ISMAÍLIA, EGITO - Na escuridão da madrugada, Magdy Gamal se sentou na ponte do Mosaed 2 e olhou para uma parede de ferro e nada. Até aqui, nada em seis frenéticos e arriscados dias de esforço mexera com o volume maciço do Ever Given, 200 mil toneladas de aço e bens de consumo bloqueando a quarta rota de navegação mais movimentada do mundo.
Dia após dia, a massa imóvel pairava sobre um enxame de máquinas e humanos – escavadeiras, dragas, rebocadores – que cavavam, empurravam e puxavam, sem sucesso. Com os cabos e motores do Mosaed 2 e dos outros rebocadores chegando a ponto de estourar, todas as tentativas de afrouxar o domínio da gravidade sobre o casco falharam a cada maré que as desertava, as águas recuando em seu ciclo implacável. “A maré é um fantasma que estamos tentando enfrentar”, disse Gamal, de 30 anos.
Agora eles estavam em sua última e melhor chance. Na segunda-feira, o Sol e a Lua estavam alinhados para puxar as águas da Terra na mesma direção, produzindo uma “maré rei”, uma das mais altas do ano. Se os esforços falhassem novamente, o governo egípcio estava pronto para começar a colossal tarefa de descarregar os 18 mil contêineres de carga do Ever Given, um por um.
O comércio global se atrasava a cada hora em cada extremidade do Canal de Suez bloqueado. A pressão econômica e política para libertar o navio só crescia. O mundo, distraindo-se de um ano de pandemia, não tirava o olho das telas.
Tudo isso criava um perigo ainda maior. Os marinheiros sabem que pressa e maquinário marítimo pesado são uma combinação mortal. Eles chamam a área em torno dos cabos de reboque de zona de “chicote”, onde as rupturas de cabos cortam braços e esmagam crânios.
Ao redor de Gamal havia pelo menos dez outros rebocadores e cem tripulantes. A imagem do Egito estava em jogo. Ele fez uma oração e pôs a mão no acelerador.
Andar de bicicleta na corda bamba
Quase uma semana antes, pouco antes do amanhecer do dia 23 de março, um comboio de 20 navios entrara pelo portão sul do canal, ao lado da cidade egípcia de Suez.
Para marujos, navegar pelo canal estreito é tão enervante quanto andar de bicicleta na corda bamba. “Você não tem margem de erro”, disse Joe Reynolds, de 55 anos, engenheiro-chefe que já cruzou o canal dezenas de vezes. Seu navio porta-contêineres chegou não muito depois do Ever Given para uma travessia que seria diferente de todas as outras.
Às 7h08, com o sol uma hora acima do horizonte do deserto, o Ever Given entrou numa das artérias do canal e se aproximou de uma curva à direita. Dados de satélite mostram que o navio começou a deslizar a mais de 24 quilômetros por hora, muito mais rápido do que o limite de velocidade do canal: menos de 16 quilômetros horários.
O que estava acontecendo na ponte do Ever Given, onde o capitão e dois pilotos certificados do Canal de Suez estavam de plantão, permanece um mistério. Mas algumas autoridades marítimas notaram que um vento de até 56 quilômetros por hora estava soprando do sul, empurrando a parede de contêineres.
Por mais de meia hora, o navio oscilou de um lado para o outro, de acordo com o rastreamento do satélite, tirando finas das margens, até que sua popa pareceu roçar a costa esquerda. A proa de imediato inclinou bruscamente para a direita, e os 200 milhões de quilos do navio se chocaram contra a arenosa margem leste do canal, a 21 quilômetros por hora.
Era 7h44 da manhã e o Ever Given estava atolado de proa a popa.
Os navios atrás dele desaceleraram os motores e pararam. Julianne Cona, engenheira do Maersk Denver, depois de proteger seu navio agora estacionado no Canal de Suez, reservou um momento para postar uma foto no Instagram. “Parece que vamos ficar um bom tempo por aqui”, escreveu ela.
Velocidade alta sob suspeita
O Ever Given atolou num trecho estreito do canal, nenhuma das seções que o Egito alargara em 2015 como parte de uma expansão de US$ 8,5 bilhões para acomodar navios maiores e permitir o tráfego de mão dupla. Nem mesmo pequenas embarcações conseguiam manobrar em volta da embarcação encalhada, dificultando os esforços dos barcos de salvamento e ainda mais dos cargueiros maiores.
Logo depois do encalhe, dois dos primeiros socorristas da hidrovia, o Mosaed 2 e o rebocador Ezzat Adel, chegaram ao local. A Autoridade do Canal de Suez mantém uma frota de 31 rebocadores, mas, no passado, dois eram mais que suficientes para desencalhar os navios. Apenas um rebocador foi necessário para libertar um petroleiro num acidente na década de 90, de acordo com um velho prático do canal. As autoridades esperavam que esse bloqueio fosse eliminado rapidamente.
Para os marinheiros do canal, a velocidade excepcionalmente alta do navio parecia suspeita. “Pode ter sido um dos fatores que causaram o encalhe”, disse Ramadan, tripulante sênior. “Às vezes, quando tem vento forte, você precisa ir a uma velocidade mais rápida para manobrar o navio direito”.
No segundo dia, as autoridades do canal despacharam as dragas, que mantêm o canal profundo e largo o suficiente para a passagem dos navios. Já passava das oito da noite quando, depois de abrir caminho entre todos os navios que aguardavam, as duas primeiras dragas chegaram.
Naquele dia, vieram mais reforços: uma equipe de especialistas da Smit, empresa holandesa de salvamento que fora convocada pelos proprietários japoneses do navio.
Moradores dos vilarejos ao longo do canal assistiam à crescente operação de resgate com espanto. O maior navio que eles já tinham visto se elevava acima de suas casas e lavouras.
“Nenhum navio jamais ficou preso aqui durante toda a minha vida”, disse Hassan, caminhoneiro de 49 anos que mora em Manshiyet Rugola, um pequeno vilarejo bem próximo ao casco maciço do Ever Given. “É o destino”.
A bordo dos outros navios que se espraiavam no canal, não havia nada a fazer senão esperar. As tripulações trocavam seus turnos, viam filmes no streaming, ficavam de olho nos mapas eletrônicos que mostravam a posição do navio encalhado. Autoridades agrícolas egípcias disseram que forneceram mais de 300 toneladas de ração para mais de 60 mil ovelhas e 420 vacas a caminho da Arábia Saudita e da Jordânia.
No sábado, o navio já tinha formado um porto próprio. Havia pelo menos 14 rebocadores disponíveis. Pequenos barcos transportavam equipamentos, alimentos e tripulantes. Havia times de mergulho e equipes de manutenção, mais de 200 pessoas na água, trabalhando 24 horas por dia, de acordo com entrevistas com as equipes de salvamento.
'Godzilla dos rebocadores'
Na noite de domingo, o primeiro grande rebocador a encostar foi o Alp Guard, de 3.700 toneladas, oriundo de Roterdã. “É o Godzilla dos rebocadores”, disse Gregory Tylawsky, comandante de navio licenciado e fundador do Grupo de Especialistas Marítimos.
Por volta das três da manhã de segunda-feira, a escavação estava concentrada na proa do Ever Given. Uma draga especializada, capaz de remover 2 mil metros cúbicos de areia por hora, mastigava a margem.
E, de repente, eles acharam que sentiram um movimento. Bem lento, sim, mas a popa do Ever Given parecia estar se arrastando em direção às águas mais profundas. Por volta das cinco da manhã, eles tiveram certeza. “Tínhamos fé em Deus e em nós mesmos de que nossos esforços não seriam em vão”, disse Gamal.
Mas a proa ainda estava enterrada em areia egípcia.
Pouco antes do amanhecer, o segundo grande rebocador, o italiano Carlo Magno, com uma tripulação de 13 pessoas, chegou do sul, vindo dos Emirados Árabes Unidos.
Às 14h45, com a maré vazante, os rebocadores pareciam interromper as operações, deixando alguns tripulantes com medo de terem falhado de novo. Mas, meia hora depois, eles acionaram suas hélices para mais um grande impulso.
Então, De Cesaris relembrou, “não havia ruído. Só podíamos sentir os motores de nossas hélices empurrando e percebemos que a velocidade estava mudando. Em vez de ficar parados, estávamos avançando”.
O navio estava livre. Era o fim.
Os apitos dos rebocadores soaram. Os marinheiros se abraçaram. As equipes aplaudiram.
E então eles postaram vídeos da comemoração, para que o mundo que ficara parado por seis dias pudesse compartilhar sua alegria./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
*O’Grady escreveu de Washington. Hendrix, de Jerusalém. Heba Farouk Mahfouz, do Washington Post no Cairo, e Stefano Pitrelli, em Roma, contribuíram para esta reportagem.
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