável e alimentos contaminados, saneamento e higiene inadequados, incluindo defecação a céu aberto, e contato direto entre familiares.
“Muitos indianos ainda enfrentam a defecação a céu aberto, falta de saneamento e de acesso à água potável. Estas questões devem ser abordadas de forma crítica. Como o cólera está associada à privação, o desenvolvimento socioeconômico é a única solução a longo prazo”, concluíram os pesquisadores.
Soluções no setor privado
O problema gerou um campo para o surgimento de empresas privadas locais. Uma delas é a Garv Toilets, sediada em Faridabad, que já construiu 2,3 mil banheiros no país e tem 85 deles no exterior, instalados em Gana, no Butão e na Turquia, num campo de refugiados sírios da ONU. A empresa tem oito anos.
A Garv projetou, instalou e opera principalmente banheiros de aço inoxidável, material mais resistente ao vandalismo e que requer menos manutenção. Além disso, o sistema de descarga e as pias são automatizados por sensores, sem necessidade de acionamento humano. A firma cobra 5 rúpias indianas pelo uso, o equivalente a R$ 0,30, e tem parcerias com estações de ônibus e metrô, e opera junto a governos. Um centro sanitário pode custar US$ 45 mil.
Mulheres
Em hindi, a palavra “garv” significa “orgulho” e “dignidade”. Assim como a Garv, outros pequenos empreendedores buscam soluções na Índia. Algumas delas voltadas ao público feminino, que sofre mais dificuldde em manter a higiene íntima nos banheiros públicos mal conservados e podem sofrer assédio.
Em Pune, cidade a 150 quilômetros de Mumbai, surgiram banheiros exclusivos para mulheres. A TI Toilets reformou ônibus urbanos, fora de uso rodoviário, e os transformou em sanitários públicos femininos sobre rodas. O custo também é de R$ 0,30 por visita. Nos dois casos, as empresas oferecem ao lado das estações sanitárias a compra de papel higiênico, protetor de assento e absorventes, entre outros itens de limpeza pessoais. Também lucram com espaços publicitários.
Um terceiro caso é a rede de banheiros femininos Pink Toilets, espalhada por Nova Délhi, com ao menos 15 unidades. Duas unidades visitadas pela reportagem haviam sido adaptadas de banheiros masculinos. Mas contavam com área para amamentação e ao menos duas atendentes de prontidão.
“Quer venha uma estudante ou uma mulher adulta, aqui ela terá segurança e limpeza. Não há medo, não há hesitação e tudo está ao nosso serviço e comodidade, com equipamentos para lavar as mãos e outros”, disse Payal Chawla, uma das funcionárias da Pink Toilets. “São acomodações decentes para que elas possam ir ao banheiro, sem a presença de homens”, acrescentou a colega Geeta.
A dificuldade em mudança de hábitos passa por raízes culturais e religiosas. Os indianos associam ter um sanitário interno a trazer impurezas para dentro de casa. Por isso, acreditam que as instalações sanitárias deveriam ter sido construídas do lado de fora ou preferem os banheiros compartilhados no bairro.
O sócio-gerente e fundador da Garv Toilets, Mayank Midha, afirma que relatórios de avaliação de instituições externas, como o Unicef, também indicaram que somente a metade dos banheiros construídos pelo governo estava em uso. Alguns haviam sido construídos com material de baixa qualidade, para reduzir custos, segundo Midha, e houve casos em que a estrutura de estações sanitárias compartilhadas foram transformadas em pequenas mercearias. Ele cita ainda a falta de execução e de fiscalização dos contratos de manutenção e limpeza por parte de esferas de governo locais. No interior faltou ainda tratamento aos resíduos.
“Não tenho certeza se o governo reconhece que o problema persiste, mas o governo definitivamente sente que, independentemente dos banheiros que foram construídos, muitos deles não estão sendo usados por vários motivos, provavelmente devido à qualidade da infraestrutura que foi criada ou à falta de manutenção dessas instalações. Esses aspectos culturais, questões de qualidade e manutenção são provavelmente algumas das razões pelas quais muitos desses banheiros não estão sendo usados.”
Mudança geracional
Em 2017, o problema foi para as telas. Bollywood, a indústria cinemagráfica local, retratou a história em Toilet, A Love Story. Ambientado em vilas onde 80% dos lares não tinham banheiros, o filme conta a história fictícia de Keshav e Jaya, um casal que brigou após o casamento porque ela descobriu que não teria um toalete em casa e a saga do marido para superar a mentalidade tradicional do país.
Quanto tempo mais vai levar? Midha afirma que a erradicação do hábito de defecar a céu aberto e a preocupação com higiene vai demorar e devem ser vistas como mudanças para uma geração de indianos. Ele prevê problemas para a infraestrutura sanitária existe por causa da migração interna.
A Índia ainda é um país eminentemente rural. Cerca de 65% dos indianos, ou 908 milhões de pessoas, vivem em aldeias do interior, com menos acesso a água potável e redes de saneamento. O governo projeta que a população das metrópoles indianas atingirá 600 milhões de pessoas em 2031.
“Acredito que se trata de uma mudança geracional que vem ocorrendo. Há 10 anos, falar sobre saneamento e higiene era considerado um tabu”, afirma Midha. “Mas desde que a campanha Índia Limpa foi lançada as pessoas começaram a falar abertamente. Módulos foram criados para que as crianças possam aprender nas escolas, e elas começaram a dar importância aos banheiros e à higiene.”
“O problema está aumentando porque há muita migração acontecendo das áreas rurais para as áreas urbanas todos os anos e vai explodir nos próximos, dentro de sete a oito anos. Haverá ainda mais pressão sobre a infraestrutura sanitária existente, e será preciso encontrar soluções de negócios inovadoras que precisam ser disponibilizadas para a manutenção adequada da infraestrutura que está sendo criada”, opina ele.
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