O depoimento do príncipe Harry como testemunha nesta terça-feira, 6, em caso de grampo telefônico ilícito, representou outro marco em sua jornada peculiar: Ele é o primeiro membro importante da realeza a testemunhar em um tribunal desde 1891, quando o Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VII, testemunhou no caso de um homem acusado de trapacear em um jogo de cartas.
No entanto, para Harry, o comparecimento ao tribunal é, em muitos aspectos, apenas mais um capítulo no que se tornou uma vida de litígios.
Harry e sua esposa, Meghan, são ou foram autores de nada menos que sete processos contra tabloides britânicos e outras organizações de mídia por invasão de telefones e outras violações de privacidade. Harry também entrou com duas ações contra o Ministério do Interior da Grã-Bretanha relacionadas à perda de sua proteção policial durante viagens ao seu país de origem.
À medida que os processos tramitam no sistema jurídico, as visitas de Harry agora têm a mesma probabilidade de estarem vinculadas às datas dos tribunais e às cerimônias reais, como a coroação de seu pai, o Rei Charles III, à qual ele compareceu no mês passado. Na segunda-feira, 5, Harry chegou de Los Angeles para testemunhar em um processo contra o Mirror Group Newspapers, que ele acusou de hackear seu celular há mais de uma década.
Antes da coroação, a última vez que ele visitou o Reino Unido foi em março para comparecer ao tribunal, ao lado do astro pop Elton John, em um processo contra a editora do Daily Mail, com base em acusações de grampeamento de seu celular. Ele também está processando o News Group Newspapers, de Rupert Murdoch, por pirataria e outras violações de privacidade.
Para Harry, que agora se sustenta em grande parte sozinho, o litígio tem sido caro e demorado. Pessoas que o conhecem dizem que ele não esperava, quando entrou com os processos, que eles se arrastariam por tantos anos. Entrar em guerra contra os tabloides não ajudou sua imagem na Grã-Bretanha, onde sua popularidade já foi manchada pela amarga separação com seu pai e seu irmão mais velho, William.
Luta jurídica contra excessos dos tabloides
Mas as aparições no tribunal proporcionam a ele uma plataforma para promover o que ele considera uma das missões de sua vida: Limitar os excessos dos tabloides, que ele e Meghan acusaram de acabar com a vida das pessoas “sem nenhuma boa razão, a não ser o fato de que fofocas obscenas aumentam a receita de publicidade”.
“Ele está tomando medidas contra uma suposta ilegalidade, um suposto abuso de poder”, disse Peter Hunt, ex-correspondente real da BBC. “Essa é uma atitude muito corajosa, o que não é um adjetivo visto com frequência junto ao nome de Harry.”
A campanha do príncipe contra os tabloides distingue ele de outros membros da família real, que têm tentado sempre conciliar sua relação com os jornais. Na segunda-feira, 5, quando o julgamento foi iniciado, a primeira página do The Sun trazia uma foto favorável da esposa de William, a princesa Catherine, acima de uma manchete que dizia: “Tenho orgulho de apoiar o pedido do Sun”, referindo-se a uma campanha de caridade patrocinada pelo jornal.
Leia mais sobre o príncipe Harry
Desde que Harry deixou a Grã-Bretanha em 2020, ele percorreu um longo caminho para retomar o controle de sua narrativa dos tabloides. Entre seu livro de memórias, “O que sobra”, e um documentário da Netflix com Meghan, Harry terá poucas informações novas para divulgar no tribunal, previu Hunt.
Em vez disso, espera-se que Harry descreva um padrão de pirataria que levou à prisão de vários jornalistas; acelerou o fechamento do tabloide News of the World, do Murdoch; desencadeou uma grande investigação pública; e resultou em restrições voluntárias aos jornais.
Na segunda-feira, o advogado de Harry, David Sherborne, começou a expor os detalhes do suposto crime cometido contra a privacidade de Harry. Segundo ele, o Mirror Group interceptou as mensagens de correio de voz do príncipe, pagou investigadores particulares para coletar informações sobre ele e contratou fotógrafos que usaram meios ilegais para rastrear o itinerário de Harry e das pessoas próximas a ele, incluindo sua ex-namorada, Chelsy Davy, cujo celular também foi hackeado.
Informações obtidas de forma ilegal
Para ilustrar seu caso, os advogados de Harry apresentaram 147 artigos que, segundo eles, foram baseados em informações obtidas por meios ilegais. Esses artigos abrangem desde sua infância até os anos de escola e os anos seguintes à morte de sua mãe, a Princesa Diana, que morreu em um acidente de carro em 1997 após ser perseguida por fotógrafos.
“Todas as facetas de sua vida foram espalhadas pelo jornal como exclusivas, uma história boa demais para não ser publicada”, disse Sherborne. “Nada era considerado sagrado ou fora dos limites, e não havia proteção contra esses métodos ilegais de coleta de informações.”
Muitos dos jornalistas que usaram esses métodos ainda estão trabalhando no The Mirror, e alguns chegaram a posições de autoridade na empresa, afirmou Sherborne. “A noção de que isso ocorreu anos atrás é equivocada”, disse ele.
Ainda assim, esse é o ponto central do caso apresentado pelos advogados do Mirror Group. Como a maior parte dessa atividade ocorreu entre 1991 e 2011, disseram os advogados em um processo, ela está muito além da limitação de tempo de seis anos que geralmente se aplica a reclamações legais de violações de privacidade. A prática de colocar grampos telefônicos praticamente desapareceu desde o surgimento do escândalo em 2011, de acordo com advogados especializados nesses casos.
Os advogados de Harry e de três outros reclamantes no caso alegam que a empresa ocultou deles sua atividade ilegal, de modo que não era razoável esperar que eles a descobrissem antes. Além de Harry, os outros são Nikki Sanderson e Michael Taylor, que apareceram na novela britânica “Coronation Street”, e Fiona Wightman, ex-esposa do comediante Paul Whitehouse.
Daniel Taylor, advogado cuja empresa, Taylor Hampton, representa a Wightman, disse que era extraordinário que o julgamento estivesse sendo realizado. É apenas o segundo caso desse tipo a ir a julgamento depois de dezenas de casos e mais de uma década de litígios relacionados a hackers, disse ele, e isso apresenta riscos para ambos os lados.
De acordo com ele, “é provável que Harry seja submetido a um interrogatório rigoroso e contínuo” pelos advogados que representam o Mirror Group. Isso pode ser constrangedor, já que a invasão ocorreu durante os anos anteriores ao relacionamento de Harry com sua esposa, Meghan.
Mas o Mirror Group também está assumindo um risco ao ir a julgamento, afirmou Taylor, uma vez que uma derrota poderia incentivar outras vítimas de práticas de grampo por parte do grupo de mídia a processarem a empresa.
“[O grupo] está disposto a fazer isso porque uma vitória ou um sucesso parcial no julgamento irá, em sua opinião, desacelerar ou parar a onda de reclamações que está sendo apresentada contra a empresa”, disse o advogado.
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