ENVIADA ESPECIAL A KIEV* - Em uma roda de conversa entre dois membros do gabinete de Volodmir Zelenski e uma delegação de jornalistas latino-americanos, o chefe adjunto do departamento de política externa Andrii Nadzhos fez questão de falar em espanhol.
“Desde o início da agressão em larga escala da Rússia à Ucrânia em 2022, o apoio à Ucrânia na ONU por parte dos países da Celac aumentou significativamente, e digo muito obrigado a cada um de seus países por nos apoiarem em nosso trabalho no âmbito da ONU”, disse Andrii à delegação composta por jornalistas do Brasil, Argentina e Colômbia.
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“Até agora, entre 23 e 25 países apoiam sistematicamente as resoluções ucranianas na Assembleia-Geral, e a tarefa mais importante é garantir que os países da Celac apoiem a Ucrânia para contrariar a agressão russa”, completou.
Como já foi adiantado pelo Estadão, a Ucrânia tem trabalhado para propor uma cúpula entre o país e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, organismo que visa a cooperação dos seus membros para o desenvolvimento) em uma tentativa de aproximar Kiev da América Latina.
O episódio, específico, é um exemplo dos últimos esforços da Ucrânia para se aproximar do chamado Sul Global. Em um momento em que a ajuda ocidental dá sinais de enfraquecimento, Kiev se mobiliza para evitar que sua guerra se torne mais uma esquecida pelo mundo.
Mas não são apenas os latino-americanos os alvos. O leste da Ásia e a África também estão sendo cortejados pelo governo de Zelenski, em um esforço para se aproximar de países declaradamente mais próxims da Rússia. Não à toa, antes da delegação de latino-americanos, a Ucrânia recepcionou jornalistas da Ásia e o próximo grupo será da África.
Esperança por armas do Sul
O apelo não é exclusivo do gabinete de Zelenski. A tentativa de atrair apoio do Sul Global também tem mobilizado membros do Congresso, desde o partido do presidente à oposição, passando por blocos independentes.
“Temos dependido principalmente de parceiros europeus e americanos para o fornecimento de armas, mas outros países possuem armas de que muitas vezes precisamos”, afirmou Inna Sovsun, deputada pelo partido Holos, que compõe um bloco de oposição ao partido de Zelenski.
“O Brasil, por exemplo, pode ser um fornecedor de armas. Tenho certeza de que outros países têm armas que podemos usar para nos proteger. Enquanto a Europa busca aumentar sua capacidade de proteção, ela não tem muito mais a oferecer. Então, talvez essa contribuição [dos países do chamado Sul Global] e se tornarem parte dessa batalha também resulte em medidas práticas”, completa.
Quando questionados se de fato esperam receber armamentos de países como o Brasil, a deputada Ivanna Klympush-Tsintsadze, representante da oposição, endossou a colega: “Durante esses dois anos de invasão em grande escala, muitas coisas que pareciam totalmente impossíveis já se tornaram história. Então, eu não descartaria”.
“Para nós é importante que possamos, por exemplo, comprar armas de alguns desses países que não estão necessariamente prontos para vender armas para nós. Uma possibilidade é comprar armas com o dinheiro de nossos parceiros ocidentais. Comprar alguns tipos específicos de munições que precisamos, por exemplo”, continuou.
Em abril de 2023, documentos vazados do Pentágono já mostravam o grande interesse ucraniano em adquirir armamentos do Brasil, que tem uma alta produção de aviões de guerra. O país, porém, foi categórico ao negar. “Não quero entrar na guerra. Quero acabar com ela”, afirmou Luiz Inácio Lula da Silva na época.
O Brasil alega seguir o princípio orientador da política externa do País, pragmático e de não alinhamento automático, em busca de um consenso. Mas levantamento do NYT de abril de 2023 mostrou que o País chegou a fornecer armamentos à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos na guerra do Iêmen, incluindo munições cluster, condenadas internacionalmente.
Mas a Ucrânia recebeu sinais positivos na região. Um deles foi do presidente da Argentina, Javier Milei, com quem Kiev celebra ter excelentes relações, principalmente após o comparecimento de Zelenski à posse de Milei em dezembro.
O libertário vem traçando um plano para fornecer cinco aviões de combate para a Ucrânia. O país não utiliza as aeronaves devido a um embargo britânico como consequência da guerra das Malvinas.
Para não ser considerado envolvido diretamente na guerra, o país entregaria as aeronaves para a França em troca de outros equipamentos militares, e Paris faria a entrega para Kiev. Recentemente, a Argentina fez a aquisição de aeronaves F-16, de fabricação americana, via Dinamarca.
Cúpula
O esforço diplomático ucraniano tem se dado nos bastidores, mas o país fez um primeiro grande esforço semanas atrás para realizar a Cúpula da Paz, na Suíça. A Ucrânia tinha grandes expectativas na presença da China, Brasil, Índia e África do Sul, países que compõem o Brics junto com a Rússia e que poderiam servir de interlocutores com Moscou, segundo havia adiantado o Conselheiro do gabinete de Zelenki, Oleksandr Bevz.
A China, porém, rejeitou o convite e tentou avançar um novo plano de paz para a Ucrânia em paralelo, em um movimento que Zelenski classificou como boicote à cúpula em parceria com a Rússia. O Brasil confirmou presença no evento, mas com uma delegação de nível diplomático menor, sem o chanceler Mauro Vieira e nem o presidente Lula - que os ucranianos tinham esperança que comparecesse. No fim, o país participou como “observador”.
A cúpula, que se propunha a ser a primeira fase de uma fórmula de paz que parte da Ucrânia, enviou convites para mais de 160 países, mas menos de 100 participaram. Apenas países europeus enviaram presidentes ou primeiros-ministros. Os Estados Unidos enviaram a vice-presidente, Kamala Harris.
Dos quase 100 países, 80 assinaram a declaração final do encontro que defende a integridade territorial da Ucrânia com base nos preceitos da Carta da ONU. O Brasil não assinou o documento, assim como África do Sul e Índia. Países do Brics estendido também se recusaram a assinar: Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Argentina, Iraque, Catar, Ruanda, Turquia, entre outros, assinaram.
Momento delicado
O esforço chega em um momento especialmente delicado para a Ucrânia. A ajuda dos países do Ocidente dá sinais de minguar, principalmente no Congresso dos EUA onde um pacote bilionário ficou parado por meses.
Em meio a isso, o presidente americano Joe Biden passa pelas suas próprias questões internas enquanto lida com uma popularidade baixa meses antes das eleições que o colocará frente a frente com Donald Trump. O próprio retorno de Trump e sua promessa de “acabar com a guerra em um dia” faz a Ucrânia estremecer.
“A única alternativa que a Ucrânia tem é pedir ajuda para aqueles que são menores”, observa o professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH Christopher Mendonça. “Os Estados Unidos não estão dando o apoio suficiente, estão atrasando demais. Agora dão sinais dúbios sobre a guerra. Isso é por causa da eleição. E claro que a Ucrânia se viu obrigada a fazer contato com outros países entre eles os de médio porte como Brasil, Argentina, Egito, entre outros”.
Além dessas dificuldades, a Rússia abriu uma nova frente no nordeste da Ucrânia, em Kharkiv, pressionando as defesas do país e avançando na guerra. Kiev tem tido menos capacidade do que Moscou de repor seus estoques de armamentos e pessoal conforme a guerra se prolonga, enquanto a Rússia busca cada vez mais outros parceiros estratégicos como China, Irã e Coreia do Norte.
O fator China
Todos os esforços para engajar o Sul Global, porém, serão infrutíferos sem a China, que tem poder de fato de exercer pressão sobre Vladimir Putin, admitem os próprios ucranianos. Engajados em uma “parceria sem limites”, o comércio entre China e Rússia é o que tem mantido a máquina de guerra de Putin, apesar das sanções internacionais. A ausência de Pequim na cúpula na Suíça foi um grande revés para os ucranianos.
“A China está ajudando a Rússia com apoio ao complexo militar e industrial. Os americanos são muito vocais sobre isso, nós somos mais cautelosos porque entendemos o que está acontecendo”, afirma o deputado Oleksandr Merezhko, do partido de Volodmir Zeleski.
“Não queremos afastar a China por que precisamos da China. Estamos interessados que Pequim não envie abertamente armamentos letais para a Rússia, é por isso que temos que ser cuidadosos”, completa.
Assim como o Brasil, Pequim tentou atuar como mediador de negociações de paz entre Ucrânia e Rússia, um status que Kiev diz não aceitar. “A China não reconhece a Rússia e a Ucrânia com pesos diferentes nesse conflito. Por isso, eles não podem ser mediadores mesmo que quisessem”, opina o diplomata e ex-embaixador ucraniano nos EUA Valeri Chali.
“O que a China pode de fato fazer é prevenir a Rússia de usar armas nucleares, porque nem os chineses querem que se abra essa caixa de Pandora. A China tem um papel importante, mas não é de mediadora”, continua, mas opina que Pequim se beneficia de um conflito duradouro. “A China não quer que a Rússia perca, mas se beneficia de uma Rússia mais fraca, com benefícios econômicos, acesso a gás e petróleo a preço menor. Por isso, para mim, parece que a China gostaria de manter esse conflito o quanto puder”.
*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia
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