Como foi a jornada de 750 migrantes que acabou em barco que naufragou no Mediterrâneo

Enquanto o Mediterrâneo se tornava palco de um dos naufrágios mais letais de sua história, um bilionário e vários empresários se preparavam para sua própria viagem no Atlântico Norte

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Por Louisa Loveluck, Elinda Labropoulou, Heba Farouk Mahfouz, Siobhán O'Grady e Rick Noack

A história de como 750 migrantes embarcaram em uma frágil barco de pesca azul e acabaram em um dos naufrágios mais letais do Mediterrâneo é maior do que qualquer uma das vítimas. Mas para todos, começou em algum lugar, e para Thaer Khalid al-Rahal começou com um câncer.

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O diagnóstico de leucemia de seu filho mais novo, Khalid, de 4 anos, veio no início do ano passado. A família vivia em um campo de refugiados na Jordânia há uma década, esperando pelo reassentamento oficial depois de fugir da amarga guerra da Síria, e os médicos disseram que a agência de refugiados das Nações Unidas poderia ajudar a cobrir os custos do tratamento. Mas os fundos da agência diminuíram e o caso da criança piorou. Quando os médicos disseram que Khalid precisava de um transplante de medula óssea, o pai confidenciou aos parentes que esperar para se mudar por meio canais oficiais não era mais uma opção. Ele precisava chegar à Europa para ganhar dinheiro e salvar seu filho.

“Thaer pensou que não tinha escolha”, disse seu primo, Abdulrahman Yousif al-Rahal, contatado por telefone no campo de refugiados jordaniano de Zaatari.

Uma foto sem data fornecida pela Guarda Costeira Helênica mostra migrantes a bordo de um barco durante uma operação de resgate, antes de seu barco virar em mar aberto, na costa da Grécia Foto: Guarda Costeira Helênica via Reuters

No Egito, a jornada de Mohamed Abdelnasser, 27, começou com uma percepção assustadora de que seu trabalho de carpintaria não dava para sustentar sua esposa e dois filhos.

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Para Matloob Hussain, 42, tudo começou no dia em que sua renovação de residência grega foi rejeitada, mandando-o de volta ao Paquistão, onde seu salário ajudou a colocar comida na mesa para 20 parentes em meio a uma crise econômica incapacitante.

“A Europa não entende”, disse seu irmão Adiil Hussain, entrevistado na Grécia, onde viveram juntos. “Não migramos porque queremos. Simplesmente não há nada para nós no Paquistão.”

Na viagem anterior de Matloob à Europa, ele ficou com tanto medo da água que manteve os olhos fechados o tempo todo. Desta vez, os contrabandistas prometeram que o levariam para a Itália. Eles disseram que usariam “um bom barco”.

A embarcação partiu da cidade portuária de Tobruk, na Líbia, em 9 de junho. Apenas 104 sobreviventes chegaram à Grécia continental. Oitenta e dois corpos foram recuperados e centenas mais foram engolidos pelo mar.

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Enquanto o Mediterrâneo se tornava palco da tragédia em 14 de junho, um bilionário e vários empresários se preparavam para sua própria viagem no Atlântico Norte. O desaparecimento de seu submersível enquanto mergulhava em direção aos destroços do Titanic desencadeou uma missão de busca e salvamento sem economia de despesas e manchetes infinitas. O navio lotado de refugiados e migrantes não.

Acredita-se que cerca de metade dos passageiros sejam do Paquistão. O ministro do interior do país disse na sexta-feira que cerca de 350 paquistaneses estavam a bordo e que muitos podem ter morrido. Dos sobreviventes do barco, 47 são sírios, 43 egípcios, 12 paquistaneses e dois palestinos.

Algumas das pessoas no arrastão (tipo de barco de pesca) estavam fugindo da guerra. Muitos eram o sustento da família, colocando suas próprias vidas em risco para ajudar os outros em casa. Alguns eram crianças. Uma lista de desaparecidos de duas cidades do Delta do Nilo contém 43 nomes. Quase metade deles tem menos de 18 anos.

Este relato do que os levou a arriscar uma travessia notoriamente perigosa é baseado em entrevistas com sobreviventes na Grécia e parentes dos mortos no Paquistão, Jordânia e Egito, enquanto a notícia causava ondas de angústia em comunidades do norte da África ao sul da Ásia. Algumas pessoas falaram sob condição de anonimato, porque temiam ser arrastadas para a repressão do governo às redes de contrabando humano.

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Sobreviventes de um naufrágio dormem em um armazém no porto da cidade de Kalamata, Grécia, em 14 de junho Foto: Thanassis Stavrakis/AP

A família de Rahal disse que não sabe como ele contatou os contrabandistas na Líbia, mas lembra-se de vê-lo enrugado de cansaço e vergonha por ter que pedir a qualquer um os milhares de dólares que eles pediam para uma passagem segura para a Itália.

Treze homens partiram da vila de El Na’amna, ao sul da capital egípcia, Cairo, na esperança de conseguir o mesmo. A dez milhas de distância, em Ibrash, outro vilarejo, Abdelnasser saiu de casa como costumava fazer em seu turno de trabalho às 2h da manhã, mas em vez disso pegou um carro lotado para a Líbia, junto com outros 29 homens e meninos. “Ele não nos disse nada”, disse seu pai, Amr. “Nós o teríamos impedido.”

Muitas das famílias disseram que as partidas as pegaram de surpresa e que intermediários locais que trabalhavam para os contrabandistas mais tarde se comunicaram com parentes no Egito para reunir os fundos solicitados.

Em El Na’amna, várias pessoas disseram que o valor era de US$ 4.500 (R$ 21,8 mil) por pessoa – uma quantia impossivelmente alta para a maioria dos egípcios rurais. Em Ibrash, disse o tio de Abdelnasser, dois dos homens que chegaram para coletar o dinheiro estavam disfarçados com roupas femininas. Outra mulher falou. Ela recolheu o dinheiro, fotografou os recibos e disse à família que o negócio estava fechado.

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‘Ele disse que o barco era muito ruim’

O tempo de espera na Líbia foi mais difícil do que os migrantes esperavam, disseram familiares que conversaram com eles durante esse período. A cidade portuária de Tobruk tornou-se um centro de trânsito para as pessoas, e os migrantes relataram que os contrabandistas os tratavam como mercadorias a serem negociadas. Os sortudos conseguiram alugar apartamentos apertados onde podiam esperar perto do mar azul brilhante.

Viajantes que marcaram encontro com seus intermediários na cidade de Benghazi foram transportados em grandes caminhões frigoríficos para o deserto. Um sobrevivente descreveu uma casa lá “com um grande quintal e grandes paredes e pessoas na porta com armas”. Estava tão cheio que as pessoas dormiam no quintal do lado de fora. Lá dentro, um imigrante paquistanês de 24 anos, Bilal Hassan, tentou aliviar o clima recitando poesia punjabi. Ele está sorrindo no vídeo que enviou à família, mas outros homens na sala parecem tensos.

Manifestantes carregam uma faixa listando os casos de morte de migrantes durante uma marcha de protesto até a sede da Frontex e da Guarda Costeira Helênica no porto de Pireu, perto de Atenas, em 18 de junho Foto: Louisa Gouliamaki/AFP

Alguns migrantes disseram a suas famílias que estavam ficando ansiosos e não confiavam em seus contrabandistas. Outros enviaram breves mensagens para tranquilizar e dizer que estavam bem.

Rahal falava com sua esposa, Nermin, todos os dias. Um mês se passou sem notícias de continuar a viagem e seu humor piorou. Ele se preocupava com Khalid. Na Jordânia, o menino ficava perguntando quando veria o pai novamente. “Eu não sei,” Rahal escreveu em resposta. Quando a oferta de um contrabandista não deu certo, ele encontrou outro que prometeu fazer o trabalho mais rápido. Nas mensagens de voz para o primo, ele parecia cansado.

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“Vou conseguir o dinheiro”, disse ele.

Sua última ligação para a esposa foi em 8 de junho. Homens da rede de contrabando gritavam para os migrantes se juntarem o mais próximo possível em botes de borracha que os levariam até a embarcação. Mais à frente, o barco de pesca azul parecia já estar cheio.

Matloob Hussein, o paquistanês que morava na Grécia, ligou para o irmão do arrastão. “Ele disse que o barco era muito ruim”, contou Adiil. “Ele disse que eles colocaram pessoas no barco como se fossem gado. Disse que estava abaixo do convés e que preferia isso para não ter que ver que estava cercado por água.

Quando Adiil perguntou por que seu irmão não havia se recusado a embarcar, Matloob disse que os contrabandistas tinham armas e facas. Quando o barco saiu do porto de concreto de Tobruk, ele disse a Adiil que estava desligando o telefone - e não esperava ter um sinal novamente até que eles chegassem.

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Depois que as ligações para os entes queridos pararam, desde o sopé da Caxemira até as aldeias do Delta do Nilo, as famílias prenderam a respiração.

Parecia, disse um parente, como um filme que acabou de parar no meio.

Homens transferem sacos com cadáveres carregando migrantes que morreram depois que seu barco virou em mar aberto na costa da Grécia Foto: Stelios Misinas/Reuters

À espera de notícias

A notícia do naufrágio do arrastão azul vazou na manhã de 14 de junho. O relatório inicial da guarda costeira dizia que pelo menos 17 pessoas morreram afogadas, observando que mais de 100 foram salvas. Na Grécia continental, parentes esperavam por atualizações sob o sol escaldante do lado de fora de um centro de recepção de migrantes. De volta às cidades e vilas natais, algumas pessoas mantinham seus celulares plugados na tomada para não correr o risco de perder uma ligação.

Os moradores de El Na’amna e Ibrash não sabiam o que fazer. A polícia prendeu um contrabandista local, mas não forneceu atualizações sobre o paradeiro dos desaparecidos. Correram rumores de que a maioria estava morta. A mãe de Amr Elsayed, de 23 anos, descreveu uma dor tão forte que ela sentiu como se estivesse queimando.

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Um líder comunitário paquistanês na Grécia, Javed Aslam, disse que estava em contato direto com mais de 200 famílias pedindo notícias. Relatos de sobreviventes sugeriram que quase todos os passageiros paquistaneses, junto com muitas mulheres e crianças, ficaram presos nos níveis inferiores do barco enquanto ele afundava.

Adiil saiu à procura de seu irmão. Não lhe deixaram entrar no hospital onde os sobreviventes estavam sendo tratados, mas ele deixou seus contatos de qualquer maneira. Fora do centro de recepção de Malakasa, onde os sobreviventes estavam hospedados, 24 quilômetros ao norte de Atenas, vários paquistaneses pareciam conhecer Matloob como “o homem de camiseta amarela”. Ninguém o tinha visto desde o naufrágio.

Talvez fosse uma loucura, disse Adiil na quinta-feira, mas de alguma forma ele ainda tinha esperança. Ele registrou seu DNA com as autoridades locais e falou com outras famílias todos os dias. Agora ele não sabia o que fazer consigo mesmo. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Ele carregava fotos amassadas de seu irmão em seu bolso.

Sobreviventes de um naufrágio reagem do lado de fora de um armazém no porto da cidade de Kalamata, Grécia, em 15 de junho Foto: Thanassis Stavrakis/AP

Em uma imagem, Matloob está com sua filha de olhos escuros, Arfa, de 10 anos. Adiil disse à menina que seu pai estava no hospital, mas essa ficção estava pesando mais sobre ele a cada dia, pois ela continuava perguntando por que eles não podiam se falar.

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Khalid também estava perguntando por seu pai, mas ninguém sabia como fazer uma criança de 4 anos entender algo que eles mesmos mal entendiam.

Nermin, disseram parentes, estava “em péssimo estado”. Ela tinha um funeral para organizar sem um corpo. Mas primeiro ela teve que levar Khalid ao hospital para sua biópsia, para saber até onde o câncer havia se espalhado.

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