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Como evitar um desastre nuclear na Ucrânia; leia a análise

Com uma guerra em curso, não dá para saber quem está atirando contra a maior usina da Europa, mas é preciso que ucranianos e russos autorizem a visita de especialistas da Agência Internacional de Energia Atômica à Zaporizhzhia

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Por Serge Schmemann*

Houve relatos no sábado, 27, de que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) tem uma equipe de especialistas pronta para visitar a usina nuclear de Zaporizhzhia, na Ucrânia, dentro de dias. E o momento é propício: projéteis de artilharia estão pousando com uma regularidade assustadora dentro e ao redor da instalação, a maior central atômica da Europa.

No mais recente susto, um bombardeio quinta-feira, 25, danificou linhas de energia externas, ameaçando o fornecimento de eletricidade essencial para o local. Técnicos ucranianos conseguiram reconectar a usina à rede elétrica nacional na sexta-feira, 26, evitando o desastre. É difícil promover a sanidade em uma guerra na qual a Rússia está travando uma campanha de terra arrasada para colocar a Ucrânia de joelhos, e a Ucrânia está lutando por sua sobrevivência.

Vista da usina nuclear Zaporizhzhia; receio que um novo Chernobyl põe líderes mundiais em alerta Foto: Alexander Ermochenko/ REUTERS

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No entanto, o recente acordo para permitir o embarque de grãos da Ucrânia demonstrou que a pressão internacional sobre a Rússia para impedir que o conflito se espalhe além dos campos de batalha pode funcionar. E com Chernobyl como uma memória traumática compartilhada, russos e ucranianos conhecem melhor do que a maioria das nações o horror de uma catástrofe nuclear.

Eu era o chefe da sucursal do Times em Moscou quando Chernobyl entrou em erupção em abril de 1986, e me lembro bem do medo sinistro de uma ameaça invisível e mortal permeando o ar puro da primavera. Trinta e seis anos depois, cerca de mil milhas quadradas (em torno de 2.500 Km²) no entorno da usina comprometida ainda estão isoladas como “Zona de Alienação”. Sem dúvida, essas memórias estão por trás dos relatos de que a Ucrânia está preparando planos de evacuação para cerca de 400 mil pessoas que vivem perto da usina de Zaporizhzhia.

A central é um modelo mais moderno e muito mais seguro do que Chernobyl, teoricamente capaz de resistir a danos muito maiores. Mas o potencial para um grande desastre quando projéteis letais pousarem entre os reatores nucleares, torres de resfriamento, salas de máquinas e locais de armazenamento de resíduos radioativos é real e presente.

Tomada pelos russos pouco depois de terem invadido a Ucrânia há seis meses, a extensa usina no Rio Dnipro está agora na linha da frente da guerra. Uma reportagem do Times na terça-feira, 23, detalhou o que isso significa: projéteis de artilharia explodindo e munição traçante atravessando o complexo, enquanto uma equipe esquelética de técnicos ucranianos mantém a usina sob as armas de cerca de 500 soldados russos.

O Times informou que durante a invasão russa inicial, uma bala de grande calibre perfurou uma parede externa de um dos seis reatores, enquanto um projétil de artilharia atingiu um transformador elétrico cheio de óleo de resfriamento inflamável. A perda de energia elétrica pode ter levado a usina a um colapso. Felizmente, não houve incêndio.

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O diretor-geral da AIEA, Rafael Mariano Grossi, delineou recentemente sete condições indispensáveis essenciais para a segurança e proteção nuclear, que incluem a integridade física da usina, fornecimento de energia externo, sistemas de refrigeração e preparação para emergências. “Todos esses pilares foram comprometidos, se não totalmente violados, em um ponto ou outro durante esta crise”, alertou.

A usina – e todas as outras centrais nucleares ucranianas, e todas em todo o mundo – deveriam ser consideradas zonas desmilitarizadas. Isso é essencialmente o que as autoridades da ONU pediram. Mas essa é uma tarefa difícil em uma guerra de atrito e sobrevivência. Uma meta mais imediata, urgente e alcançável é que os especialistas reunidos pela AIEA entrem na usina.

Carros destruídos em ataques russos em Irpin, subúrbio de Kiev Foto: Mauricio Lima/The New York Times

A agência, as Nações Unidas e os líderes ocidentais organizaram exatamente essa missão. Ucrânia e Rússia afirmam que são a favor. Mas fazer com que os inimigos mortais recuem não foi fácil. Em vez disso, o bombardeio se intensificou este mês, juntamente com uma guerra de palavras.

Os ucranianos, acompanhados pelo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusaram os russos de usar a usina como um “escudo nuclear” para tropas, armas e munições, e de disparar dentro e no entorno dela. Os russos acusaram os ucranianos de atirar em uma usina que eles dizem que os soldados russos estão protegendo.

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Em um ato de ousadia não surpreendente, a Rússia convocou uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas nesta semana para transmitir sua versão, o que levou o embaixador ucraniano a lamentar desperdiçar “mais de uma hora para ouvir uma série de frases fictícias”.

É quase impossível determinar quem está atirando. Mas o fato é que não haveria ameaça de uma catástrofe nuclear se a Rússia não tivesse invadido a Ucrânia, e o perigo terminaria prontamente se os russos saíssem.

Após semanas de desencontros entre a Rússia e a Ucrânia sobre como a AIEA entraria na usina, cientistas estão prontos para verificar seu funcionamento e propor como torná-lo o mais seguro possível. A Ucrânia pediu que especialistas internacionais militares e nucleares fiquem permanentemente no local para garantir que a usina e seus arredores imediatos estejam seguros e livres de armas pesadas. Estas são preocupações legítimas e exigências justas.

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A Rússia, no entanto, rejeitou a criação de uma zona desmilitarizada em torno da usina. Mas essas são diferenças que podem ser resolvidas, por meio de negociações tranquilas, se ambos os lados concordarem com o imperativo maior de evitar um desastre nuclear, que será tão desastroso para a Rússia quanto para a Ucrânia ou qualquer outro território que a radiação possa atingir. | TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

* Schmemann é membro do conselho editorial, foi chefe da sucursal do The New York Times em Moscou nas décadas de 1980 e 1990 e é autor de Echoes of a Native Land: Two Centuries of a Russian Village

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