Na última década, o presidente Vladimir Putin conquistou amigos e admiradores em todo o mundo como a personificação de um líder firme, utilizando intervenções militares no Oriente Médio e na África para restaurar o papel da Rússia como potência mundial e promovendo-se como uma alternativa autoritária aos Estados Unidos e ao Ocidente.
A rebelião do Grupo Wagner no fim de semana anterior e suas consequências caóticas prejudicaram essa imagem, abalando muitas suposições sobre as credenciais autocráticas de Putin, a estabilidade da Rússia e o provável rumo da guerra na Ucrânia.
Como os eventos continuam se desenrolando, ainda é muito cedo para dizer o quanto Putin foi enfraquecido, segundo alertam os analistas. O Grupo Wagner pode ser desmantelado e seu líder, IevgeniI Prigozhin, agora exilado na vizinha Belarus, pode acabar detido ou morto. Putin pode ainda executar uma ampla campanha de repressão contra todos os seus críticos, o que poderia deixá-lo mais firme no comando do que antes.
Mas o fato de o líder russo não ter, até o momento, adotado uma postura dura contra os mercenários ou punido os envolvidos na rebelião, está prejudicando a imagem produzida de que ele sempre controla os acontecimentos — algo que o Kremlin projetou para o mundo em geral, bem como para a Rússia, disse Dmitri Alperovitch, analista de política externa que dirige o think tank Silverado Policy Accelerator.
“Isso é chocante para os ditadores, porque não é assim que eles reprimiriam um levante”, disse ele. “Muitos dos partidários de Putin estão bastante confusos e se perguntando sobre sua capacidade de ser o líder forte e o ditador autoritário forte que ele se apresenta como sendo.”
Apesar dos esforços dos EUA para reunir apoio internacional aos esforços da Ucrânia para combater a invasão, a maioria dos países, principalmente no Sul Global, absteve-se de tomar medidas contra a Rússia, professando neutralidade enquanto buscavam equilibrar as relações entre Moscou e Washington.
Mas Putin começou a parecer mais isolado do que estava antes da revolta. Nos dias que se seguiram à revolta, apenas oito líderes mundiais falaram com ele por telefone, incluindo os da Turquia, Irã e Qatar, Arábia Saudita, Bahrein e três vizinhos da Ásia Central, de acordo com informações do Kremlin e dos países envolvidos. “Muitos” outros telefonaram para expressar sua solidariedade, disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, a um canal de TV russo — mas, acrescentou, eles pediram que seus telefonemas não fossem divulgados.
Entre aqueles que não telefonaram para Putin nos últimos dias, destaca-se o líder chinês Xi Jinping, que certa vez chamou Putin de seu “melhor e mais íntimo amigo” e é considerado o aliado mais poderoso e importante da Rússia. O único comentário do Ministério das Relações Exteriores da China — de que a rebelião era um “assunto interno” — colocou a China de forma incomum na mesma página que Washington e outras capitais ocidentais que usaram a mesma linguagem para manter distância da revolta, segundo observou John Culver, ex-analista da CIA focado na China.
A China está demasiado presa em uma relação conflituosa com os Estados Unidos como para abandonar a Rússia, um pilar nos esforços de Xi para promover uma alternativa autoritária à influência global dos EUA, disse ele. Mas é provável que Pequim tenha ficado nervosa ao perceber que a Rússia de Putin, que compartilha uma fronteira de 2.600 milhas com a China, é mais instável do que se imaginava e que o controle de Putin sobre o poder pode ser frágil.
“Apostar em Putin, que Xi chamava de seu melhor amigo, não tem dado muito certo”, disse ele. “Eles o viam como seu único parceiro real nessa disputa com os EUA.”
É improvável que a turbulência provoque mudanças imediatas na política da maioria dos países do mundo que se recusaram a participar da aliança ocidental contra a Ucrânia, afirma Elizabeth Shackelford, ex-diplomata dos EUA que agora trabalha no Conselho de Assuntos Globais de Chicago. Mas isso pode forçar um avanço mais assertivo para uma solução de negociação aceitável para a Ucrânia e seus aliados, por parte da China ou de países da África, onde a maioria dos líderes permaneceu favoravelmente inclinada a Putin.
A presença de mercenários do grupo Wagner em vários países africanos coloca a África no centro das rivalidades que se desenrolam na Rússia, e os africanos sofreram desproporcionalmente com a inflação dos preços de alimentos e combustíveis provocada pela guerra na Ucrânia. Um teste inicial de como outros líderes continuam vendo Putin virá em julho, quando ele deverá sediar uma segunda cúpula de líderes africanos em São Petersburgo. A primeira, realizada em outubro passado, contou com a presença de 45 chefes de estado africanos.
Entre as suposições minadas pelos eventos dos últimos dias está a de que Putin é incapaz de fazer concessões, algo posto em dúvida por sua aparente prontidão em fechar um acordo com Wagner, disse a analista. Embora os detalhes precisos permaneçam um mistério, “claramente ele fez algum tipo de acordo”, disse ela. “O que isso diz sobre a disposição de Putin de negociar o fim da guerra? Ele deve estar se sentindo enfraquecido e a pergunta é: Isso vai torná-lo mais receptivo à guerra? Será que isso fará com que ele se torne mais receptivo a algum tipo de negociação?”
“Se Putin começar a parecer uma aposta não confiável”, acrescentou Shackelford, “os países que têm influência sobre ele poderão começar a tentar buscar estratégias de saída mais seriamente do que no passado”.
Putin não deu nenhuma indicação de que sua posição em relação à Ucrânia tenha se suavizado ou que ele sequer reconheça que o custo da guerra põe em risco seu regime, disse Alexander Gabuev, diretor do Carnegie Russia Eurasia Center. Prigozhin deu voz às queixas de muitos russos comuns quando citou os fracassos da guerra como um dos motivos de sua decisão de marchar até Moscou, disse ele.
Os aliados da Rússia, que permitiram que o Kremlin contornasse as sanções ocidentais e exportasse commodities russas, têm uma vantagem adicional para conseguir melhores acordos para si mesmos de um líder que acreditam ser mais fraco, disse Gabuev.
Mas, ao mesmo tempo, ele acrescentou: “Putin sobreviveu. Isso mostra que ninguém na Rússia está realmente pronto para desafiar o Putin”.
No entanto, Elizabeth afirma que a questão agora é saber por quanto tempo. Também está em dúvida a noção de que Putin pode se dar ao luxo de entrar em uma longa guerra, na expectativa de que o apoio ocidental à Ucrânia acabe diminuindo diante do aumento dos custos e das demandas políticas. Em vez disso, foi Putin quem se mostrou vulnerável ao preço que a guerra está cobrando dos russos comuns, que não se apressaram em apoiar a revolta de Prigozhin, mas também não se opuseram a ela.
“A ideia de que se trata de Putin superar o Ocidente ou o Ocidente superar Putin — a questão não é mais essa”, disse Shackelford. “A questão agora é: Será que a maior batalha de Putin não é contra o Ocidente, mas contra seu próprio povo?”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.