Como o ‘Estadão’ viu a invasão da Ucrânia, direto de Kiev; veja vídeos

Enviado do jornal foi um dos poucos da imprensa brasileira a cobrir o início da invasão

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Foto do author Eduardo Gayer

Era tarde de 18 de fevereiro de 2022 quando Andreza Matais, editora-executiva do Estadão em Brasília, me deu a missão. Eu estava em Budapeste, após acompanhar o encontro de Jair Bolsonaro com o premiê de extrema-direita Viktor Orbán.

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A ideia era esticar a viagem por mais alguns dias e contar o “pré-guerra”, quando um conflito entre Rússia e Ucrânia parecia iminente, mas não tinha data para acontecer.

Ou eu voltava para Moscou, onde uma semana antes cobrira o encontro de Bolsonaro e Vladimir Putin; ou seguia para Kiev, a capital ucraniana. A restrição de visto por Moscou - ou o destino, vai saber - me levou ao país que seria invadido dias depois.


Na noite do dia 23, houve o esgotamento da via diplomática. O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, telefonou para Putin e não foi atendido. A guerra estava próxima.

A opinião quase consensual era a de que o ataque, quando acontecesse, não atingiria Kiev, a 700 quilômetros da fronteira. Se o objetivo nunca foi cobrir o conflito propriamente dito, o plano foi arrumar as malas, dormir e no dia seguinte, de avião ou de trem, sair de lá. Não deu tempo.

Meu telefone tocou às 3 horas da manhã com o alerta de que Putin anunciara a invasão. Para quem nasceu nos anos 1990 em um país pacífico como o Brasil, estar no meio de uma guerra era quase surreal.

Peguei a mala preparada, desci ao saguão do hotel, e telefonei - de madrugada mesmo - para o ex-chanceler Carlos França, que me colocou em contato com o embaixador do Brasil na Ucrânia, Norton Rapesta.

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Do térreo ouvi a primeira bomba disparada sobre Kiev. Putin supreendeu os especialistas. A guerra seria também no coração da Ucrânia. Com a História acontecendo na minha frente, naquele instante os planos mudaram. Era preciso fazer jornalismo o que via.

O alarme de emergência soou pela primeira vez por minutos a fio. Na companhia do colega jornalista Matheus Brotero, corri para o bunker na estação de metrô.

Por uma quase ironia, o espaço fora construído pelos russos na Guerra Fria, época em que a Ucrânia pertencia à União Soviética, para abrigar a população de um possível ataque nuclear americano. O mesmo local acabou usado para se proteger de Moscou.

Começava ali meu entra-e-sai dos bunkers. Cada intervalo de mínima segurança era oportunidade para contar a vida na guerra. Presenciei a corrida por alimentos nos supermercados, e garanti as minhas batatas ensacadas.

Vi o hotel onde me hospedei virar hotel-fantasma. Os funcionários deixaram o local às pressas com a notícia de que os russos se aproximavam da capital. Enchi a banheira do hotel sem tomar banho. E se faltasse água?

Para dormir, afastei a cama da janela com medo de estilhaços. Pela fresta eu via um tanque de guerra sob a escuridão da fria noite de Kiev. Os militares ucranianos esperavam os russos em postura de resistência e um banho de sangue era possível. Coloquei pijama e escolhi descansar como se no Brasil estivesse. Sabia que o dia seguinte seria pior.

O conflito escalou e a embaixada ofereceu abrigo. Perguntei como chegar lá, se não havia transporte. “Não sou seu chofer”, me respondeu um diplomata. Entre um bombardeio e outro, fui a pé, com mapa à mão e uma a palavra “PRESS” - imprensa, em inglês - pendurada no corpo, feita de cartolina encontrada na recepção abandonada do hotel. Deixei a minha comida estocada com amigos que fiz em Kiev. Certamente, pensei, eu encontraria alimento antes deles.

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Não sou seu chofer

resposta de diplomata brasileiro ao ser perguntado sobre como repórter deveria se deslocar até a embaixada

Foram cerca de 20 minutos de caminhada em ruas desertas. Sempre filmando, é claro. Mas o vídeo foi apagado pelo exército ucraniano, que me abordou com a truculência de uma guerra, com receio de que o material fosse utilizado pela espionagem russa.

Da embaixada fui à estação de trem, palco de cenas que ainda martelam em mim quando leio sobre a guerra. Difícil traduzir nestas linhas. Vi pais, proibidos de deixar o país, acenarem com lágrimas nos olhos a seus filhos e esposas, alguns só com a roupa do corpo, abrigados nos vagões. Quando seria o próximo abraço? Muitos deles nunca mais vão acontecer. Rumo a Varsóvia, na Polônia, o trem estava abarrotado.

Foram 24 horas em pé no estreito corredor, sem comida ou água. O expresso de fuga andava na completa escuridão. Celulares eram proibidos e as luzes de emergência do corredor foram vedadas com fita isolante. Qualquer luz poderia chamar a atenção das tropas russas e tornar-se alvo.

Revirando a mesma mochila que uso em Brasília, encontrei lá no fundo uma barrinha de cereal toda amassada. Fiquei aliviado, começava a suar de fome. Ao lado, Mathias com a boca salivando. No aperto dividimos aquela pequena barrinha de banana e chocolate, da qual nos lembramos até hoje.

Os poloneses nos receberam em Varsóvia com cobertores, frutas e até mamadeira para os pequenos. Quem saiu de casa assustado e com a roupa do corpo não segurou as lágrimas. Estávamos, seguros, do outro lado da fronteira.

Jornalismo de guerra nunca foi a pretensão deste repórter, pouco fã de adrenalina, mas obcecado por notícia. Como ensina Lourival Sant’Anna, colunista do Estadão, cobrir um conflito armado não é trabalhar na ausência de medo. É fazer jornalismo apesar dele.

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