As eleições americanas de 2024 podem ter um impacto significativo na Europa. Os rumos da guerra na Ucrânia, as relações comerciais com a União Europeia e a participação americana na Otan estarão nas mãos do próximo presidente americano.
Kamala Harris, se eleita, provavelmente continuaria a política de Biden, mantendo o apoio à Otan e promovendo uma abordagem colaborativa em questões globais, incluindo mudanças climáticas e segurança.
Por outro lado, uma vitória de Donald Trump poderia resultar em um afastamento do multilateralismo, com um foco maior em políticas isolacionistas e em pressionar aliados europeus a aumentarem seus próprios gastos com defesa. Isso geraria incertezas sobre a estabilidade da aliança transatlântica.
Já na África, o apoio americano a reformas de governança e a participação de países africanos em fóruns internacionais dependerá de quem chegar à Casa Branca. Veja abaixo como as eleições americanas impactam a Europa e a África.
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Gasto com Ucrânia pressiona próximo presidente
À medida que a guerra na Ucrânia segue para seu terceiro ano e os Estados Unidos já doaram mais de US$ 175 bilhões a Kiev, o país de Volodmir Zelenski pode sentir os efeitos das eleições americanas mais do que qualquer outro país estrangeiro.
Hoje, a administração Biden-Kamala mantém uma política de apoio contínuo à Ucrânia, com envio de ajuda militar e pacotes de assistência financeira, mas enfrenta uma oposição significativa de setores do Congresso que pressionam por um controle mais rígido dos gastos externos — em abril, os EUA aprovaram um pacote de US$ 95 bilhões depois de o projeto ter ficado travado por dois meses na Câmara por resistência da ala mais radical do Partido Republicano.
Para a Ucrânia, portanto, uma ascensão de Kamala ao Salão Oval seria uma boa notícia, já que a vice-presidente já afirmou que “permanecerá firme” ao lado da Ucrânia. Zelenski tem repetidamente pedido por mais armas de longo alcance e permissão para usar tais armas para ataques mais profundos ao território russo, e tais aprovações parecem mais prováveis em um governo Kamala.
Mas Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), alerta que um governo da democrata poderá ter de lidar com possíveis ajustes financeiros diante de promessas de de políticas internas com outras agendas, como seu plano populista destinado a reduzir o custo de vida dos americanos.
“Talvez tenha um ajuste no tipo de negociação que eles têm com Ucrânia para eventualmente levar uma um novo cenário, onde eles gastem menos”, diz a especialista.
Trump, por sua vez, que tradicionalmente argumenta que os EUA deveriam reduzir suas despesas com defesa em outros países para priorizar a política interna, tem criticado o governo Biden pelas quantias enviadas a Kiev e deixa claro sua intenção de redução da ajuda investida em conflitos estrangeiros onde os interesses diretos dos EUA não estejam imediatamente em risco.
“O cenário muda completamente (com Trump). A guerra não é uma prioridade da presidência dele e realmente é um dreno de dinheiro”, diz Cristina.
É justamente a quantia de dinheiro gasta na guerra que faz com que ex-presidente tenha interesse em acelerar uma potencial negociação entre Rússia e Ucrânia, segundo a especialista. Ao longo de toda sua campanha, o republicano tem afirmado que, caso vença, terminará com a guerra em um dia. Ele não deu detalhes sobre o seu plano para o conflito do Leste Europeu, mas deixa claro que tem uma forte ambição em fazer Zelenski e Vladimir Putin sentarem à mesa para negociar.
Apesar do desejo de Trump de dar fim à guerra, a Ucrânia teme uma vitória do republicano. E isso não se deve apenas ao apoio militar que está em jogo, mas também pela política de boa vizinhança que o republicano mantém com Putin. Trump já expressou admiração pelo presidente russo mais de uma vez, elogiando sua habilidade de liderança e seu controle sobre a política russa. Putin, por sua vez, frequentemente se refere a Trump de maneira positiva, e já fez comentários irônicos em apoio aos democratas.
Neste cenário, ucranianos temem que se Trump vencer as eleições, ele possa deixar a guerra ocorrer sem seguir com o meio apoio dado à Ucrânia até então ou que pressione por um cessar-fogo que possa beneficiar a Rússia e que finalmente cesse com os gastos dos EUA com a guerra.
A complexa relação EUA-Otan sob um possível Trump 2
As políticas protecionistas de Trump e o seu ceticismo sobre as reais vantagens de gastos em defesa externa também recaem sobre a Otan. O republicano já deixou claro que pretende reavaliar a colaboração americana para a aliança e deverá repetir a pressão, feita durante seu primeiro mandato, para que os demais países aumentem os gastos militares - Trump argumenta a que os países da Otan se aproveitam dos EUA ao não cumprirem a exigência de que os membros gastem pelo menos 2% de PIB em defesa.
Um segundo governo Trump poderia levar a uma política exterior mais unilateral, priorizando os interesses americanos em detrimento dos objetivos dos aliados. É pouco provável, porém, que o republicano retire os Estados Unidos da Otan, uma vez que tal decisão depende de aprovação do Senado e a proposta provavelmente enfrentaria resistência.
“Acredito que ele não vai quebrar o Otan como ele quebrou a OMC (Organização Mundial do Comércio), até porque os Estados Unidos precisam dessa presença militar. Agora, certamente os europeus não vão ser mais tratados a pão de ló”, diz Cristina sobre um possível segundo governo Trump.
Em contraste, uma vitória de Kamala seguiria alinhada à visão de Biden. Na Conferência de Segurança de Munique em 2024, bem como na Convenção Democrata em agosto, a vice-presidente reafirmou o compromisso dos EUA, descrevendo a Otan como a “a maior aliança militar que o mundo já conheceu”.
Não está claro, porém, se Kamala apoiaria a entrada da Ucrânia na aliança militar. Questionada no programa 60 minutes da CBS, a candidata democrata respondeu que essa era “uma pergunta para o futuro”.
A maior relação bilateral de comércio em pauta
Para além da guerra no leste europeu, o que também ganha destaque na agenda europeia para o próximo presidente americano são as relações econômicas entre Estados Unidos e União europeia, a maior relação bilateral de comércio do mundo.
Assim como nos gastos de defesa com a guerra na Ucrânia ou também nas relações com a Ásia, Donald Trump, caso vença para um segundo mandato, deverá retomar sua política “America First”. O republicano já falou em outros momentos que a União Europeia “tira vantagem” dos Estados Unidos no comércio e não esconde o uso de tarifas como uma de suas principais ferramentas de negociação.
Em contraste, uma administração Kamala provavelmente fortaleceria as relações EUA-UE, já que não é do interesse da democrata provocar indisposição com parceiros estratégicos dos Estados Unidos, como Alemanha, Itália e França.
Outro ponto de impacto nas relações EUA-UE envolve a questão climática, onde as posições de Trump e Kamala divergem de maneira drástica, embora o tema tenha sido desviado do foco das campanhas. . Quando presidente, Trump menosprezou os acordos climáticos, retirando os EUA do Acordo de Paris e criticando o Inflation Reduction Act (IRA) que incentiva investimentos em energia verde e tecnologias sustentáveis. Um segundo governo Trump poderia aprofundar essa distância.
Sob a presidência democrata, por outro lado, a expectativa seria de que os EUA reforçassem a colaboração transatlântica em áreas de sustentabilidade e energia limpa, mas com a limitação já conhecida, como pontua Cristina.
“A União europeia tem uma pauta ambiental muito mais avançada e unificada que a americana, com a relação à emissão de gases estufa, transição energética etc. Vai ter uma convergência aparente no discurso, pró-meio ambiente pós eleição, mas não vai haver uma convergência plena, por exemplo, em negociação de COP”, avalia.
Na África, apoio a reformas em jogo
Embora tanto Kamala quanto Trump não tenham enfatizado extensivamente suas estratégias para a África durante a campanha, o continente é um ator estratégico para os EUA, especialmente pela contenção da influência chinesa e russa.
O Projeto 2025 republicano reconhece a relevância do continente devido a sua questão demográfica e devido também aos recursos naturais, mas a expectativa é que, se reeleito, altere significativamente as relações construídas sob a administração Biden, afirma Natalia Fingermann, professora de Relações Internacionais da ESPM.
Segundo a especialista, o governo Biden estabeleceu uma estratégia focada na África subsaariana, promovendo a inclusão de países africanos no Conselho de Segurança da ONU e garantindo que os Estados Unidos permaneçam como o principal doador de ajuda internacional ao continente. “Isso é relevante porque o continente africano conta com um soft power muito importante da China, então o governo Biden percebe a relevância dos Estados Unidos se fazer presente”, explica a especialista.
Isso contrasta com a administração Trump, que cortou substancialmente a ajuda e reduziu o número de tropas americanas na região, causando impactos negativos nas relações com governos locais. Quando republicano assumiu a presidência, o número de tropas americanas na África caiu de cerca de 5 mil para aproximadamente 1.800.
Caso Trump vença, é provável que haja um retrocesso em relação ao apoio a reformas de governança e a participação da África em fóruns internacionais. Essa mudança também pode resultar em uma queda acentuada nas iniciativas de ajuda e cooperação militar que foram promovidas por Biden e que Kamala provavelmente continuaria.
Para Natália, Trump ainda poderia dificultar acordos multilaterais, favorecendo negociações bilaterais que poderiam prejudicar a posição dos Estados Unidos como parceiro comercial na África Subsaariana. O African Growth and Opportunity Act (AGOA), um acordo crucial que permite acesso sem tarifas a produtos africanos nos EUA, está programado para renovação em 2025. As incertezas em torno de sua continuidade sob a administração Trump geram preocupação entre os governos africanos, que temem um possível enfraquecimento dessa iniciativa.
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