Como a Síria trocou um ditador vil por um futuro incerto

Não está claro quão estável ou benigno será o novo regime

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Por The Economist
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Houve alegria, horror e angústia ao mesmo tempo. Muitos dos detentos libertados de Saidnaya, a prisão mais notória da Síria, eram sombras de seres humanos: esqueléticos, olhares vagos. Eles saíram cambaleando de celas onde dezenas de pessoas estavam amontoadas em câmaras escuras e fedorentas. Nas paredes de uma delas, alguém rabiscou em árabe: “Leve-me o quanto antes”.

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Alguns prisioneiros estavam ali há décadas, tempo suficiente para que esquecessem seus nomes e suas famílias os declarassem mortos. De uma cela na seção feminina surgiu um menino, uma criança que talvez tenha passado a vida inteira na prisão. Aqueles que encontraram seus entes queridos vivos não conseguiam acreditar em sua sorte. Aqueles que não o fizeram ficaram desesperados. Um boato se espalhou de horrores ainda mais medonhos sob Saidnaya: milhares de outros detentos vivos, mas presos em celas subterrâneas escondidas atrás de portas ocultas.

Era um tipo perverso de falsa esperança. Um grupo que representa os detidos sírios posteriormente emitiu uma declaração refutando a alegação. A prisão estava vazia, disse; não havia mais celas escondidas, nem mais sobreviventes. Mas mesmo rumores falsos contêm alguma verdade. Bashar Assad, o ditador de tantos anos, foi brutal o suficiente para que os sírios achassem plausível que ele tivesse construído uma masmorra sob uma masmorra. Era difícil imaginar uma profundeza à qual ele não se rebaixaria.

Um cartaz com o rosto do ditador sírio, Bashar Assad, perfurado por balas em uma província de Hama , na Síria: queda altera todo o cenário do Oriente Médio  Foto: Omar Albam / AP Photo

Resistência final e libertação

A Síria está finalmente livre da brutalidade de Assad. Uma ofensiva rebelde que começou no noroeste em 27 de novembro progrediu com a velocidade de um raio. Em 8 de dezembro, os insurgentes chegaram a Damasco, a capital, e Assad fugiu para a Rússia, encerrando os 53 anos de governo de sua família. O que vem a seguir é incerto, mas certamente terá implicações profundas para a região. A maioria dos sírios duvida que possa ser pior do que aquilo que veio antes.

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Os rebeldes conseguiram derrubar Assad em 13 dias por causa da decadência constante dos 13 anos anteriores. Depois que ele decidiu em 2011 suprimir os apelos por democracia com violência, centenas de milhares de jovens sírios perderam suas vidas na guerra civil que se seguiu. Milhões de outros fugiram para países vizinhos ou para a Europa. Nos anos mais recentes, conforme o regime reafirmava seu controle sobre grande parte da Síria, a estabilidade trouxe poucos benefícios para aqueles que permaneceram. Um pequeno círculo de aproveitadores enriqueceu em meio às ruínas.

Os rebeldes, liderados por um grupo islâmico chamado Hayat Tahrir al-Sham (HTS), passaram anos treinando para sua ofensiva. Eles pareciam um exército moderno, com drones e forças especiais e uma estrutura de comando centralizada. Mas sua arma mais importante era a motivação: eles queriam derrubar o regime, enquanto o exército sírio não tinha mais a vontade de preservá-lo. Oficiais do alto escalão deixaram as linhas de frente para transferir suas famílias para partes mais seguras do país. Os soldados abandonaram seus postos. Os apoiadores estrangeiros do regime — Irã, Rússia e a milícia libanesa Hezbollah — diante da sua incapacidade de se defender e do cerco formado por seus próprios problemas, se recusaram a ajudá-lo. Não foi um golpe sem derramamento de sangue, mas foi quase isso: apenas algumas centenas de pessoas morreram nos últimos dias de uma guerra que matou meio milhão.

Damasco estava eufórica. Moradores invadiram o palácio presidencial, onde vasculharam a coleção de DVDs de Assad (ele aparentemente era fã de Borat) e as bolsas Louis Vuitton de sua esposa. Muitas lojas reabriram rapidamente. Uma longa fila serpenteava para fora de uma loja da Syriatel, de refugiados retornando ansiosos para comprar novos cartões SIM.

Alguns funcionários do governo se apresentaram para o trabalho como de costume. Do lado de fora do hotel Four Seasons, um funcionário municipal varria o lixo. Os funcionários dos correios não sabiam ao certo para quem estavam trabalhando ou se seus salários seriam pagos. Um grupo deles fumou e fofocou sobre o voo de Assad. Não estava claro se alguma carta seria entregue naquele dia.

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Êxtase e divisão

Mas nem todos os lugares estavam pacíficos. No norte, o Exército Nacional Sírio (SNA), uma força turca, atacou várias cidades controladas pelas Forças Democráticas Sírias (SDF), uma milícia principalmente curda apoiada pelos Estados Unidos. Isso serviu como um lembrete de que o país continua dividido entre vários grupos diferentes.

O HTS não foi a primeira milícia a chegar a Damasco — rebeldes do sul, sim — mas agora é a facção mais forte na capital. Suas forças têm estabelecido postos de controle e limitado o acesso a prédios do governo. Seus líderes também disseram aos rebeldes para pararem de atirar para o ar em comemoração, o que se tornou um incômodo.

Até agora, o HTS governou apenas a província de Idlib, um bolsão controlado por rebeldes no noroeste, onde provou ser competente, mas autoritário. Em 10 de dezembro, o grupo nomeou Muhammad Bashir, seu administrador-chefe em Idlib, como primeiro-ministro interino. Seu gabinete deve manter a segurança e fornecer serviços básicos até março, embora não esteja claro o que acontecerá depois. Na prática, o poder real ficará com Abu Mohammad al-Golani, o líder do HTS, que recentemente começou a usar seu nome real, Ahmad Sharaa, em vez de seu nome de guerra.

O ditador sírio Bashar Assad e o líder supremo do Irão Ali Khamenei em 2019 Foto: Site do líder supremo do Irã via AFP

Os sírios temem a possibilidade de o HTS tentar impor sua visão de governo islâmico ou tentar monopolizar o poder. Com razão: o HTS surgiu da afiliada síria da Al-Qaeda, embora tenha cortado laços com os jihadistas em 2017. Além disso, uma coisa é governar a rural e conservadora Idlib, e outra é governar o país inteiro, com cidades cosmopolitas e grandes minorias religiosas e étnicas.

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O HTS disse as coisas certas até agora. Em 9 de dezembro, proibiu seus combatentes de “interferir no vestuário feminino”. Declarações direcionadas às minorias cristã e drusa enfatizam que seus direitos serão respeitados. Uma mensagem aos curdos declarou “A diversidade é nossa força”. Além de adotar a retórica da lacração, Sharaa aparou cuidadosamente sua barba outrora grisalha e descartou seu turbante e equipamento de camuflagem em favor de uniformes sóbrios.

Muitos cristãos sírios estão cautelosamente otimistas. A seita alauíta de Assad está mais preocupada. Muitos se retiraram para suas aldeias ancestrais ao longo da planície costeira. O HTS parece menos benevolente quando se dirige a eles, exigindo que cortem laços com o antigo regime. A comunidade fez alguns gestos conciliatórios: líderes religiosos em Qardaha, a cidade natal da família Assad, dizem que aceitam o governo do HTS e removerão as estátuas do ex-presidente.

Houve poucos relatos de represálias. Em 9 de dezembro, o HTS anunciou uma anistia para soldados que foram recrutados para o exército. Isso é sensato: a maioria foi recrutada contra sua vontade. Ao mesmo tempo, Sharaa prometeu caçar funcionários do alto escalão de segurança. Mas até agora, dizem fontes, isso significou confiscar suas armas e uniformes e mandá-los para casa: desmobilização, e não pelotões de fuzilamento.

Rebelde opositor pisa na cabeça de uma estátua de Hafez Assad, o pai de Bashar Assad, após queda do regime em Damasco, na Síria  Foto: Hussein Malla/AP

Ele tem sido ainda mais pragmático com a burocracia, dizendo ao Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, para manter os diplomatas em seus postos. Esse decreto criou cenas surreais. Bashar Ja’afari, embaixador da Síria em Moscou, foi um dos mais leais bajuladores de Assad. Mas, em uma entrevista com um canal de televisão russo em 8 de dezembro, ele denunciou a “máfia corrupta” que tinha comandado a Síria.

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Por vários anos, o HTS foi indiscutivelmente melhor em fornecer serviços básicos do que o governo central: o fornecimento de eletricidade era mais confiável em Idlib do que em Aleppo, por exemplo. Mas o grupo sabe que não tem capacidade para administrar toda a Síria e precisa de ajuda do funcionalismo público existente. “Ele está sendo inteligente em termos de continuidade das instituições estatais”, diz um diplomata a respeito de Sharaa. “A questão é o nível superior, os ministérios do gabinete, o poder real.”

O gabinete de Bashir está cheio de membros do HTS: ministros de Idlib receberam os mesmos empregos em Damasco. Outras milícias estão resmungando. O SNA, o SDF e uma aliança de rebeldes do sul querem ter voz no novo regime. Alguns desses grupos têm reputação de crime e banditismo. O HTS, embora seja a facção mais forte, não é poderoso o suficiente para controlar o país inteiro ou desarmar à força milícias rivais.

Alguns rebeldes também reclamam da deferência demonstrada a certos membros do regime deposto, o que eles veem como uma traição à revolução. Assad se escondeu na Rússia, mas o paradeiro de muitos de seus capangas é um mistério. Ninguém sabe o que aconteceu com o irmão de Assad, Maher, um implacável comandante do exército, por exemplo. Alguns sírios acham que ele fugiu para a costa, outros, para o Irã. Diplomatas estrangeiros se preocupam com a perspectiva de milícias alauítas pegarem em armas.

A diáspora síria passou anos fazendo planos detalhados para como eles poderiam governar após a queda de Assad. Um grupo de ativistas da oposição publicou um “Roteiro de transição da Síria” com um rascunho de constituição provisória. Outro grupo, chamado Dia Seguinte, lançou um plano de transição em 2012 com cronogramas para tudo, desde justiça transicional até reforma do banco central. Houve também um esforço liderado pela ONU para reunir o regime e a oposição para escrever uma nova constituição. Foi inútil: Assad estava apenas fingindo interesse na reforma. Mas alguns de seus membros têm boas ideias para uma nova carta nacional.

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O problema é que muitos desses ativistas estão fora do país — e nenhum deles tem armas. Uma fonte próxima ao HTS acha que a democracia não estará no topo da agenda de Sharaa. Seu governo em Idlib se tornou ditatorial o suficiente para desencadear protestos no início deste ano. Ainda assim, muitos sírios o trataram com tolerância: era muito melhor do que Assad. “Com o colapso do regime, talvez as pessoas não tenham mais a mesma tolerância que tinham”, diz Haid Haid, da Chatham House, um centro de estudos estratégicos.

No curto prazo, a popularidade de Sharaa pode depender de ele conseguir atrair ajuda e investimento. As necessidades da Síria são enormes. O PIB caiu 87% desde o início da guerra, de US$ 68 bilhões em 2011 para apenas US$ 9 bilhões hoje. Acredita-se que o custo da reconstrução esteja na casa das centenas de bilhões de dólares. O país ainda está sob rigorosas sanções ocidentais, embora a saída de Assad pareça tornar tais medidas obsoletas. Empresários sírios no exterior estão esperando para ver se o HTS acaba com os detritos do governo de Assad — uma economia dirigida pelo Estado, controles de capital, nepotismo — antes de decidir se investirão.

Membros da comunidade síria em Berlim agitam bandeiras em 8 de dezembro após a queda de Bashar Assad na Síria Foto: Ralf Hirschberger/AFP

Muitos sírios se irritam com a ideia de que podem acabar como outros países da região que derrubaram regimes repressivos. Eles veem poucos paralelos com o Iraque e o Afeganistão, ambos invadidos por estrangeiros que estabeleceram novos governos com a ajuda de exilados. A Síria é quase o oposto: uma revolta local contra um regime que foi apoiado por estrangeiros. Ao contrário da Líbia ou do Iêmen em 2011, a Síria já passou por uma guerra civil. Os otimistas esperam que a memória amarga estimule suas várias milícias a fazerem concessões. Isso pode ser uma ilusão. Por enquanto, porém, os sírios estão sentindo uma emoção rara: esperança.

Um dos slogans do regime de Assad era qaidna lil abad, “nosso líder para sempre”. Parecia verdade: não importando a extensão do dano que causaram, os Assads resistiram. Até que, de repente, não puderam mais resistir. Conforme os rebeldes se aproximavam de Damasco, Yassin Haj Saleh, um dissidente que passou 16 anos na prisão, sabia que muitos desafios estavam por vir. Mas isso era assunto para amanhã: “O ‘para sempre’ acabou”, ele escreveu, “e a história está começando”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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