Como o fim da era Deng Xiaoping afastou a China dos EUA; leia a coluna da Thomas Friedman

Depois que Xi Jinping assumiu como principal líder da China, em 2012, ele pareceu alarmado ao ver como a abertura da China em relação ao mundo

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Por Thomas L. Friedman


Esta é a terceira parte do artigo de Thomas L. Friedman EUA, China e uma crise de confiança entre as superpotências. O texto foi dividido em capítulos para facilitar sua leitura. Clique aqui e aqui para ler os capítulo anteriores

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TAIPÉ, Taiwan — Após o período de isolamento da China e instabilidade interna sob Mao Tsé-tung chegou ao fim com a morte dele em 1976, um sucessor, Deng Xiaoping, deu uma guinada de 180 graus em relação ao maoísmo. Deng estabeleceu uma liderança muito mais coletiva para a China e limites para os mandatos dos principais dirigentes, colocando o pragmatismo — o que quer que impulsionasse o crescimento econômico — acima da ideologia comunista, ao mesmo tempo ocultando a crescente força da China.

Na era de Deng e seus sucessores — nos anos 1980, 1990 e início da década de 2000 — Pequim estabeleceu fortes laços econômicos e educacionais com os EUA, que patrocinaram a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, sob a condição de que a China eliminasse gradualmente sua prática mercantilista de financiar empresas estatais e abrisse gradualmente seu mercado a mais investimento estrangeiro, assim como o mundo se abriu para as exportações da China.

Mas, depois que Xi Jinping assumiu como principal líder da China, em 2012, ele pareceu alarmado ao ver como a abertura da China em relação ao mundo, sua abordagem consensual para a liderança e sua pressa em seguir um rumo semicapitalista levaram a uma corrupção descontrolada dentro do Partido Comunista e Exército de Libertação Popular, a tal ponto que isso chegava a prejudicar a legitimidade do partido.

A centralização da Era Xi Jinping

Então, Xi centralizou o poder nas próprias mãos, esmagou todos os pequenos reinos criados por diferentes lideranças de diferentes agências do governo e setores da economia, reinjetou a autoridade do Partido Comunista em cada canto dos negócios, da atividade acadêmica e da sociedade, e implementou tecnologias de vigilância onipresentes. Tudo isso somado pareceu reverter uma aparente marcha constante da China rumo a uma progressiva abertura — e até uma imprensa um pouco mais livre.

Presidente da China, Xi Jinping, participa de reunião em Pequim Foto: Ben Ishii / EFE

Basicamente, Xi se afastou das políticas de Deng que desencadearam o potencial do setor privado, concentrando-se em vez disso na construção de campeões econômicos nacionais capazes de dominar todas as principais indústrias do século 21 — da IA à computação quântica, passando pelo setor aeroespacial — e garantindo a presença de células do Partido Comunista na sua administração e força de trabalho. E quando representantes comerciais americanos disseram: “Ei, vocês precisam honrar o compromisso com a OMS e limitar o financiamento estatal das indústrias”, a China basicamente respondeu: “Por que deveríamos seguir sua interpretação das regras? Agora somos grandes o bastante para ter nossas próprias interpretações. Somos grandes demais; vocês chegaram tarde demais”.

Isso somado ao fracasso da China em mostrar claramente o que sabia a respeito das origens da Covid-19, sua repressão às liberdades democráticas em Hong Kong e à minoria muçulmana uighur em Xinjiang, suas jogadas agressivas para se apoderar do Mar do Sul da China, as ameaças cada vez mais estridentes em relação a Taiwan, sua aproximação com Vladimir Putin (apesar de ele ter brutalizado a Ucrânia), as jogadas de Xi para se tornar presidente vitalício, sua castração dos empreendedores de tecnologia da própria China, suas crescentes restrições à liberdade de expressão e a ocasional abdução de um importante empresário chinês — tudo isso junto teve um grande resultado: a eventual confiança que a China tinha desenvolvido com o Ocidente desde o final dos anos 1970 evaporou justamente no momento da história em que a confiança e os valores compartilhados se tornaram mais importantes do que nunca, em um mundo de produtos profundos de utilidade dupla impulsionados por software, pela conectividade e pelos microchips.

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Conforme isso ocorria, os países ocidentais em geral e os EUA em particular começaram a se importar muito mais com o fato de essa potência ascendente — para quem estávamos agora vendendo ou de quem estávamos agora comprando todo tipo de dispositivos digitais e aplicativos de utilidade dupla — ser autoritária.

Pequim, de sua parte, argumenta que conforme a China se tornou um concorrente global mais forte aos EUA — em bens profundos como a rede 5G da Huawei — os EUA simplesmente não conseguiram lidar com isso e decidiram usar seu controle da manufatura de semicondutores avançados e outras exportações de alta tecnologia americanas e de seus aliados para garantir que a China estivesse sempre no espelho retrovisor. Então Pequim pensou em uma nova estratégia, chamada de “circulação dupla”. Seu princípio era: usaremos os investimentos do estado para produzir domesticamente tudo que for possível, para nos tornarmos independentes do mundo. E vamos usar nosso poder de manufatura para tornar o mundo dependente das nossas exportações.

Pessoas visitam o estande da Nio, fabricante multinacional chinesa de carros elétricos, durante a 20ª Exposição Internacional da Indústria Automobilística de Xangai, em Xangai, em 19 de abril de 2023. (Foto de Hector RETAMAL / AFP) Foto: Hector Retamal / AFP

A busca pelo bode expiatório

As autoridades chinesas também argumentam que muitos políticos americanos — liderados por Trump, mas ecoados por muitos no congresso — pareceram subitamente considerar muito conveniente jogar a culpa dos problemas econômicos da classe média americana não nas deficiências do ensino, nem na inadequação da ética de trabalho, na automação ou no saque de 2008 realizado pelas elites governantes, nem a crise que se seguiu a ele, e sim nas exportações da China para os EUA. Do ponto de vista de Pequim, a China se tornou o bicho-papão da vez para os americanos, e na sua ânsia de culpar Pequim por tudo, os congressistas começaram a promover a independência de Taiwan de forma mais irresponsável.

Um funcionário do alto escalão do governo me contou que, na reunião de cúpula que tiveram em Bali em novembro, Xi disse ao presidente Biden essencialmente o seguinte: não serei o presidente da China responsável por perder Taiwan. Se você forçar a mão neste ponto, haverá guerra. Você não entende como isso é importante para o povo chinês e está brincando com fogo.

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o presidente da China, Xi Jinping, em Bali, Indonésia Foto: Doug Mills / NYT

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Independentemente disso, me parece claro que, em algum nível, as autoridades chinesas entendem agora que, como resultado de suas próprias ações agressivas nos anos recentes em todas as frentes que citei, eles assustaram o mundo e os próprios inovadores chineses justamente na hora errada.

Digo isso por causa da frequência com que autoridades do alto escalão chinês dizem a cada liderança estrangeira e a cada empresário ocidental em visita que a China está “aberta” e ansiosa para receber investimentos estrangeiros. A realidade é que o país precisa se abrir mais ao investimento estrangeiro direto porque as províncias da China precisam desesperadamente de capital para compensar pelo dinheiro que cada governo local gastou na tentativa de controlar a Covid, e porque muitas delas estão ficando sem terras para vender a fábricas estatais para, com isso, captar dinheiro.

Também acho que não foi por coincidência que Jack Ma, fundador do Alibaba e uma espécie de Steve Jobs da China, reapareceu subitamente algumas semanas atrás na mídia controlada pelo estado depois de ter desaparecido da vista do público em 2020 de uma hora para a outra. Ma tinha sumido após um desentendimento com reguladores do governo, para quem ele estava se tornando grande demais e independente demais. O desaparecimento dele provocou ondas de choque na comunidade de startups da China e afastou os investimentos.

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Não vejo problema em dizer que gostaria de viver em um mundo onde os chineses prosperassem juntamente com todos os demais. Afinal, estamos falando em uma em cada seis pessoas no planeta. Não aceito o argumento segundo o qual estamos destinados a guerrear. Acredito que estamos condenados a concorrer uns com os outros, condenados a cooperar uns com os outros e condenados a encontrar uma forma de equilibrar as duas coisas. Caso contrário, americanos e chineses terão um século 21 péssimo.

Fomentando inseguranças

Mas preciso dizer que americanos e chineses me fazem lembrar israelenses e palestinos sob um aspecto: são especialistas em fomentar as inseguranças mais profundas um do outro.

O Partido Comunista da China está agora convencido de que os EUA querem derrubá-lo, coisa que alguns políticos americanos passaram a sugerir de fato, sem constrangimento. Assim, Pequim está pronta para se deitar com Putin, um criminoso de guerra, se isso for o necessário para manter os americanos sob controle.

Os americanos temem agora que a China comunista, que enriqueceu explorando um mercado moldado por regras americanas, use seu novo poder de mercado para alterar essas regras unilateralmente em proveito próprio. Então, decidimos concentrar a força que nos resta em relação a Pequim na tentativa de garantir que os chineses estejam sempre dez anos atrasados em relação aos nossos microchips.

Não sei o que será suficiente para reverter essas tendências, mas acho que sei o que é necessário.

Se a política externa americana não tem o objetivo de derrubar o regime comunista na China, os EUA precisam deixar isso absolutamente claro, porque encontrei em Pequim mais pessoas do que nunca que parecem pensar que isso é verdade.

E, por sinal, no mundo fundido de hoje, a ideia de que a China possa entrar em colapso econômico enquanto os EUA prosperam não passa de uma fantasia. E a ideia de que os europeus estarão sempre ao lado dos americanos, levando em consideração o tamanho do mercado chinês, também pode ser uma ilusão. Basta reparar no presidente francês Emmanuel Macron visitando humildemente Pequim na semana passada.

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A chave para o potencial chinês

Quanto à China, o país pode dizer a si mesmo o quanto quiser que não deu uma guinada nos anos mais recentes. Mas ninguém acredita nisso. A China só vai concretizar seu potencial pleno — em um mundo hiperconectado, digital, profundo, de utilidade dupla, impulsionado por semicondutores — se compreender que estabelecer e manter a confiança é agora a principal vantagem competitiva de qualquer país ou empresa. E Pequim está fracassando nesta área.

Em sua magnífica biografia do grande estadista americano George Shultz, o autor Philip Taubman cita uma das regras cardeais de Shultz para a diplomacia e a vida: “A confiança é a moeda do reino”.

Isso nunca foi mais verdadeiro do que hoje, e nunca foi maior a necessidade da China de encarar essa verdade. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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