Nas últimas quatro semanas, Elon Musk ofereceu um plano de paz para a Rússia e a Ucrânia que indignou as autoridades ucranianas. Postou um tweet sobre o acesso à internet iraniana que expôs os manifestantes contrários à teocracia a um esquema de phishing estatal. Também sugeriu em uma entrevista a um jornal que a China poderia ser “acalmada” se recebesse o controle parcial de Taiwan. O governo de Taipé exigiu que ele se retratasse da sua sugestão.
Nos últimos meses, Musk emergiu como um ator novo e caótico no palco da política global. Embora muitos executivos bilionários gostem de tuitar seu naco de palpite em assuntos mundiais, nenhum pode chegar perto da influência e capacidade de Musk de causar problemas. Ele às vezes se enfia em situações embaraçosas mesmo depois de ter sido aconselhado a não fazê-lo, e deixa um rastro de muita bagunça.
Embora a maior parte da riqueza de Musk venha de sua participação em sua empresa de carros elétricos, a Tesla, sua influência deriva em grande parte de sua empresa de foguetes, a Space X, que administra a rede de satélites Starlink. O Starlink pode transmitir serviços de internet para zonas de conflito e pontos geopolíticos, e se tornou uma ferramenta essencial para o Exército ucraniano.
A influência de Musk crescerá ainda mais se sua planejada compra do Twitter for finalizada na sexta-feira, como ele prometeu. Musk se autodenomina um “absolutista da liberdade de expressão”, e espera-se que mude a política de moderação do conteúdo do Twitter.
Seus críticos - e são muitos - temem que seja difícil separar as opiniões de Musk de seus interesses comerciais, especialmente quando se trata da Tesla, que depende cada vez mais da China.
“A tecnologia se tornou central para a geopolítica”, disse Karen Kornbluh, diretora do German Marshall Fund, um think tank geopolítico e ex-assessora do presidente Barack Obama. “É fascinante e confuso, e há Elon Musk no meio disso tudo.”
Em alguns casos, Musk foi uma benção. Quando ele forneceu acesso à Starlink na Ucrânia no início do ano e financiou pelo menos parte do hardware e do serviço, ele equipou civis e soldados com um meio de comunicação crucial durante o conflito em andamento com a Rússia.
Mas as mensagens que ele postou causaram problemas. Na semana passada, em um post no Twitter, ele disse que não poderia financiar “indefinidamente” o uso do Starlink pela Ucrânia.
No final do mês passado, Musk participou de um evento privado em Aspen chamado The Weekend. Organizado em parte pelo ex-presidente-executivo do Google e conselheiro do governo Eric Schmidt, o evento reuniu empresários e líderes políticos americanos, incluindo a presidente da Câmara Nancy Pelosi, o ex-vice-presidente Al Gore e o ex-presidente do Estado-Maior Conjunto Joseph Dunford.
Na hora do almoço, sob uma barraca em um campo de golfe, Musk subiu ao palco para uma conversa com o empresário bilionário David Rubenstein, segundo duas pessoas que compareceram ao evento.
No final da conversa, para surpresa de muitos presentes, Musk propôs um plano de paz para a guerra na Ucrânia que permitiria à Rússia anexar terras ucranianas, parecendo se alinhar com o Kremlin.
A ideia deixou muitos no evento indignados, de acordo com os participantes. No dia seguinte, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente Biden, fez uma videoconferência no evento e foi questionado sobre o “plano de paz” de Musk. Sullivan não quis comentar as declarações de Musk no evento, segundo um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional. No entanto, Musk revelou seu plano 10 dias depois no Twitter. O Kremlin apoiou publicamente a ideia. Musk não respondeu a vários pedidos de comentários.
O presidente Volodmir Zelenski da Ucrânia e seus principais assessores repreenderam com veemência o plano de Musk. Mas sua mudança de posição os colocou em um beco sem saída: os terminais Starlink se tornaram um meio de comunicação crucial para o Exército ucraniano.
Em meados de setembro, quando o exército avançou para territórios do sul anteriormente ocupados pela Rússia, perdeu o acesso ao Starlink em algumas áreas próximas às linhas de frente, disseram ao The New York Times quatro pessoas com conhecimento do assunto. Segundo eles, isso aconteceu porque Musk havia “cercado geograficamente” o serviço para que ele estivesse disponível apenas em certas áreas. Não ficou claro por que o sistema de satélite não estava funcionando em alguns lugares e funcionando bem em outros.
Mais sobre a guerra na Ucrânia
Musk discutiu o assunto com o governo ucraniano e o governo dos EUA em um esforço para determinar os locais onde o Exército teria acesso ao Starlink. Um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional disse que o conselho, o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros do Departamento do Tesouro e “funcionários do governo dos EUA conversaram com a Starlink e responderam a perguntas sobre a política dos EUA, como fazemos com todas as empresas”.
Este mês, Musk trouxe mais incerteza para a Ucrânia quando disse que não poderia continuar pagando pelo serviço da Starlink para o país, fazendo parecer que ele estava arcando com as despesas. Na prática, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Polônia pagaram à SpaceX pelo menos parte do custo do Starlink, segundo um documento revisado pelo The New York Times descrevendo os gastos.
“Ele precisa decidir se o Starlink é um serviço comercial que às vezes fornece tecnologia que salva vidas a seus clientes ou um serviço altamente dependente dos interesses geopolíticos de sua administração e, portanto, não confiável para clientes preocupados com a segurança nacional”, disse Dimitri Alperovitch, cofundador do Silverado Policy Accelerator, um think tank geopolítico em Washington.
Enquanto ele estava em Aspen apresentando seu plano de paz para a guerra na Ucrânia, Musk também entrou na onda de protestos que varreu o Irã.
À medida que as manifestações se espalhavam pelo país e as autoridades respondiam bloqueando o acesso à internet em várias áreas, ele parecia vir em socorro. “Ativando o Starlink”, disse ele em uma mensagem no Twitter depois que o governo dos EUA suspendeu algumas sanções que limitavam a capacidade das empresas de tecnologia americanas de operar no Irã para que pudessem ajudar os manifestantes.
A Starlink oferecia o potencial de contornar o bloqueio do governo a conexões de internet terrestres que haviam deixado os iranianos em muitas cidades offline.
Mas, como muitos iranianos logo descobriram, a promessa de Musk não se manteve. Não foi dito por Musk qualquer contexto sobre o que era necessário para colocar o Starlink em funcionamento, quanto tempo levaria e por que as restrições do governo iraniano tornariam quase impossível oferecer o serviço amplamente dentro do Irã.
Enquanto o Starlink permaneceu indisponível no Irã, hackers ligados ao governo iraniano iniciaram uma campanha de phishing, enviando em canais de mídia social ligados ao protestos links que alegavam fornecer acesso ao Starlink, de acordo com Amir Rashidi, especialista em direitos digitais do Irã. Em vez de fornecer acesso ao sistema de satélite de Musk, os links eram malwares que engoliam informações dos telefones dos usuários, expondo os manifestantes, disse Rashidi, que analisou pelo menos cinco versões do malware.
Uma pequena quantidade de acesso à Internet via Starlink está agora disponível no Irã com equipamentos contrabandeados através de sua fronteira, disse Rashidi. Isso cria preocupações adicionais de que as autoridades sejam capazes de identificar os dados transmitidos, porque os sinais de satélite podem ser rastreáveis a indivíduos em terra.
Rashidi, que fugiu do país em 2009, elogiou Musk por tentar ajudar, mas disse que suas táticas eram “muito irresponsáveis”.
“Era apenas alguém que queria aparecer e dizer: ‘Estou fazendo algo bom’, sem entender quais seriam as consequências”, disse ele.
Musk também caiu de paraquedas no ponto geopolítico mais delicado do mundo: Taiwan.
As tensões entre a China e Taiwan representam grandes riscos para o império empresarial de Musk. A Tesla opera uma fábrica em Xangai que produz até 50% dos carros novos da empresa. O governo de Pequim controla rigidamente como as empresas ocidentais operam no país, e observadores há muito se preocupam sobre como a dependência chinesa da Tesla pode afetar as posições políticas de Musk.
Este mês, Musk confirmou que enfrentou pressão de Pequim, quando disse ao Financial Times que o governo chinês havia deixado claro que desaprovava sua oferta de serviço de internet Starlink na Ucrânia. Pequim buscou garantias, disse ele, de que não ofereceria o serviço na China.
Então ele ofereceu uma maneira de “aliviar as tensões”: entregar algum controle de Taiwan para a China.
O comentário, que rompe fortemente com a política externa dos Estados Unidos e seus aliados, atraiu rápidas repreensões de políticos taiwaneses.
Em entrevista por telefone ao The New York Times, Chao Tien-Lin, membro do Partido Democrático Progressista e do comitê de defesa e relações exteriores da legislatura de Taiwan, pediu a Musk que retirasse sua declaração. “Se ele não o fizer, aconselharei sinceramente não apenas Taiwan, mas todos os consumidores em países democráticos liberais a boicotar a Tesla e seus produtos”, disse ele.
Alguns apontaram que, se um conflito militar irromper entre os dois países, os taiwaneses, como os ucranianos, podem pedir a Musk que forneça um meio de comunicação de emergência com internet via satélite. Mas, dada a posição pública de Musk sobre a situação e as ligações com a China, o Starlink pode não ser uma opção viável.
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