A escalada bélica da Rússia nas últimas décadas, incluindo a invasão e atual guerra contra a Ucrânia, costuma ser analisada como parte de uma ambição de retornar à “glória” da União Soviética. Aquela grande potência dividia a hegemonia global com os Estados Unidos e desapareceu repentinamente mais de 30 anos atrás, reduzindo o prestígio do país que ficou em seu lugar.
Apesar de ser um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e de ter uma das maiores capacidades militares do mundo, a Rússia é um dos países que mais tentam conquistar status internacional. Uma pesquisa recente indica, entretanto, que a forma como o país tem agido não tem ajudado nesse objetivo, e isso pode servir de lição para outros Estados que querem ter mais prestígio, como o Brasil.
Estudos sobre o comportamento russo estão entre alguns dos que fundaram a pesquisa de relações com foco em busca por prestígio, como no livro Quest for Status, de Deborah Welch Larson e Alexei Shevchenko. Mesmo tendo alguns dos “selos” que garantem esse status, a Rússia sente que não é reconhecida como tal pelo resto do mundo, o que motiva muito de sua ação internacional.
Exemplo disso está nessa escalada das últimas décadas, quando o país buscou restabelecer-se como uma grande potência global. A agenda ambiciosa incluiu uma modernização militar significativa e expansão econômica, principalmente por meio de sua dominância no setor de energia.
No entanto, apesar do progresso substancial, a Rússia tem tido dificuldades para converter esses avanços em status e influência global. Este é um dos principais argumentos do artigo acadêmico The Hard Power Limitation: The Failure of Russia to Bring Back the Great Power Status de Najmi Sungkar, Wishnu Avianto e Idil Syawfi, publicado pelo journal Sentris. Segundo o estudo, isso ocorre pela incapacidade russa de combinar efetivamente o hard power e o soft power no que é conhecido como smart power.
O trabalho usa o conceito de smart power, que assim como o de soft power foi introduzido por Joseph Nye e envolve o uso estratégico tanto do hard power (coerção militar e econômica) quanto do soft power (influência cultural e diplomática) para alcançar resultados mais eficazes e sustentáveis nas relações internacionais. De acordo com esta abordagem, embora muitas nações possuam poder significativo, o verdadeiro desafio reside na integração desses elementos. E a história recente da Rússia ilustra essa dificuldade.
O poder militar da Rússia tem visto um aumento notável desde 2008. Os gastos militares anuais do país triplicaram, e houve esforços concentrados para modernizar seus equipamentos de defesa. Economicamente, a Rússia tem alavancado seus vastos recursos energéticos, tornando-se um ator chave nos mercados globais de petróleo e gás. Essa força econômica proporcionou à Rússia um poder significativo, que teoricamente deveria fortalecer sua influência internacional.
Apesar desses avanços, há um debate considerável entre os estudiosos sobre o verdadeiro status global da Rússia. Enquanto alguns argumentam que a Rússia está se aproximando de sua antiga glória através do desenvolvimento do hard e smart power, outros permanecem céticos e questionam a credibilidade do poder da Rússia, citando limitações em suas capacidades militares, econômicas e geográficas.
Eles argumentam que, embora a Rússia tenha um poder significativo, sua incapacidade de utilizar efetivamente esse poder para influenciar as relações internacionais é um grande obstáculo. Esse ceticismo se estende ao uso do soft power pela Rússia, que alguns estudiosos descrevem como apenas uma extensão de suas táticas de hard power em menor escala.
O soft power envolve a capacidade de moldar as preferências dos outros através de apelo e atração, tipicamente por meio de meios culturais ou ideológicos. A Rússia tem enfrentado dificuldades nessa área, enfrentando desconfiança global e preocupações sobre suas intenções. A percepção da comunidade internacional sobre a interferência agressiva da Rússia nos assuntos de outras nações, como seu envolvimento no conflito na Ucrânia e na guerra Russo-Georgiana, manchou sua imagem e minou suas iniciativas de soft power.
Segundo o artigo, apesar dos avanços nas esferas militar e econômica, a Rússia não conseguiu integrar esses elementos para melhorar sua posição global de forma eficaz. Essa lacuna é evidente na limitada capacidade da Rússia de atrair cooperação internacional ou influenciar significativamente a política global.
O caso da Rússia serve de lição para o Brasil porque indica que o caminho do poder bruto, com base em força militar e econômica, pode não ser suficiente para que um país conquiste status internacional. Como o Brasil é um país que também quer alcançar maior prestígio, fica claro que não adianta pensar apenas em hard power nesse processo, e que é preciso usar também outras formas de poder para alcançar este objetivo.
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Por um lado, essa avaliação põe em xeque parte da percepção de membros da comunidade de política externa dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Em minha pesquisa de doutorado, baseada em entrevistas com esses especialistas estrangeiros, ficou evidente que a visão deles ainda é muito presa a teorias realistas de relações internacionais que indicam que o poder bruto é o que importa para conseguir status. Buscar força econômica (especialmente) e militar foi apontado com frequência como um caminho para o Brasil tentar ser reconhecido como uma potência, segundo os entrevistados. Só que o caso russo rejeita essa visão.
É verdade que é preciso fazer uma ressalva importante: mesmo que não tenha o reconhecimento e a influência que deseja ter, a Rússia é, sim, uma grande potência, membro permanente do CSNU e que tem muito mais influência do que a maioria das nações. Alcançar o status da Rússia já seria um grande avanço para um país como o Brasil, que não tem muito claro o seu nível de status e papel na governança global.
Ainda assim, o questionamento é válido, e indica que há mais elementos envolvidos na conquista de reconhecimento do que se pode imaginar. Isso é importante para o Brasil no desenvolvimento das suas estratégias de política internacional, entendendo as expectativas internacionais e as limitações envolvidas em cada forma de buscar prestígio. É preciso apostar no hard power (especialmente via desenvolvimento econômico), sim, mas não se pode deixar de lado outras formas de influenciar a política internacional, integrando também o soft power.
*Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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