JERUSALÉM - A única maneira pela qual quase todas as pessoas na Faixa de Gaza podem escapar dos horrores da guerra entre Israel e o Hamas é saindo pelo Egito. E isso geralmente é uma tarefa complicada e cara, envolvendo o pagamento de milhares de dólares a uma empresa egípcia que pode colocar os palestinos em uma lista de viagem aprovada para cruzar a fronteira.
Enfrentando as altas taxas da empresa, bem como a fome generalizada em Gaza, onde não há fim à vista para a campanha militar de Israel, muitos palestinos recorreram a tentativas de arrecadar dinheiro com apelos desesperados em plataformas digitais como o GoFundMe.
Salim Ghayyda, um pediatra no norte da Escócia, postou um desses apelos em janeiro depois que sua irmã mandou uma mensagem de texto de Gaza dizendo que o pai deles tinha sofrido convulsões. Seu pai chegou a um hospital e sobreviveu, mas Ghayyda, 52, que deixou Gaza em 2003, disse que o episódio o convenceu de que ele tinha que retirar sua família a qualquer custo.
“Pensei que iria dormir uma noite e acordar com a notícia de que minha família se foi”, disse. “Me senti impotente e sem esperança, mas sabia que tinha que fazer algo.”
Nos últimos oito meses, cerca de 100 mil pessoas deixaram Gaza, disse Diab al-Louh, o embaixador palestino no Egito, em entrevista. Embora alguns tenham conseguido sair por meio de conexões com organizações ou governos estrangeiros, para muitos palestinos, sair de Gaza é possível apenas por meio da Hala, uma empresa que parece estar intimamente ligada ao regime egípcio.
Agora o futuro dessa via é incerto, especialmente depois que o Exército israelense lançou uma ofensiva contra o Hamas em Rafah e assumiu o controle da passagem de mesmo nome, levando a seu fechamento em maio. Nenhum palestino foi autorizado a passar por lá desde então, e não está claro quando a passagem será reaberta.
O New York Times conversou com dezenas de pessoas dentro e fora de Gaza que estavam tentando sair do território ou ajudar familiares ou amigos a fazê-lo. Todos, exceto um, falaram sob condição de anonimato com medo de retaliação das autoridades egípcias.
Existem outras formas de sair de Gaza, mas muitas delas também exigem grandes pagamentos. Uma rota é pagar intermediários não oficiais no território ou no Egito, que exigem de US$ 8.000 (cerca de R$ 44 mil) a US$ 15 mil (aproximadamente R$ 82 mil) por pessoa em troca de arranjar sua partida em poucos dias, de acordo com quatro palestinos que fizeram ou tentaram fazer os pagamentos.
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Palestinos ligados a organizações e governos internacionais, portadores de passaportes ou vistos estrangeiros, feridos e alguns estudantes matriculados em universidades fora de Gaza conseguiram sair sem pagar grandes taxas, mas a maioria dos mais de 2 milhões de pessoas no território não se enquadra nessas categorias.
A Hala cobra US$ 5.000 (cerca de R$ 27 mil) para coordenar as saídas da maioria das pessoas com 16 anos ou mais e US$ 2.500 (o equivalente a R$ 13,6 mil) para a maioria dos menores de idade, de acordo com sete pessoas que passaram por esse processo ou tentaram fazê-lo.
Os funcionários da Hala não responderam às perguntas enviadas por email. Mas Ibrahim al-Organi, cuja empresa, Organi Group, listou a Hala como uma de suas empresas e que se descreve como acionista, contestou que a empresa cobrava esses valores, insistindo que as crianças viajavam de graça e que os adultos pagavam US$ 2.500. Ele disse que esse valor era necessário porque o serviço que a Hala oferece é VIP e argumentou que os custos operacionais dispararam durante a guerra. Também negou que estivesse se beneficiando injustamente de suas conexões.
Três pessoas, um homem sentado, uma mulher de pé e uma criança no colo, cercados por poeira e destroços, parecem desolados após um evento destrutivo. Eles estão sobre o que parece ser um colchão sujo, com a mulher consolando a criança e o homem olhando para o lado, possivelmente em busca de ajuda ou observando a extensão dos danos.
A Hala faz as pessoas passarem por um complicado processo burocrático para registrar seus familiares. A empresa exige que um membro da família visite seus escritórios no Cairo e pague pelo serviço em notas de US$ 100 emitidas em ou após 2013, de acordo com Ghayyda e outras três pessoas com conhecimento do processo de pagamento da Hala.
Organi negou conhecimento da prática e disse que aqueles que pagaram em notas de US$ 100 foram enganados por corretores ilegais. Em fevereiro, quando Ghayyda viajou para a capital egípcia para registrar seus pais, irmã e sobrinho, ele levou seu filho de 23 anos com ele para evitar carregar mais de US$ 10 mil (R$ 54, 6 mil) sozinho. Naquela época, ele havia arrecadado cerca de US$ 25 mil (R$ 136, 6 mil). “Todo o processo foi bastante demorado, complexo e incerto”, conta.
Organi descreveu a Hala como uma empresa de turismo, “assim como qualquer empresa que exista em um aeroporto”, e disse que foi criada em 2017 para fornecer serviços VIP a viajantes palestinos que desejavam uma experiência aprimorada ao atravessar Rafah.
“Ajudo-os apenas quando querem entrar na sala VIP, tomar café da manhã, serem conduzidos ao Cairo em um belo BMW, fazer uma parada para descanso e depois seguir para o destino deles”, disse. “Nosso papel é fornecer o melhor serviço possível, é isso.”
Vários palestinos que usaram o serviço da Hala durante a guerra disseram que não lhes foi oferecido um serviço VIP, que foram conduzidos ao Cairo em uma van e que receberam apenas alimentação básica.
Quando questionado sobre as acusações contra o Egito citadas nesta reportagem, o regime egípcio encaminhou à reportagem comentários anteriores feitos por autoridades egípcias, incluindo o ministro das Relações Exteriores, Sameh Shoukry. O chanceler disse à Sky News em fevereiro que não aprovava a cobrança de US$ 5.000 pela Hala e disse que o Egito tomaria medidas para eliminar as taxas.
Em uma declaração feita em meados de maio, o GoFundMe disse que mais de US$ 150 milhões foram arrecadados nas cerca de 19 mil campanhas relacionadas à guerra em Gaza. Os contribuintes incluem amigos, parentes e suas redes sociais, mas também estranhos sem conexões diretas com aqueles que promovem as arrecadações de fundos.
Em abril, Ghayyda, o pediatra, viajou ao Egito pela segunda vez, desta vez para se reunir com seus pais, irmã e sobrinho, que acabavam de sair de Gaza a tempo do Eid al-Fitr, celebração muçulmana.
Ele estava feliz, mas ainda sentia um enorme fardo —28 parentes próximos permaneciam presos em Rafah e na Cidade de Gaza, e seus pais precisariam começar uma nova vida no Cairo, pelo menos até o fim da guerra. (Em maio, ele conseguiu a libertação de mais quatro membros da família.)
“É agridoce”, ele disse. “Significou o mundo para mim ver meus pais, irmã e sobrinho. Mas ainda estou consumido pelo medo constante sobre minha família que ainda está em Gaza. Não conseguirei sentir que posso respirar normalmente novamente até saber que estão seguros.”
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