Como a Ucrânia planejou a ofensiva que colocou Putin na defensiva e mudou o rumo da guerra

Série em três capítulos mostra como ucranianos planejaram ofensiva contra a Rússia entre setembro a novembro, com auxílio de americanos e europeus

PUBLICIDADE

Por Isabelle Khurshudyan, Paul Sonne, Serhiy Morgunov e Kamila Hrabchuk
Atualização:

A guerra da Ucrânia entrou em 2023 com um novo mapa da linha de frente e com a Rússia na defensiva após sucessivas vitórias de Kiev, tanto no campo de batalha, quanto nos contra-ataques aéreos que têm infligido perdas às tropas de Vladimir Putin. A mudança nos rumos da guerra, ainda que Moscou recorra a frequentes ataques com drones contra as principais cidades ucranianas, só foi possível graças a uma eficaz estratégia de contraofensiva militar planejada em conjunto por ucranianos, americanos e europeus.

PUBLICIDADE

No início de setembro, as forças ucranianas avançariam por centenas de quilômetros quadrados, derrotando os russos e surpreendendo a si mesmas. A ofensiva de Kharkiv revelou a incapacidade de uma força russa subequipada de manter um front vasto. Isso chocou o Kremlin e provou aos apoiadores da Ucrânia que eles não estavam desperdiçando bilhões em armas e ajuda econômica.

Putin foi forçado a recrutar centenas de milhares de homens, deixando claros os custos da guerra para uma população russa que se isolara da “operação militar especial” de seu líder. A mobilização desencadeou agitação, mas era tarde demais para impedir que o ímpeto da Ucrânia se espalhasse para o sul até Kherson, onde, após duros combates e perdas significativas, as forças de Kiev recapturaram em novembro a única capital regional que Putin havia conquistado desde o início da guerra.

Esta reconstrução das contraofensivas de Kharkiv e Kherson, que colocaram Putin na defensiva, se baseia em entrevistas com mais de 35 pessoas, entre elas comandantes ucranianos, autoridades de Kiev e soldados em combate, além de altos funcionários militares e políticos dos Estados Unidos e da Europa.

Publicidade

Dividida em três capítulos, esta série conta no capítulo desta quarta-feira, 4, como a estratégia foi planejada entre Volodmir Zelenski e seus aliados. Na quinta-feira, 5, a reportagem mostrará como se deu a retomada de Kharkiv, no leste da Ucrânia. Na sexta, 6, é a vez de um raio-X sobre a retomada de Kherson, no sul.

Um chamado inesperado

Depois de semanas batalhando por pedaços de território no front mais sangrento da guerra, Oleh, comandante de companhia ucraniano de 21 anos, foi convocado de repente em agosto passado, junto com milhares de outros soldados, para um obscuro ponto de encontro na região de Kharkiv.

Em sua última posição, o fogo implacável da artilharia russa perseguira cada passo de seus homens. Mas aqui, em um trecho de aldeias, fazendas e riachos no nordeste da Ucrânia, o silêncio era profundamente alarmante. “O que mais me incomodava era o silêncio”, disse Oleh. “Parecia tinha alguma coisa errada”.

Ainda mais perturbadoras foram as ordens de seus superiores: atacar até 60 quilômetros adentro do território inimigo, em alta velocidade, em uma contraofensiva audaciosa e ultrassecreta – entre a fortaleza ocupada pelos russos em Izium e a região russa de Belgorod, pontilhada de forças militares. Parecia absurdo. “Uma operação meio duvidosa”, disse Oleh.

Publicidade

Equipamento militar russo abandonado na cidade de Izium, retomada pela Ucrânia  Foto: Wojciech Grzedzinski / The Washington Post

Planejando a ofensiva

As ordens para Oleh eram a ponta de uma operação que começou a ser planejada em agosto, quando o general Alexander Sirski, com apoio de armas, inteligência e aconselhamento militar americano desenhou uma estratégia para retomar a estratégica cidade de Izium dos russos.

“A nossa relação com nossos aliados mudou ali”, disse ele. “Eles viram que, a partir de Izium,conseguiríamos alcançar a vitória e que a ajuda deles estavam surtindo efeito.

Nos últimos dias de agosto, Sirski se reuniu em uma grande sala de operações no leste da Ucrânia com seus principais assessores e comandantes de brigada. Diante deles estava um mapa de terreno impresso em 3D de 50 metros quadrados da parte da região de Kharkiv ocupada pela Rússia.

Cada comandante percorreu o caminho do ataque planejado de sua unidade em meio às réplicas de cidades, colinas e rios, projetando sua missão e discutindo coordenação, contingências e possíveis cenários. Os oficiais usavam ponteiros laser para destacar os pontos problemáticos. “Foi um trabalho meticuloso”, disse Sirski.

Publicidade

Desde abril, Sirski vinha considerando a região de Kharkiv e as cidades estratégicas de Balaklia e Izium como pontos vulneráveis para os russos.

Ele começou a pensar em como conduziria uma ofensiva entrando profundamente no território controlado pela Rússia a partir de uma área inesperada ao norte das duas cidades, isolando as forças russas das reservas na fronteira próxima e colocando Balaklia e Izium em risco de cerco.

Alguém teria de ser louco para tentar atacar bem no meio das cidades de Izium e Belgorod e dividir as duas. Mas a ideia era essa

Alexander Sirski, general ucraniano

Um golpe certeiro

A geografia e o posicionamento das forças russas o convenceram de que isso poderia ser realizado com um golpe único e rápido – idealmente tão rápido que a Rússia não seria capaz de se reagrupar.

Quando as ordens foram emitidas pelo Estado-Maior ucraniano no verão passado para que os comandantes apresentassem possíveis operações de distração para afastar as forças russas da defesa de Kherson, Sirski sabia o que iria propor.

Publicidade

“O inimigo (...) pensou que, como tantas forças haviam sido agrupadas em Izium e mais estavam estacionadas na fronteira russa na região de Belgorod, ‘alguém teria de ser louco para se mover e tentar atacar bem no meio e dividir as duas’”, disse Sirski. “Mas a ideia era essa”.

Nos estágios iniciais da guerra, a Rússia converteu Izium em um reduto militar, vendo a cidade como base para um movimento de pinça que cercaria as forças ucranianas no leste. No auge de seus preparativos, de acordo com Syrsky, a Rússia reuniu 24 grupos táticos – cerca de 18 mil soldados – em Izyum e cidades vizinhas, além de estoques de armas e munições.

Em agosto, em parte graças à inteligência detalhada fornecida pelos Estados Unidos, Syrsky viu que o número de batalhões em Izium havia caído pelo menos pela metade, quando a Rússia realocou seus combatentes mais experientes para Kherson.

Sirski calculou que a Ucrânia não conseguiria arcar com as perdas que viriam com o ataque frontal a vilas e cidades. Em vez disso, ele planejou varrer o front, cercando os centros populacionais e forçando o inimigo a recuar.

Publicidade

A velocidade era essencial. Se os russos enviassem reservas desde o outro lado da fronteira, um grande número de soldados ucranianos poderia ficar isolado atrás das linhas inimigas.

“Tudo dependia do primeiro dia – até onde conseguiríamos avançar”, disse Sirski. “Quanto mais longe fôssemos, menos eles poderiam fazer, mais suas unidades seriam cortadas e isoladas, sob pressão psicológica”.

Aleksandr Sirski planejou a ofensiva ucraniana em Kharkiv: 'tudo dependia da nossa rapidez' Foto: Anastasia Vlaslova / The Washington Post

Parceria com os americanos

Os serviços de inteligência americanos ajudaram os ucranianos a racionar a munição e a escolher os melhores alvos. Com a evolução dos alvos, a parceria praticamente funcionava em tempo real. Enquanto Kiev escolhia um alvo de interesse, os americanos forneciam a localização dele por meio de seus vastos recursos de localização via satélite.

No Pentágono, as autoridades suspeitavam que a liderança da Rússia não percebera totalmente as vulnerabilidades no front de Kharkiv porque os comandantes do campo de batalha estavam mentindo para seus superiores. Outra hipótese, disse um alto funcionário da defesa dos Estados Unidos, era que a Rússia previra o ataque, mas não tinha homens suficientes para detê-lo. Sirski acredita na primeira opção: “Ou a informação do nosso ataque não chegou ou não foi levada a sério”

Publicidade

Em meados de agosto, Sirski estava confiante de que o plano funcionaria – mas precisava vendê-lo para Zelenski. Ele descreveu a missão como uma chance de libertar uma grande faixa de território com o mínimo de recursos e perdas.

O presidente, desejando uma grande vitória no campo de batalha, aprovou o ataque. A maré da guerra, em breve, mudaria a seu favor.../ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

No próximo capítulo, na quinta-feira, 5, veja como os ucranianos tomaram cidades de Kharkiv numa blitzkrieg que surpreendeu Putin e abriu caminho para a retomada de importantes territórios na guerra