ENVIADO ESPECIAL A WASHINGTON — O retorno de Donald Trump à Casa Branca consolida uma tendência de transformação na política dos Estados Unidos que começou com o fim da Guerra Fria e cria uma nova lógica partidária. A América que saiu das urnas nesta semana indica que o Partido Republicano, remodelado por Trump à sua imagem e semelhança, sedimentou a conquista do eleitorado mais pobre e sem formação universitária. Com isso, após uma hegemonia democrata de quase 90 anos, a direita é agora a voz da classe trabalhadora.
A razão para essa mudança, segundo analistas e eleitores desiludidos com o Partido Democrata, é uma combinação de ansiedade econômica com a construção de uma identidade social conservadora entre os mais pobres. Essa mistura criou um caldo de cultura onde a identidade e o sentido de pertencimento a um grupo político, impulsionados pelo apelo carismático de seu líder, pesam mais que as políticas públicas oferecidas por cada partido.
Para Entender a Vitória de Trump
A vitória de Trump foi tão incontestável que o ex-presidente teve uma votação melhor que em 2020 não apenas nos sete Estados-pêndulo que decidiram a eleição, como também em bastiões democratas, como Nova York, Illinois e a Califórnia. Ele ainda aumentou seus porcentuais em Estados já fortemente republicanos, como o Texas e a Flórida.
Como se isso não bastasse, em 48 dos 50 Estados americanos houve uma migração de votos à direita na comparação com a eleição anterior. As exceções foram Utah e o Estado de Washington. No voto popular, ele tem 50,9% dos votos, contra 47,6% de Kamala Harris. Esse cenário indica um descontentamento com o Partido Democrata em diversos cortes demográficos.
O “herói” dos americanos mais pobres
Em 2016, 41% os americanos que ganhavam menos de US$ 50 mil por ano votaram em Trump. Em 2020 esse número subiu para 44%, e na eleição de terça, para 50%. Os números democratas variaram nessa faixa de renda. Hillary teve 53% dos votos, Biden, 55% e Kamala, 47%.
Entre os mais ricos, que ganham acima de US$ 100 mil por ano, ocorreu o movimento praticamente inverso. Os democratas saíram de 47% com Hillary em 2016, recuaram para 42% com Biden em 2020, e agora tiveram 51% com Kamala Harris.
O senador Bernie Sanders, derrotado nas primárias de 2016 e 2020, e estrela da ala mais à esquerda do Partido Democrata acusou na quarta-feira, 6, a elite da legenda de se afastar da classe trabalhadora. “Não deveria ser nenhuma surpresa que um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora os abandonou. Enquanto a liderança do partido defende que as coisas continuem como estão, as pessoas queriam mudança.”, disse Sanders.
“Hoje, apesar da explosão de produtividade e do avanço tecnológico, a vida dos americanos mais jovens está num nível pior que o de seus pais. E muitos acreditam que isso vai piorar com a robótica e a inteligência artificial”, acrescentou.
Latinos e negros com Trump
Durante a campanha, já havia sinais de que o respaldo latino e afro-americano aos democratas, sobretudo entre os homens, já não era o mesmo. Nas últimas semanas, a campanha de Kamala destacou o casal Obama, muito popular na base do partido, para convencer os homens negros a comparecerem nas urnas e apoiar a vice-presidente. Além disso, pesquisas de opinião, tanto a nível dos Estados-pêndulo quanto nacionalmente, também identificaram uma perda de apoio entre os latinos.
Khalil Thompson é diretor da ONG Win With Black Men, ligada aos democratas, e trabalhou na eleição para mobilizar eleitores para o partido em Detroit, no Estado de Michigan. Ele diz que a ansiedade econômica do pós-pandemia bateu forte nesse segmento demográfico. “No fim do dia, todo mundo quer as mesmas coisas: um emprego legal, uma casa, um carro, mandar os filhos para a faculdade e, quem sabe, no fim de semana sobrar um dinheiro para algum divertimento.”
Mas não é o que está acontecendo nos EUA. Segundo uma pesquisa de boca de urna divulgada pelo Washington Post no dia 5, 68% dos eleitores acreditam que a economia está ruim. Isso deu combustível para Trump agregar mais gente ao seu projeto político.
Além de obter a maioria dos votos dos mais pobres, a ascensão de Trump entre os trabalhadores fica mais clara quando a escolaridade entra na equação. O presidente eleito saiu de 48% dos votos dos americanos sem diploma em 2016, para 50% em 2020 e 56% agora.
James Strasser mora em Erie, na Pensilvânia, e é um desses eleitores brancos sem formação universitária. Quando ele conversou com a reportagem do Estadão, antes da eleição, reclamava do aumento do custo de vida e do fato de ter que se desdobrar em dois trabalhos para pagar as contas: trocar anúncios de outdoors na cidade e dirigir carros por aplicativo. À época, ele estava inclinado a votar em Trump por se identificar com os valores que ele defende.
“Trump pode não ser perfeito, mas ele é um cara de atitude. Ele não pede desculpas por ser quem é e não tem medo de errar”, diz.
Quando os números dos votos obtidos por Trump são divididos por etnia e escolaridade, é possível observar ainda mais claramente a força do presidente eleito nas camadas mais humildes da população. Entre negros e latinos sem educação superior, o apoio de Trump saiu de 20% em 2016, para 26% em 2020 e agora para 34%. Já entre os brancos sem diploma, o patamar dele permaneceu estável: 66% em 2016, 67% em 2020 e 66% este ano.
Ou seja, este ano a mensagem de Trump teve um maior impacto entre negros e latinos, uma parcela da população mais humilde antes refratária ao seu discursos, o que contribuiu para que ele tivesse a maioria dos votos entre os mais pobres e a classe média.
Uma alteração sísmica na política americana
Essa força de Trump entre os mais pobres, no entanto, não é um ponto fora da curva. O movimento MAGA representa uma alteração no jogo de forças da política americana similar à ascensão de Donald Reag, n, nos anos 80 ou de Franklin Delano Roosevelt, no entreguerras.
A transformação do trumpismo na voz da América inculta coroa uma tendência de transformações profundas nas bases eleitorais de republicanos e democratas. E isso não é inédito na história. No século 19, os democratas eram o partido agrária e da escravidão e os republicanos, o partido urbano e da abolição. A partir dos anos 60, isso se inverteu, graças a dois movimentos: de um lado, John F. Kennedy e Lyndon Johnson abraçaram o movimento pelos direitos civis, e do outro, Richard Nixon capturou os eleitores brancos do Sul dos Estados Unidos.
Mas a mudança mais duradoura e mais transformadora das bases eleitorais partidárias nos Estados Unidos foi conduzida por Roosevelt, que criou a chamada “coalizão do New Deal”, com sua primeira eleição, em 1932.
O projeto político de Roosevelt joga o Partido Democrata para a esquerda do espectro político, graças ao modelo keynesiano adotado para reconstruir a economia após a Grande Depressão, que trouxe consigo o início da criação de um Estado de bem estar social nos Estados Unidos. Essa coalizão reunia principalmente operários sem formação universitária, intelectuais, minorias como negros, latinos e imigrantes e os democratas do Sul, ainda ligados ao legado da Guerra Civil e da segregação.
Durante o governo de Lyndon Johnson, entre 1964 e 1968, essa coalizão perde os votos dos brancos do Sul, mas aumenta sua participação entre os mais pobres, graças ao projeto da “Grande Sociedade”, que ampliou alguns programas sociais de FDR e criou outros, como o Medicare e o Medicaid.
A Revolução Conservadora de Nixon e Reagan, a partir dos anos 70, no entanto, atrai parte da classe média e os brancos do Sul dos EUA ao Partido Republicano, com o argumento de que o modelo de Bem Estar Social está em crise e vale mais a pena ter em mãos mais dinheiro graças aos cortes de impostos que vê-lo traduzido em serviços que, àquela época, estavam defasados.
Quando o comunismo colapsa, e os democratas retomam o poder com Bill Clinton, nos anos 90, eles migram ao centro e tomam emprestado parte do discurso de Reagan, de liberalização do comércio e desregulamentação da economia. Com a globalização e a automação tecnológica provocada pela terceira revolução industrial, a perda de empregos provocada pela desindustrialização em curso desde os anos 70 se agrava, e a população com baixa escolaridade se vê numa encruzilhada econômica, com seu padrão de vida caindo cada vez mais. A partir de então, esse grupo começa a se sentir desconfortável dentro da base de apoio democrata.
O colapso da base democrata
Segundo um estudo publicado em 2023 pelo professor de ciência política da Universidade da Pensilvânia William Marble, o voto dos brancos sem diploma universitário nos republicanos saltou de 45% em 1992 para 66% neste ano, um salto de 21 pontos.
Marble diz que é a partir de 2000 que os brancos sem diploma começam a abandonar o Partido Democrata numa velocidade maior. “Esse alinhamento, que não começou com Trump, mas que é o ápice de uma tendência de longo prazo, indica uma mudança substancial nas bases eleitorais partidárias nos Estados Unidos”, explica. “O Partido Democrata tradicionalmente era o partido da classe trabalhadora e os republicanos, o partido dos empresários e das classes mais ricas.”
Mas apenas a deterioração econômica não explica esse avanço. Segundo Marble, as questões morais, como a proibição ao aborto e ao casamento gay, e de política externa, sobretudo a política migratória, passaram a importar mais para quem tem menos escolaridade na hora do voto, o que reforçou a conexão deste grupo com os republicanos.
Ao mesmo tempo, entre a fatia mais escolarizada da sociedade americana, que já era liberal nos costumes, deu um giro à esquerda na questão da economia, identificando-se mais com os democratas.
“O fato de os eleitores brancos da classe trabalhadora não darem muita importância a questões não econômicas no passado prejudicou a capacidade dos republicanos de capitalizar seus votos com temas ligados aos costumes”, acrescenta. “Da mesma forma, as questões econômicas mais à direita que impediam que os democratas convertessem muitos brancos com formação universitária, apesar de seu alinhamento com as questões culturais. Ambas as condições mudaram nos últimos anos.”
A identidade cultural MAGA
O que os últimos dez anos de trumpismo adicionaram a esse fenômeno foi a transformação da filiação política em uma identidade cultural. Republicanos assistem aos mesmos programas de TV, ouvem os mesmos podcasts, e até mesmo estão procurando morar em bairros com vizinhos com a mesma ideologia. Por oposição, o mesmo ocorre com os democratas, transformando a América numa espécie de Fla x Flu.
Durante sua presidência, Joe Biden tentou reconectar o partido com a classe trabalhadora por meio de uma série de projetos aprovados para trazer de volta empregos a áreas industriais defasadas dos EUA. Segundo a Casa Branca, iniciativas do governo federal trouxeram US$ 910 bilhões em investimento industrial para o país, com a criação de 700 mil vagas.
O avanço é significativo, mas veio tarde e em volume inferior ao necessário. Em apenas um mês, a economia americana gera 1,4 milhão de empregos. Ou seja. O dobro do que Biden conseguiu em quatro anos para os operários com baixa escolaridade que antes apoiavam o seu partido
Economistas dizem que é quase impossível que os EUA retornem ao nível de emprego industrial do século 20 por conta da natureza da economia contemporânea, na qual as vagas de salário intermediário estão escassas e quem não tem um diploma universitário acaba relegado a empregos que pagam pouco.
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