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Como a Venezuela chegou até aqui? Bolívar, Chávez e a jornada autoritária que descarrilou o país

A história de uma aliança entre radicais de esquerda e militares que ganhou impulso do narcotráfico para se manter no poder

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Por Redação

“A Venezuela é uma bomba-relógio, e eu sou uma espécie de desativador. Se o desativador falha, a bomba pode explodir. Por isso, eu não tenho o direito de falhar”, disse o tenente-coronel da reserva Hugo Chávez. Ele tinha 44 anos quando reuniu os jornalistas para um entrevista coletiva em Caracas. Horas depois, tomaria posse com um discurso inflamado na sede do Congresso, em 2 de fevereiro de 1999.

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Na época, segundo o Banco Mundial, a Venezuela tinha a renda per capita mais alta da América do Sul, um pouco acima de Argentina e Chile, superior à do Brasil e quase o dobro da colombiana. Apesar das derrapadas do continente, a inflação estava sob controle, a taxa de desemprego era medíocre e o bolívar mostrava resiliência frente ao dólar.

Hoje, 25 anos após a revolução de Chávez, a Venezuela é o país mais pobre da América do Sul. A inflação bateu em 1.698.488%, em 2018, segundo a Comissão de Finanças da Assembleia Nacional. O bolívar foi pulverizado. Durante a onda de protestos de 2017, US$ 20 eram trocados no mercado negro por uma mochila de notas sem valor. Em muitos mercados de Caracas, os caixas preferiam pesar os chumaços de dinheiro em vez de contá-los um por um.

Hugo Chávez, em 2002, discursa no Palácio Miraflroes, sede do governo venezuelano, à frente de um quadro de Simón Bolívar  Foto: Palacio Miraflores /Estadão

O ponto de partida da revolução bolivariana está no assombroso paralelo entre Chávez e a biografia de Simón Bolívar, por quem ele era obcecado. O Libertador da América foi um dos primeiros caudilhos sul-americanos. Defendia um arranjo político com um presidente vitalício e senadores hereditários.

Idolatrado na Venezuela, Bolívar é onipresente: virou nome de cidade, de praças, da moeda nacional e do pico mais alto do país. O caudilho, no entanto, foi um personagem em constante mutação: marido apaixonado, jovem viúvo revoltado e um arremedo de ditador detestado em outras regiões do continente, principalmente no Peru.

O historiador peruano Jorge Basadre dizia que Bolívar foi muitos homens diferentes, que foram morrendo com o tempo. Ele foi um romântico, em 1804; um diplomata, em 1810; um jacobino, em 1813; protetor da liberdade, em 1819; e gênio da guerra, em 1824. “Quando viveu no Peru, entre 1825 e 1826, foi um imperador. O Peru ficou com o pior dos Bolívares.”

O então presidente da Venezuela, Hugo Chávez (à esquerda), fala com o então ministro da RElações Exteriores, Nicolás Maduro, no Uruguai, em 2007  Foto: Matilde Campodonico / AP Photo

Chávez também teve uma trajetória mutante. Era o defensor dos pobres, revolucionário, socialista, castrista, mas com o tempo se tornou fascista, autoritário e polarizador. Seu movimento foi uma estranha aliança de radicais de esquerda com militares, que se inspiravam no ditador peruano Juan Velasco Alvarado.

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Em 1992, ele liderou uma espécie de movimento tenentista venezuelano, que promoveu uma quartelada fracassada contra o presidente, Carlos Andrés Pérez. Foi preso e ficou dois anos atrás das grades – acabou anistiado pelo presidente seguinte, Rafael Caldera.

O país atravessava um momento caótico. Escândalos de corrupção e a política de ajuste econômico provocaram ondas de violência, como o Caracazo, em 1989, uma explosão social que deixou milhares de mortos – embora o saldo oficial tenha sido de apenas 300.

A prisão tornou o tenente conhecido. Quando Pérez sofreu um impeachment, acusado de desviar dinheiro público, em 1993, Chávez virou mártir e ressurgiu como uma espécie de populista antissistema avant la lettre, duas décadas antes de Viktor Orbán, Donald Trump, Beppe Grillo e Nigel Farage.

O sistema partidário venezuelano estava em frangalhos quando Chávez foi eleito presidente, em 1998. Sua rival era Irene Sáez, uma ex-modelo que havia vencido o concurso de Miss Universo, em 1981. “Não sou o diabo”, disse o comandante, na época em que precisava de votos.

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Mas, assim que assumiu, 25 anos atrás, deu os primeiros sinais de que daria uma cavalo de pau na política venezuelana. “Juro diante do meu povo, sobre esta moribunda Constituição, que impulsionarei as transformações democráticas para que a república tenha uma nova Carta Magna adequada aos novos tempos.”

Do Palácio Miraflores, Chávez ditou sua revolução bolivariana, abusando das receitas do petróleo para comprar alianças regionais e oxigenar o regime de Fidel Castro. Mas o caráter do que ele chamava de “socialismo do século 21″ foi para sempre afetado pela conjunção de fatores quase simultâneos: o Plano Colômbia, uma tentativa de golpe contra ele e uma greve geral.

Um eleitor vota diante de um mural que retrata o falecido presidente Hugo Chávez durante a eleição presidencial em Caracas, na Venezuela Foto: Fernando Vergara/AP

A sequência de fatos acabou lançando seu Exército no colo do crime organizado. Entre 2000 e 2005, os EUA enviaram US$ 4,5 bilhões em ajuda ao governo colombiano, que passou a pressionar as duas guerrilhas: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN). Ambas foram obrigadas a mover suas operações para a selva venezuelana.

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No mesmo momento, o golpe frustrado contra ele, em abril de 2002, fez Chávez radicalizar sua revolução. Temendo uma invasão estrangeira, ele enviou a Guarda Nacional para a fronteira com a Colômbia, que já estava infestada de narcotraficantes, expondo os militares a um contato fatal.

De uma tacada só, Chávez fragilizou a economia, livrando-se de burocratas competentes, franqueando a petrolífera PDVSA a seus aliados mais próximos, e fez da Venezuela o modelo mais próximo de um narcoestado, com o Exército e vários funcionários chavistas do alto escalão envolvidos com o tráfico de cocaína.

A aliança entre radicais de esquerda e militares virou então um tripé. Em 2010, nas páginas de seu indiciamento, o narcotraficante venezuelano Walid Makled confessou que teve em sua folha de pagamento 40 generais e altos funcionários do governo venezuelano. Makled apresentou documentos assinados por generais e ministros que aceitaram pagamentos.

Em 2015, o crime bateu na porta do ditador, Nicolás Maduro, que havia substituído Chávez três anos antes. Dois sobrinhos da primeira-dama, Cilia Flores, foram presos com 800 quilos de cocaína no Haiti e condenados a 18 anos de cadeia nos EUA. Em 2017, o ex-vice-presidente Tareck el-Aissami foi listado como narcotraficante pelo Departamento do Tesouro americano.

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