Como o Irã driblou as sanções dos EUA e usou seguradora americana para exportar petróleo

Uma investigação revela como a pouca supervisão do governo permitiu que petroleiros suspeitos, mas cobertos por seguradoras americanas, financiassem o regime iraniano

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Por Christiaan Triebert, Blacki Migliozzi, Neil Bedi e Alexander Cardia
Atualização:

The New York Times — Por meses, conforme grupos apoiados pelo Irã atacaram forças dos Estados Unidos no Oriente Médio, o governo Biden enalteceu seus esforços para restringir os lucros de Teerã com a venda de petróleo — chamando a atenção para a capacidade dos iranianos de financiar milícias no exterior. A secretária do Tesouro disse ao Congresso que suas equipes estão “fazendo tudo o que podem para reprimir” os envios ilegais, e um graduado conselheiro da Casa Branca afirmou que “sanções extremas” emperraram eficazmente o setor de energia do Irã.

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Mas as sanções não conseguiram impedir que bilhões de dólares em petróleo deixassem o Irã ao longo do ano passado, segundo constatou uma investigação do New York Times, revelando um lapso significativo na vigilância dos EUA.

O petróleo foi transportado a bordo de 27 embarcações, usando seguros comprados de uma empresa americana. Isso significa que as autoridades dos EUA poderiam ter atravancado o transporte do petróleo aconselhando a seguradora American Club, de Nova York, a revogar a cobertura, que frequentemente é uma exigência para a operação de navios petroleiros.

Teerã, Irã, em 18 de dezembro de 2023.  Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE

Em vez disso, os 27 petroleiros puderam transportar petróleo iraniano em pelo menos 59 viagens desde 2023, segundo constatou o Times, e metade das embarcações foi acionada em múltiplas viagens.

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O Departamento do Tesouro não respondeu à reportagem se esteve ciente dos envios de petróleo iraniano segurados pelo American Club.

Os petroleiros exibiam sinais de alerta que especialistas — e o Departamento do Tesouro — afirmaram coletivamente garantir maior escrutínio. Entre outros elementos suspeitos, as embarcações são pertencentes a empresas de fachada e mais velhas do que petroleiros usados comumente e usam uma tática classificada como falsificação de posicionamento para ocultar seu paradeiro real.

Imagens de satélite, grande parte acessíveis livremente ao público, registraram os petroleiros durante os envios.

Não é claro quem o governo dos EUA considera responsável primeiramente por identificar os petroleiros suspeitos. O Departamento do Tesouro tem o dever de aplicar sanções investigando e identificando indivíduos ou empresas que participam de atividades ilícitas. Mas atribui parte da tarefa de monitorar comportamentos suspeitos a empresas de seguro por meio de publicação regular de recomendações e alertas.

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Para identificar os envios de petróleo iraniano, o Times construiu uma base de dados com registros de milhares de petroleiros e suas localizações, usando dados marítimos e imagens de satélite. Embarcações cujos trajetos mostraram irregularidades foram confrontadas com informações fornecidas por Samir Madani, cofundador da empresa TankerTrackers.com, que monitora o frete marítimo de petróleo.

A SynMax e a Pole Star, outras duas empresas que monitoram envios de petróleo, forneceram dados adicionais.

No fim de janeiro, várias semanas após o American Club ser mencionado em uma audiência no Congresso intitulada, “Restringindo Lucros de Estados Delinquentes”, a cobertura de muitos petroleiros identificados pelo Times interrompeu-se bruscamente. A empresa disse que as interrupções foram resultado de suas próprias investigações internas. Cinco embarcações ainda estão seguradas pela empresa, de acordo com dados publicados em seu website; o American Club afirmou que ainda investiga esses navios.

As constatações do Times ocorrem num momento em que o governo Biden encontra-se sob crescente escrutínio de legisladores e grupos de defesa de interesses em razão da maneira que lida com as sanções contra o Irã.

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“É muito preocupante”, afirmou a senadora Maggie Hassan, democrata de New Hampshire, que introduziu um projeto de lei para reforçar a aplicação de sanções sobre navios clandestinos.

“Os EUA devem usar todas as ferramentas ao seu dispor para identificar, impedir e sancionar esses atores perversos”, afirmou ela. “Essas novas revelações enfatizam o que está em jogo.”

Em resposta às constatações do Times, um porta-voz do Departamento do Tesouro afirmou em um comunicado: “O Departamento do Tesouro continua com foco nas fontes de financiamento ilegal do Irã, incluindo por meio da exposição de redes de evasão e interrompendo o fluxo de bilhões de dólares em lucro”.

O porta-voz acrescentou que neste mês o departamento agiu contra o que classificou como uma empresa de fachada com sede em Hong Kong, que, segundo autoridades americanas, financiava o Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica.

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Os seguros fornecidos por empresas como o American Club são fatores determinantes na capacidade das embarcações de transportar petróleo; operadores da indústria os chamam de “carta-branca para o negócio”. A maioria dos portos grandes insiste que as embarcações provem que estão seguradas, entre outras exigências, antes que elas possam atracar e concretizar as transações comerciais.

A seguradora American Club é uma entre apenas 12 empresas nesse ramo — e a única sediada nos EUA. Especificamente, afirma a empresa, suas apólices cobrem terceiros envolvidos em acidentes causados por negligências de tripulações.

Em razão da importância da presença das seguradoras no frete marítimo, as empresas foram consultadas pelo governo americano durante o planejamento das sanções sobre as vendas de petróleo da Rússia.

O diretor-executivo de operações do American Club, Daniel Tadros, afirmou que sua empresa tem um dos programas de compliance mais rigorosos na indústria. Mas, segundo ele, a equipe de compliance da empresa, de seis pessoas, esteve sobrecarregada por meses com centenas de apurações sobre navios potencialmente suspeitos, e investigar embarcações caso a caso leva tempo.

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“É impossível para a gente saber com exatidão diariamente o que todos os navios estão fazendo, aonde estão indo, o que estão carregando, quem são seus donos”, afirmou Tadros. “Eu gostaria de acreditar que governos têm muito mais capacidade, força de trabalho e recursos para esse acompanhamento.”

Uma imagem de satélite mostra o maior navio da marinha iraniana, o Kharg, em Bandar Abbas, Irã, em 3 de abril de 2021. Foto: MAXAR TECHNOLOGIES via REUTERS

Ele acrescentou que o governo americano sugeriu apenas recentemente o uso de imagens de satélite para negócios relacionados aos oceanos em busca de evasões às sanções. Imagens de satélite têm sido usadas como ferramenta de rastreamento de embarcações na indústria há pelo menos uma década.

Donos de navios dispostos a contornar restrições comerciais podem ganhar mais do que suas comissões normais. Mas para manter conexões comerciais com o Ocidente, incluindo com seguradoras, eles podem apelar para táticas clandestinas.

Desde o início de 2023, as 27 embarcações transportaram aproximadamente 59 milhões de barris de petróleo, de acordo com a análise do Times. O cálculo tem como base a profundidade que o petroleiro atinge antes e depois de ser carregado, uma medida usada por analistas da indústria.

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Nenhuma fonte oficial detalha a quantidade de petróleo que sai do Irã. De acordo com estimativas da Kpler, empresa que monitora o comércio global, o petróleo carregado pelas embarcações equivaleu a cerca de 9% das exportações iranianas do insumo naquele período.

Muitos petroleiros acabaram na China, que triplicou suas importações de petróleo do Irã nos dois anos recentes.

Alguns dos envios continuaram durante o outono (Hemisfério Norte), quando o Hamas, um grupo apoiado pelo Irã, atacou Israel em 7 de outubro e outras milícias, como os houthis, no Iêmen, lançaram ataques contra embarcações comerciais e forças americanas na região.

Até então, os petroleiros tinham transportado pelo menos US$ 2,8 bilhões em petróleo, com base nos preços mais baixos informados sobre o petróleo iraniano em 2023.

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O montante em dólares pode ser mais alto. O Times encontrou outros 11 petroleiros ancorados em portos iranianos no ano passado que se valeram de práticas clandestinas e portavam seguros American Club. Apesar de haver poucas outras razões para os navios ocultarem sua presença, o Times não conseguiu verificar se eles carregaram petróleo.

Quando informações de contato foram disponíveis, o Times pediu comentários a mais de 40 entidades ligadas aos navios petroleiros envolvidos em transportar o petróleo iraniano. Nenhuma respondeu.

Alguns especialistas expressaram dúvida a respeito do American Club fazer tudo o que pode para identificar navios clandestinos.

“Seguradoras responsáveis e conceituadas não perdem tempo confrontando clientes ou sócios do clube”, afirmou Madani, da TankerTrackers.com.

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O ex-oficial de observância a sanções do Departamento do Tesouro David Tannenbaum, que trabalha atualmente como consultor em uma firma de assessoramento em compliance, afirmou que sua pesquisa mostrou que o American Club cobre uma grande proporção de embarcações clandestinas em comparação a outras seguradoras similares.

Uma chama de gás em uma plataforma de produção de petróleo é vista ao lado de uma bandeira iraniana no Golfo, em 25 de julho de 2005. Foto: Raheb Homavandi / REUTERS

“Ainda que encontremos violadores infiltrados em quase todos os grandes clubes de proteção e indenização, eles definitivamente são líderes”, afirmou Tannenbaum.

Na semana passada, a Bloomberg noticiou que o American Club segurou mais navios suspeitos de violar sanções do que outras seguradoras comparáveis, de acordo com dados do grupo privado Unidos Contra um Irã Nuclear, que defende sanções mais fortes contra Teerã.

(Muitas das embarcações citadas pelo grupo também foram identificadas pelo Times. Tadros, o executivo do American Club, afirmou que sua empresa retirou seguros em casos que as acusações foram corroboradas. Ele disse que, em algumas ocasiões, o grupo Unidos Contra um Irã Nuclear apresentou evidências falsas, conclusão à que o Times também chegou a respeito de um dos petroleiros acusados.)

O Times usou imagens de satélite e informações disponíveis para a indústria de frete marítimo, como sinais que os petroleiros transmitem para informar seus supostos paradeiros, para identificar as embarcações.

A trapaça dos petroleiros envolveu uma prática conhecida como falsificação de posicionamento (spoofing), na qual embarcações informam rotas falsas para ocultar suas verdadeiras localizações. Em agosto, por exemplo, o petroleiro Glory transmitiu que estava na costa dos Emirados Árabes Unidos quando na verdade estava sendo carregado de petróleo em Asaluyeh, no Irã.

Em alguns casos, os petroleiros também realizaram transferências entre navios, intercambiando mercadoria com outras embarcações no mar. A prática é comum, mas pode ser usada para ocultar a origem de uma determinada carga, especialmente quando usada juntamente com falsificação de posicionamento. Transferências navio a navio próximas ao Irã ocorreram com frequência diante da costa, como na ocasião em que o petroleiro Shalimar foi carregado, em outubro. Para cada transferência, o Times rastreou a origem da carga até terminais petrolíferos do Irã.

O Times também constatou que algumas tripulações de petroleiros alteram a aparência física dos navios. Em uma embarcação que havia informado localização falsa, uma lona vermelha foi estendida sobre o convés, originalmente verde, em um aparente esforço para evitar identificação por satélite.

Mesmo que os petroleiros tenham usado táticas de falsificação de posicionamento, seus padrões foram identificáveis. Muitos fingiram atracar na costa de Omã ou no Golfo Pérsico por dias a fio, mas imagens de satélite mostraram que os navios não estavam lá. Algumas embarcações até transmitiram sinais mostrando-as movendo-se sobre a terra, em altas velocidades, uma impossibilidade física.

Vários petroleiros tinham histórico de buscar petróleo em outros países sob sanções dos EUA. Antes de transportar petróleo iraniano, segundo constatou uma análise do Times, oito desses navios falsificaram suas localizações enquanto eram carregados com petróleo venezuelano sujeito a sanções. Não ficou claro se eles estavam segurados pelo American Club na ocasião. Um dos petroleiros estava segurado pelo American Club quando o Times detectou-o provavelmente evadindo-se de sanções à Rússia no ano passado.

O papel do American Club em segurar os 27 petroleiros poderia colocar a empresa em potencial violação a sanções, afirmaram especialistas da indústria.

Tadros discordou. Ele disse que a empresa inclui uma cláusula em seus contratos com base na diretriz do Departamento do Tesouro que anula cobertura caso o navio viole sanções. O executivo argumentou que esse mecanismo protege a seguradora de acabar cúmplice de possíveis violações. “O American Club leva a sério suas obrigações e trabalha diligentemente para cumprir regulações de sanções”, afirmou.

O Departamento do Tesouro aplicou sanções publicamente contra o American Club apenas uma vez nos últimos 20 anos. Em 2013, o departamento anunciou ter descoberto que a seguradora tinha processado dúzias de alegações para navios que violaram sanções contra Cuba, Sudão e Irã. Autoridades do Departamento do Tesouro calcularam a penalidade para as violações aparentes em mais de US$ 1,7 milhão.

Em última instância, o departamento afirmou que o American Club “não pareceu ter agido conscientemente nem irresponsavelmente”, e as partes chegaram a um acordo. A empresa concordou em pagar uma multa reduzida, de US$ 348 mil. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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