Quando a Rússia decidiu invadir a Ucrânia, as informações do FSB, a agência russa que sucedeu a KGB e responsável pela espionagem interna e das ex-repúblicas soviéticas, endossaram a avaliação do Kremlin de que seria uma guerra rápida. Mas ao contrário do que achavam, o governo de Kiev não foi derrubado em poucos dias e a sociedade ucraniana ofereceu resistência. O erro, crucial para o custo do conflito, colocou os serviços de espionagem russa em xeque. Hoje, depois de uma sequência de falhas, analistas avaliam que as agências de espionagem russas, sobretudo a ‘nova KGB’, estavam mal preparadas para agir no conflito.
Desde o início da guerra, incidentes que abalam cada vez mais a credibilidade dos serviços de informação russos se multiplicam. A explosão em outubro da ponte Kerch, que liga a Rússia à Crimeia, fez o próprio presidente russo Vladimir Putin ordenar que o FSB reforçasse as medidas de segurança. Antes, a morte de Daria Dugina, filha de Alexander Dugin, filósofo e guru de Putin, também foi vista como uma falha da espionagem interna do Kremlin. Daria morreu após o carro em que estava explodir, em um episódio descrito pelos russos como um atentado terrorista.
Mais recentemente, o cancelamento nesta terça-feira, 9, das celebrações do Dia da Vitória, o feriado mais importante da Rússia, que relembra o triunfo da União Soviética sobre a Alemanha nazista na 2.ª Guerra, em cidades próximas à fronteira ucraniana e as explosões de drones no Kremlin na semana passada – ainda que com a autoria e circunstâncias desconhecidas – aprofundam as dúvidas sobre a real capacidade atual do FSB em fornecer informações confiáveis para garantir a segurança da Rússia.
O custo dessas dúvidas é alto para Putin. Ex-espião da KGB e ex-diretor do FSB, o presidente russo reestruturou o programa de espionagem bem-sucedido da União Soviética ao longo dos últimos 13 anos. Seus espiões, divididos em três agências, acumulam acusações de roubo e manipulação de informações e assassinatos e possuem a reputação de estarem entre os melhores do mundo. Mas internamente o serviço tem falhado, e isso tem sido cada vez mais exposto com a guerra na Ucrânia.
Além do FSB, a Rússia possui o SVR (Serviço de Inteligência Estrangeiro) e o GRU, o braço militar da espionagem. Esses dois últimos são responsáveis pela espionagem de outros países, enquanto o FSB atua internamente e nas ex-repúblicas soviéticas, sendo a principal agência para proteger segredos russos e obter informações da Ucrânia.
Operações recentes em países europeus e nos Estados Unidos desmantelam redes de espionagem russa que operam nas embaixadas, feitas geralmente pelo SVR, e prendem cada vez mais espiões ilegais, que se disfarçam de cidadãos comuns para obter informações a serviço do GRU. Apesar das prisões e expulsões de diplomatas, ainda é desconhecido o quanto os serviços de espionagem no exterior são afetados, devido à expertise da Rússia na área.
Espionagem russa
“A Rússia tem espiões muito inteligentes e fomos surpreendidos diversas vezes pela habilidade deles em algumas missões”, declarou ao Estadão o ex-assessor especial do governo Bill Clinton para assuntos da Rússia e membro do centro de estudos americano Rand Corporation, William Courtney. O especialista considera a espionagem russa atual ainda mais perigosa que na época da União Soviética.
A atuação desses espiões, especialmente do GRU, está exposta na lista de acusações acumuladas nos últimos anos, como a interferência nas eleições dos Estados Unidos em 2016, uma tentativa de golpe em Montenegro no mesmo ano, ataques cibernéticos contra a Agência Mundial Antidoping (Wada) e a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) e tentativa de assassinato do agente duplo Serguei Skripal no Reino Unido em 2018.
Quando se trata do FSB, no entanto, estão mais evidentes os fracassos. Além dos episódios citados que causaram derrotas visíveis e simbólicas para a Rússia na guerra, o FSB também falhou ao não conseguir impedir que os EUA obtivessem informações internas sobre os planos de guerra e os fornecessem à Ucrânia. As informações foram cruciais para a Ucrânia conseguir se manter na guerra nos últimos 15 meses, conforme mostram os documentos do Pentágono vazados em abril.
Segundo um relatório do Royal United Services Institute (Rusi), um centro de estudos britânico, a Rússia aumentou o número de agentes em solo ucraniano a partir de julho de 2021, conseguiu obter informações sobre autoridades da Ucrânia e manipular populações em áreas ocupadas, mas falhou em avaliar a resposta unificada do Ocidente à guerra. Os próprios preparativos do FSB para o conflito estavam visíveis e ajudaram a convencer autoridades americanas e britânicas que o acúmulo militar russo na fronteira não era um blefe.
Os reveses sofridos pelo FSB podem ser explicados por dois motivos: o escrutínio internacional sobre os três serviços de inteligência russos após a tentativa de assassinato de Serguei Skripal em 2018 e divergências internas do órgão e outras áreas do governo.
Uma reportagem da revista The Economist publicada em outubro do ano passado diz que aliados ocidentais passaram a compartilhar mais informações entre si sobre a espionagem russa após a tentativa de envenenamento de Skripal. Na mesma matéria, um ex-oficial de contrainteligência do FSB descreve a agência como um “Game Of Thrones”. “Você tem clãs diferentes dentro (da agência) com interesses políticos e financeiros diferentes”, afirmou.
No fim de abril, o ex-vice-diretor de operações da CIA na Rússia, John Spier, disse ao jornal The Guardian acreditar que as derrotas sofridas pela espionagem russa, incluindo a detecção de espiões disfarçados, se deve a alguém dentro das agências de espionagem que repassa informações para os EUA ou outro serviço de inteligência ocidental. “É quase impossível para os serviços de contrainteligência descobrir ilegais”, declarou, evidenciando o problema que divisões internas podem causar. “É quase sempre uma fonte humana”, disse Sipher.
Mas enquanto o escrutínio internacional continua, com diversas ex-repúblicas soviéticas identificando agentes russos infiltrados, a Rússia procura métodos alternativos de espionagem, segundo um relatório do serviço de inteligência da Finlândia divulgado no ano passado. Entre eles, estão a ciberespionagem e o recrutamento de estrangeiros para servirem como espiões para o Kremlin.
Segundo o historiador e professor da USP, Angelo Segrillo, especialista em Rússia, o país também acumula expertise nos dois métodos desde a União Soviética. “A Rússia tem uma grande tradição de hackers, sempre foram muito bons nisso, e o recrutamento de estrangeiros para servirem a KGB na época da Guerra Fria também sempre foi reconhecido. Isso faz com que o país ainda possua uma das maiores redes de espionagem do mundo, apesar das derrotas recentes”, disse.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.