Não há diferenças perceptíveis entre a política externa de Joe Biden e os planos de Kamala Harris. Uma eventual vitória democrata aumentaria as chances de conflito global desencadeado pela provável invasão de Taiwan pela China e reação dos Estados Unidos. A guerra entre Ucrânia e Rússia continuaria. A janela para um acordo nuclear com o Irã se manteria aberta. A pressão sobre Binyamin Netanyahu cresceria. Os compromissos americanos de redução das emissões de gases do efeito estufa e, portanto, de outros grandes emissores, permaneceriam de pé.
Apesar de todo o barulho que Donald Trump faz com suas tarifas contra produtos chineses, outras medidas e posturas adotadas por Biden representam ameaças muito mais efetivas aos objetivos estratégicos da China. O Congresso americano aprovou em julho de 2022 e Biden sancionou no mês seguinte a lei proposta pelo governo que incentiva a produção de semicondutores nos Estados Unidos e bloqueia o acesso da China aos chips mais sofisticados.
O governo Biden pressionou pela adesão do Japão, Holanda e Coreia do Sul, que também detêm patentes de partes do processo de impressão dos chips por avançados equipamentos de laser. Xi Jinping reconheceu publicamente que a medida tolhe o desenvolvimento tecnológico da China. Seu governo lançou dois programas que totalizam US$ 88,5 bilhões de investimentos em tecnologias alternativas para a produção de semicondutores avançados.
Taiwan concentra as usinas de impressão. Dois terços de todos os chips do mundo são produzidos na ilha cobiçada pela China, e 90% dos mais sofisticados. As sanções americanas representam um formidável incentivo para Xi levar adiante seu plano de anexar a ilha. Entretanto, Biden afirmou em entrevistas que os Estados Unidos defenderiam Taiwan, abandonando a chamada “ambiguidade estratégica”, que caracteriza a postura americana desde o restabelecimento das relações com a China em 1979.
Uma guerra direta entre Estados Unidos e China teria um efeito dominó sobre a cadeia de alianças que Barack Obama e Joe Biden construíram, ligando a Europa, por meio da Otan, ao Japão, Coreia do Sul, Índia, Austrália, Nova Zelândia e Filipinas, todos sob ameaça da China.
Estadão na eleição dos EUA
Kamala manteria a ajuda à Ucrânia e viabilizaria a continuidade da resistência contra a agressão russa. Isso manteria o nexo entre as disputas na Ásia e na Europa e reforçaria o risco de conflito mundial. Trump, em contraste, abandonaria a Ucrânia e provavelmente Taiwan, assim como os demais aliados da Europa, da Ásia e do Indo-Pacífico à própria sorte.
Massud Pezeshkian foi eleito presidente em julho prometendo fazer todo o possível para restabelecer o acordo nuclear do Irã com os Estados Unidos e a Europa, rompido por Trump. Pezeshkian substituiu o presidente ultranacionalista Ebrahim Raisi, morto em acidente de helicóptero, que se opunha ao acordo, firmado em 2015, durante o governo Obama.
A campanha eleitoral nos EUA inibiu a retomada das negociações, porque tornaria os democratas vulneráveis às críticas de Trump, que brinda Israel, principal inimigo do Irã, com apoio incondicional. Passada a eleição, com Pezeshkian no governo em Teerã e Kamala na Casa Branca, um novo processo de negociação seria possível, embora não fácil, por causa das pressões contrárias de Israel, do lobby judaico e das correntes nacionalistas iranianas.
Uma vez eleita, Kamala teria mais liberdade para pressionar Netanyahu contra uma escalada com o Irã e contra a condução da guerra na Faixa de Gaza e no Líbano, ameaçando com a retirada da ajuda militar americana.
Essas pressões, combinadas com as frustrações dos israelenses com a falta de prioridade dada aos reféns, poderiam contribuir para forçar o primeiro-ministro a negociar um cessar-fogo com o Hamas. Esse movimento poderia também resultar na queda de Netanyahu, já que ele depende do apoio de ministros que rejeitam qualquer negociação e aspiram à ocupação da Faixa de Gaza e expulsão dos palestinos dos territórios.
O governo Biden, com apoio de Kamala, aprovou uma série de programas, sob o guarda-chuva do chamado New Green Deal, que somam US$ 2 trilhões nos próximos dez anos em subsídios para a transição de fontes de energia fósseis para renováveis. Essas medidas se destinam a tentar cumprir o compromisso dos Estados Unidos, segundo maior poluidor do mundo, de cortar 50% de suas emissões até 2030.
Essas metas, chamadas de contribuições determinadas nacionalmente, são resultado de uma intrincada diplomacia ambiental. Quanto mais ambiciosa a meta de um país, maior o estímulo para que outros também adotem esse caminho. E vice-versa.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.