Análise | Como a Ucrânia ajudou rebeldes da Síria para humilhar a Rússia

Ávido para fazer Putin sangrar, o governo ucraniano forneceu drones para a ofensiva que derrubou Assad

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Por David Ignatius (The Washington Post)

Os rebeldes sírios que tomaram o poder em Damasco no fim de semana passado receberam drones e outros tipos de apoio de operadores de inteligência ucranianos que buscavam sabotar a Rússia e seus aliados sírios, de acordo com fontes familiarizadas com atividades militares da Ucrânia no exterior.

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A inteligência ucraniana enviou cerca de 20 operadores de drones experientes e cerca de 150 drones de visão em primeira pessoa para os quartéis dos rebeldes em Idlib, na Síria, quatro ou cinco semanas atrás para ajudar o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), o principal grupo rebelde instalado por lá, afirmaram as fontes informadas.

A ajuda de Kiev desempenhou um papel modesto na deposição do ex-presidente sírio Bashar Assad, acreditam fontes de inteligência ocidentais. Mas foi notável enquanto parte de um esforço maior da Ucrânia de atacar secretamente operações russas no Oriente Médio, na África e dentro da própria Rússia.

Imagem desta terça-feira, 10, mostra rebelde sírio carregando uma bandeira do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) em Damasco. Milícia recebeu apoio ucraniano para derrubar Assad Foto: Hussein Malla/AP

O programa secreto de assistência da Ucrânia na Síria era um segredo conhecido, mas graduadas autoridades do governo Biden afirmavam repetidamente em resposta aos meus questionamentos que não sabiam nada a respeito. A motivação da Ucrânia é óbvia: encarando uma investida russa dentro de seu país, a inteligência ucraniana buscou outras frentes em que é capaz de fazer a Rússia sangrar e minar seus clientes.

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Os ucranianos propagandearam suas intenções. O jornal Kyiv Post citou uma fonte da agência de inteligência militar da Ucrânia (GUR), numa reportagem de 3 de junho, que disse ao veículo de imprensa que, “desde o início do ano, os rebeldes (sírios), com apoio de operadores ucranianos, infligiram numerosos ataques contra postos militares da Rússia instalados na região”.

A reportagem, postada online, incluiu um link para um vídeo que exibia ataques contra um bunker de pedra, uma van branca e outros alvos que, segundo o jornal, tinham sido atacados por rebeldes com apoio ucraniano dentro da Síria. A reportagem afirmava que a operação na Síria era conduzida por uma unidade especial conhecida como “Khimik”, que integra a GUR, “em colaboração com a oposição síria”.

Autoridades russas vêm reclamando há anos a respeito do esforço paramilitar da Ucrânia na Síria. O representante especial da Rússia para a Síria, Alexander Lavrentiev, afirmou em novembro, numa entrevista à agência de notícias estatal russa TASS, que “Nós realmente temos informações de que especialistas ucranianos da Diretoria Principal de Inteligência da Ucrânia estão no território de Idlib”.

O ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, tinha feito em setembro uma declaração similar sobre “emissários ucranianos de inteligência” em Idlib. Ele alegou que os ucranianos conduziam “operações sujas”, de acordo com o jornal sírio Al-Watan, que afirmou que o tenente-general Kirilo Budanov, chefe da GUR, mantinha contato com o HTS pessoalmente.

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Antes da ofensiva do HTS derrubar Assad, autoridades russas afirmavam que a ligação da Ucrânia com o grupo rebelde era uma tentativa de recrutar combatentes sírios para sua guerra contra o Kremlin. Uma reportagem publicada em setembro pela revista online The Cradle afirmou que a Ucrânia tinha oferecido 75 veículos aéreos não tripulados em um acordo de “drones em troca de combatentes” com o HTS. Mas não há nenhuma evidência independente que fundamente essa afirmação russa.

A Rússia ficou claramente surpresa com o rápido avanço do HTS sobre Damasco — curiosamente, porém, fontes russas tentaram minimizar o papel da Ucrânia. Uma reportagem publicada em 2 de dezembro no website de notícias Middle East Eye citou um perfil russo no Telegram que refletia as visões das Forças Armadas russas desconsiderando a importância da assistência de Kiev: “Membros da GUR estiveram em Idlib no início, mas ficaram pouco tempo por lá” — não o suficiente para treinar sírios do zero para operar veículos aéreos não tripulados (vants). “Em segundo lugar”, seguia a mensagem, “o HTS tem seu próprio programa de vants há muito tempo”.

A operação síria não é o único exemplo das atividades da inteligência da Ucrânia no exterior para sabotar operadores russos. A BBC noticiou em agosto que Kiev tinha ajudado rebeldes no norte do Mali a emboscar mercenários russos do Grupo Wagner. O ataque de 27 de julho matou 84 operadores Wagner e 47 malineses, afirmou a BBC.

Da mesma forma que os ataques da Ucrânia na África e a incursão ucraniana na região de Kursk, dentro da Rússia, a operação secreta de Kiev na Síria reflete uma tentativa de ampliar o campo de batalha — e atingir os russos onde eles estão desprevenidos.

O porta-voz da GUR Andrii Yusov comentou a operação no Mali vários dias depois, afirmando que os rebeldes malineses “receberam informações necessárias — e não apenas informações — que possibilitaram uma operação militar bem-sucedida contra os criminosos de guerra russos”, de acordo com a BBC. Depois do ataque, o Mali cortou relações diplomáticas com a Ucrânia.

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Budanov prometeu, em abril de 2023, que a Ucrânia perseguiria russos culpados de crimes de guerra “em qualquer parte do mundo”, segundo uma reportagem. As agressivas operações de inteligência de Budanov preocuparam em certos momentos o governo Biden, disseram-me autoridades americanas.

Perguntei a Budanov numa entrevista em seu escritório em Kiev, em abril, a respeito dos relatos sobre operações da GUR contra a milícia Wagner na África. “Nós conduzimos operações desse tipo, com objetivo de reduzir o potencial militar da Rússia, em qualquer lugar que seja possível”, respondeu ele. “Por que a África deveria ser exceção?”

Da mesma forma que os ataques da Ucrânia na África e a incursão ucraniana na região de Kursk, dentro da Rússia, a operação secreta de Kiev na Síria reflete uma tentativa de ampliar o campo de batalha — e atingir os russos onde eles estão desprevenidos. A ajuda da Ucrânia não foi “a palha que quebrou as costas do camelo”, por assim dizer. Mas ajudou, pelo menos um pouco, a derrubar o cliente mais importante da Rússia no Oriente Médio.

E da mesma forma que Israel em seu fracasso em antecipar a incursão do Hamas através da cerca de Gaza, em 7 de outubro de 2023, a Rússia sabia que rebeldes apoiados pelos ucranianos poderiam atacar, mas não foi capaz de se mobilizar para impedir o ataque e evitar suas consequências devastadoras. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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