PUBLICIDADE

Como Atlanta se tornou uma Meca Negra e contribuiu para mudança demográfica no sul dos EUA

A cidade de Atlanta se tornou um oásis para a população afro-americana, que encontrou oportunidades na capital da Geórgia; a migração da comunidade negra ajudou Joe Biden a vencer no Estado em 2020, a primeira vitória de um democrata desde 1992

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Gateno
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL A ATLANTA -Adebayo Abe cresceu em Nova York ouvindo histórias sobre Atlanta. O nova-iorquino se entusiasmou com os relatos que descreviam a capital da Geórgia como um lugar ideal para uma classe intelectual e empresarial composta de afro-americanos que impulsionaram a cidade. Abe se identificou com a Black Mecca (Meca Negra), apelido dado a Atlanta por conta do sucesso conseguido pela comunidade afro-americana, que fez com que negros de todas as partes do país se mudassem para a cidade.

PUBLICIDADE

A migração de afro-americanos para a capital da Geórgia é uma das razões que explicam a vitória do democrata Joe Biden no Estado nas eleições presidenciais de 2020, a primeira de um democrata na Geórgia desde 1992. Este movimento reflete uma mudança demográfica no sul dos Estados Unidos, que fez com que a Geórgia se tornasse o segundo Estado com mais afro-americanos nos EUA, contabilizando 33% da população total, segundo o censo americano.

“Atlanta é uma cidade interessante devido a forma como o empreendedorismo negro realmente fez a cidade crescer. Entre os afro-americanos, Atlanta é vista como um dos lugares que podemos chamar de casa. A cidade é de fato uma Meca negra”, ressaltou Abe, de 28 anos, que se mudou para estudar na Morehouse College, faculdade historicamente frequentada por afro-americanos e que teve Martin Luther King como seu aluno mais famoso. Após se formar, Abe continuou morando em Atlanta, como funcionário de Morehouse.

Estátua do reverendo Martin Luther King é o cartão de visitas da Morehouse College, universidade historicamente frequentada por homens negros em Atlanta Foto: Daniel Gateno/Estadão

Sucesso

Para os muçulmanos, Meca é a cidade mais sagrada, o local onde nasceu o profeta Maomé. Todos os adeptos da religião devem fazer uma peregrinação ao local sagrado pelo menos uma vez na vida. Segundo muitos afro-americanos, Atlanta tem uma conotação similar.

Berço dos movimentos pelos direitos civis, a cidade abriga uma grande quantidade de universidades historicamente negras e se tornou um centro econômico para a comunidade negra.

Adebayo Abe ouviu histórias sobre como Atlanta era uma Meca para os afro-americanos e por isso se mudou para a capital da Geórgia  Foto: Daniel Gateno/Estadão

“Existe uma grande classe média composta de afro-americanos em Atlanta se compararmos com outras cidades americanas. Muitos estão no mercado financeiro e isso gera oportunidades para a comunidade negra”, avalia Miles O, que não quis fornecer seu sobrenome. Miles respondeu perguntas da reportagem do Estadão ao lado dos amigos William X e Tracy H, que também não quiseram dar o sobrenome.

O grupo de jovens afro-americanos, que declarou que vai votar no presidente Joe Biden nas eleições de novembro, estava aproveitando a sexta-feira à noite em um bar chamado Manuel´s Tavern, tradicional reduto do Partido Democrata na cidade de Atlanta. “A cidade é bem mais integrada do que Nova York e Boston. Se olharmos para restaurantes e reuniões de negócios, é possível encontrar uma mistura bem maior aqui do que em outros lugares”, completa Miles.

Publicidade

Nas ruas da cidade, o histórico sucesso da comunidade afro-americana está marcado no distrito de Sweet Auburn, apelidado de “o distrito negro mais rico do mundo” em 1956 pela revista americana Fortune, especializada em negócios. O bairro conta com igrejas, empresas, jornais e baladas cujos donos são afro-americanos.

Cartaz de apoio a candidatura de Barack Obama, o primeiro afro-americano a ser presidente dos Estados Unidos, no Manuel´s Tavern, bar que é reduto do Partido Democrata em Atlanta  Foto: Daniel Gateno/Estadão

De acordo com um relatório recente, a cidade tem a maior taxa de empresas pertencentes a negros do país. Segundo a plataforma Lending Tree, a capital da Geórgia abriga mais de 10 mil empresas pertencentes a afro-americanos, cerca de 9% das companhias da cidade. Nacionalmente, o número fica abaixo de 3%.

As pessoas em Atlanta aceitam mais as diferenças e oferecem mais oportunidades aos afro-americanos, opina Tracy H. “Em questões relacionadas a empregos, em Atlanta não é preciso se provar tanto como seria em outras cidades para os negros. Há mais de 100 anos a cidade é conhecida como um centro para a comunidade negra”, explica. “Nenhuma cidade dos EUA é fácil para os afro-americanos, mas Atlanta tem uma áurea diferente”.

Esta “áurea diferente” fez com que Miles O mudasse de Nova York para Atlanta. “Eu me mudei por conta destas oportunidades para afro-americanos. Existe um fascínio em se mudar para Atlanta”. Segundo o censo americano, 47,6% da população de Atlanta se identifica como afro-americana.

Histórico

PUBLICIDADE

Segundo Maurice J. Hobson, professor de estudos afro-americanos da Geórgia State University e autor do livro A lenda da Meca Negra: política e classe na construção da Atlanta moderna, a criação do conceito de Meca Negra começou ainda nos tempos da guerra civil americana, a chamada de Guerra de Secessão, em 1861, por diferenças entre o norte abolicionista e o sul escravista.

Assim como todos os Estados do sul, a Geórgia fazia parte dos Estados Confederados, que entraram em guerra contra os Estados que eram leais ao governo federal, chamados de unionistas.

Em 1864, o general William Sherman iniciou uma marcha para liberar a cidade de Atlanta dos confederados. Muitos afro-americanos recém-libertos da escravidão seguiram o general Sherman até a capital da Geórgia e se estabeleceram por lá.

Publicidade

De acordo com Hobson, missionários brancos que saíram do norte dos EUA ajudaram os afro-americanos de Atlanta, contribuindo para a solidificação da Meca Negra. O primeiro pilar foi o educativo, com a criação de universidades historicamente negras entre 1865 e 1885, entre elas a Morehouse College, que foi visitada pela reportagem do Estadão.

Apesar dos ganhos da comunidade negra no Estado, a Geórgia era um dos Estados que aplicava as leis discriminatórias de Jim Crow, que determinavam a segregação racial no sul dos EUA, e vigoraram de 1877 a 1964. O acesso a educação só foi possível devido a um acordo entre lideranças negras e brancas na cidade para que o status quo discriminatório na cidade continuasse

Afro-americano bebe água em um local sinalizado no sul dos Estados Unidos, em meio as leis discriminatórias de Jim Crow  Foto: Russell Lee/Livraria do Congresso dos EUA

Nos anos 70, o conceito da Meca Negra ganhou tração, principalmente por conta da eleição do democrata Maynard Jackson, o primeiro prefeito afro-americano de Atlanta. “Quando Jackson entrou na prefeitura de Atlanta, 0,3% dos contratos e licitações da cidade eram repassados a empresas afro-americanos. O prefeito se comprometeu a mudar essa realidade e 35% dos contratos da cidade foram disponibilizados para minorias”, explica o professor da Georgia State University.

Este novo momento da comunidade negra na cidade fez com que muitos afro-americanos de Atlanta ficassem milionários. “Todos os empreendedores negros de Chicago, Detroit, Nova York e Los Angeles se mudaram para a capital da Geórgia”, aponta Hobson. O prefeito também fomentou a criação da Secretaria de Cultura de Atlanta, que contribuiu para a solidificação da cidade como um polo importante para o hip hop.

O especialista destaca que o sucessor de Jackson, o também afro-americano Andrew Young, impulsionou ainda mais a cidade, promovendo-a como uma Meca Negra internacional e atraindo investimento de empresas do mundo todo. A visão positiva de Atlanta globalmente fez com que a cidade fosse escolhida para ser sede das Olimpíadas de 1996.

Maynard Jackson foi o primeiro afro-americano a ser prefeito de Atlanta, ele impulsionou o conceito da Meca Negra  Foto: Atlanta History Center/reprodução

Mudança demográfica

O conceito da Meca Negra solidificou uma mudança demográfica no sul dos Estados Unidos. A mudança de pessoas como Miles O e Adebayo Abe para Atlanta, jovens afro-americanos com diploma universitário, faz parte de uma migração que está criando um novo sul, após um grande movimento migratório de saída de afro-americanos da região no século passado.

Entre 1910 e 1970, cerca de seis milhões de afro-americanos se mudaram do sul dos Estados Unidos para escapar das leis discriminatórias de Jim Crow. Este movimento é chamado por historiadores de “A Grande Migração” e é considerado um dos maiores movimentos migratórios dos Estados Unidos.

Publicidade

Em resposta, o retorno de afro-americanos para o sul tem o nome de “Nova Grande Migração” e contribuiu para a vitória do democrata Joe Biden na Geórgia em 2020 e do senador Raphael Warnock, o primeiro afro-americano a ocupar o cargo pela Geórgia. A população afro-americana é historicamente ligada ao Partido Democrata desde que a Lei dos Direitos Civis foi sancionada em 1964 pelo presidente Lyndon Johnson.

O senador da Geórgia Raphael Warnock participa de um comício de campanha do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em Atlanta, Geórgia  Foto: Jessica Mcgowan/EFE

Desde 1990, a população de afro-americanos na Geórgia saltou de 1,8 milhão para 3,3 milhões, segundo o Censo americano de 2023, representando 33,1% da população total do Estado. De acordo com um estudo publicado por William H. Frey, demógrafo do Instituto Brookings, o movimento começou nos anos 70, mas ganhou tração em 1990.

“O movimento é em grande parte impulsionado por negros americanos mais jovens, com formação universitária, de locais de origem do norte e do oeste. Eles contribuíram para o crescimento do ‘Novo Sul’”. O demógrafo avalia que um ambiente favorável aos negócios e uma boa infraestrutura tornou o sul atrativo para os afro-americanos.

Política

A mudança demográfica que tende a favorecer os democratas gera incômodo nos republicanos, que querem manter a Geórgia como um dos Estados pertencentes ao bastião sulista conservador. O advogado Jason Shepherd, ex-líder republicano do condado de Cobb County, região que fica no subúrbio de Atlanta, sentiu isso na pele.

Antes um condado republicano, Cobb County virou democrata em 2016, quando a então candidata Hillary Clinton venceu Donald Trump, que apesar do resultado, venceu no Estado da Geórgia. Em 2020, Biden venceu com 56% dos votos na região.

“Esta é a área de maior desenvolvimento de negócios de minorias em todo o país”, aponta Shepherd. “Nós vemos muitos afro-americanos mudando para a Geórgia porque o Estado é bom para negócios, mas eles não votam nos republicanos que criaram estas oportunidades pró-negócio, eles esquecem que saíram de outros Estados em que os democratas aumentaram tanto os impostos que atrapalharam os empresários”, avalia o republicano.

O advogado republicano Jason Shepherd posa para foto em Marietta, a principal cidade do condado de Cobb County, que fica no subúrbio de Atlanta Foto: Daniel Gateno/Estadão

Mesmo com as recentes vitórias democratas no Estado, o Partido Republicano conseguiu manter o governo da Geórgia, com a reeleição de Brian Kemp em 2022. O Estado foi eleito em 2023 pelo 10° ano consecutivo como o melhor Estado americano para fazer negócios pela revista especializada Area Development.

Publicidade

De acordo com o governo da Geórgia, o bom ambiente para os negócios foi criado devido a impostos menores para corporações, incentivos fiscais e infraestrutura. A região metropolitana de Atlanta abriga empresas como Coca-Cola, a varejista americana The Home Depot e a companhia aérea Delta Air Lines.

As grandes oportunidades da Geórgia foram expandidas pelos republicanos, destaca Shepherd. O republicano aponta que a taxa de desemprego da Geórgia, que foi de 3,1% na comparação anual em janeiro, é uma das menores dos EUA. “O Partido Republicano na Geórgia está focado em garantir que todos os cidadãos tenham um emprego”.

A análise é contestada pelo professor de estudos afro-americanos da Georgia State University. “As pessoas não deveriam votar nos republicanos porque eles são pró-mercado e os democratas não.”, aponta o especialista ao Estadão.

Hobson destaca que existem outros temas que fazem com que afro-americanos votem majoritariamente nos democratas como saúde pública e justiça social. “O Estado da Geórgia está muito bem em relação aos negócios e isso é bom para todos, mas existem outro temas que são importantes. Ninguém precisa se mudar para a Geórgia para votar nos republicanos porque eles são pró-mercado”, pondera o professor da Georgia State University. “Esta visão dos republicanos sinaliza uma perspectiva fora da realidade sobre as políticas de republicanos e de democratas e ressalta os problemas do nosso sistema partidário”.

Realidade

O especialista, que escreveu um livro sobre o conceito da Meca Negra, aponta que se trata de uma jogada de marketing. “Não são todos os afro-americanos de Atlanta que tem estas oportunidades, é uma elite de negros que tem acesso”, explica.

“Muitos afro-americanos se mudaram para Atlanta por conta da Meca Negra, mas muitos também tiveram que sair. Esta cidade é um lugar único para os negros, mas é uma estratégia de Marketing”, aponta Hobson.

De acordo com dados oficiais, Atlanta tem uma taxa de pobreza de 17,7%. Além disso, existe uma grande disparidade entre negros e brancos na cidade. Segundo a Atlanta Wealth Building Initiative, entidade que pesquisa a desigualdade em Atlanta, as famílias brancas de Atlanta tem uma renda familiar média três vezes maior do que a das famílias afro-americanas. A renda familiar média de uma família branca é de US$ 83.722, em comparação com US$ 28.105 para uma família negra.

Publicidade

A área metropolitana de Atlanta também tem a terceira maior taxa de transmissão de HIV nos Estados Unidos, atrás apenas de Miami e Memphis.

“Eu amo esta cidade, mas eu acredito que não podemos iludir os afro-americanos que se mudam para Atlanta achando que esta é uma cidade de grandes oportunidades para todos. Isso não é verdade”, completa Hobson.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.