Distribuíram passaportes russos, linhas russas de telefone celular e decodificadores de sinal para assistir à TV russa. Substituíram a moeda ucraniana pelo rublo, redirecionaram a internet para servidores russos e prenderam centenas de pessoas que resistiram à assimilação.
De maneiras evidentes e discretas, as autoridades de ocupação no território conquistado pelas forças de Moscou estão usando medo e doutrinação para compelir os ucranianos a adotar o estilo de vida russo. “Somos um só povo”, dizem cartazes em azul, branco e vermelho. “Estamos com a Rússia.”
Agora vem o próximo ato da versão de guerra de conquista no século 21 do presidente Vladimir Putin: o “referendo” popular.
Os gestores apontados pela Rússia em vilarejos e cidades como Kherson, no sul da Ucrânia, estão preparando uma votação para o início de setembro, que o Kremlin apresentará como prova do desejo popular na região para se tornar parte da Rússia. Eles estão recrutando moradores locais pró-Rússia para organizar novas “comissões eleitorais” e divulgar para os civis ucranianos os supostos benefícios de se juntar à Federação Russa; há relatos de que cédulas já estão sendo impressas.
Qualquer referendo seria totalmente ilegítimo, afirmam autoridades ucranianas e ocidentais, mas teria consequências ameaçadoras. Analistas em Moscou e na Ucrânia esperam que isso servirá de prelúdio para que Putin declare oficialmente a área conquistada como território russo, protegido pelas armas nucleares russas — tornando futuras tentativas da Ucrânia de expulsar as forças russas potencialmente muito mais custosas.
“Não é nada difícil fazer um referendo”, afirmou Vladimir Konstantinov, presidente do Parlamento da Crimeia, imposto pelo Kremlin, na semana passada. “Eles pedirão: ‘Levem-nos para sua proteção, para o seu desenvolvimento, para sua segurança’.”
Konstantinov, político pró-Rússia veterano na Crimeia, sentou-se ao lado de Putin no Kremlin quando o presidente russo assinou o documento anexando a península à Rússia. Ele também ajudou a organizar o “referendo” da Crimeia, no qual 97% dos votantes aprovaram a anexação à Rússia — resultado amplamente rejeitado pela comunidade internacional, qualificado como fraudulento.
Agora, Konstantinov afirmou que está em contato constante com as autoridades de ocupação impostas pela Rússia na região vizinha de Kherson, que as forças russas capturaram no início da guerra. Ele afirmou que as autoridades lhe disseram poucos dias atrás que haviam começado a imprimir cédulas com o objetivo de organizar a votação em setembro.
Guerra na Ucrânia
Kherson é uma das quatro regiões nas quais autoridades sinalizam planos de referendo, juntamente com Zaporizhzhia, no sul, e Luhansk e Donetsk, no leste. Ainda que o Kremlin afirme que cabe aos moradores das regiões “determinar seu próprio futuro”, Putin sinalizou no mês passado que espera anexar as regiões definitivamente: ele comparou a guerra na Ucrânia às guerras de conquista de Pedro, o grande, no século 18 e afirmou que, como no caso do czar russo, “também cabe a nós recuperar” território russo perdido.
Como resultado, o esforço para mobilizar moradores dos territórios ocupados pela Rússia para um referendo é cada vez mais visível em campo — e é retratado como iniciativa de líderes locais.
As autoridades nomeadas pela Rússia nas regiões de Zaporizhzhia e Kherson, por exemplo, anunciaram semana passada que estavam formando “comissões eleitorais”para preparar os referendos localmente, que, segundo uma autoridade, poderiam acontecer em 11 de setembro — dia em que eleições locais e regionais estão marcadas para ocorrer na Rússia.
O anúncio convidou os moradores a solicitar adesão à comissão eleitoral enviando-lhe uma cópia de seus passaportes, registros escolares e duas fotos 3x4.
As autoridades estão acompanhando os preparativos para a votação com uma intensa campanha de propaganda — preparando tanto os moradores locais quanto o público doméstico na Rússia para uma anexação iminente. Um novo jornal pró-Rússia na região de Zaporizhzhia intitulou sua segunda edição com a manchete: “Haverá referendo!”. No principal noticiário semanal da TV estatal russa, domingo passado, uma reportagem prometia que “tudo está sendo feito para garantir que Kherson retorne para sua pátria-mãe assim que possível”.
“A Rússia está começando a desdobrar uma versão do que poderíamos qualificar como a cartilha da anexação”, afirmou este mês John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, comparando os preparativos de referendo com as movimentações do Kremlin, em 2014, para tentar justificar a anexação da Crimeia. “Anexar pela força será uma violação brutal da Carta da ONU, e nós não permitiremos que isso não seja contestado ou punido.”
Em Kiev, a capital da Ucrânia, autoridades afirmam que qualquer referendo que delibere sobre unir à Rússia as área ocupadas ou torná-las Estados-clientes seria ilegal, repleto de fraude e não valeria de nenhuma maneira para legitimar as capturas de território.
Para os civis ucranianos, a ocupação veio acompanhada de uma miríade de dificuldades, incluindo falta de dinheiro e medicamentos — situação que os russos tentam explorar para conquistar apoio dos moradores locais, distribuindo “ajuda humanitária”.
Aqueles que buscam um senso de normalidade estão sendo incentivados a solicitar um passaporte russo, que passou a ser requerido para registrar veículos motorizados ou alguns tipos de empresas; recém-nascidos e órfãos são registrados automaticamente como cidadãos russos.
“Não há dinheiro em Kherson, não há trabalho em Kherson”, afirmou Andrei, de 33 anos, que trabalhava no departamento de serviços de uma revendedora de carros na cidade antes da guerra. Ele deixou sua casa com sua mulher e seu filho pequeno, no início de julho, e se mudou para o oeste da Ucrânia.
“Kherson voltou para os anos 90, quando apenas vodca, cerveja e cigarros eram vendidos na cidade”, afirmou ele.
Depois de tomar o controle das regiões de Kherson e Zaporizhzhia, as forças russas buscaram autoridades ucranianas pró-Kremlin e as instalaram em posições de governo.
Ao mesmo tempo, empreenderam uma campanha contínua para sufocar a dissidência que incluiu sequestros, tortura e execuções de líderes políticos e culturais considerados ameaças, de acordo com testemunhas entrevistadas pelo New York Times, autoridades ocidentais e ucranianas e grupos independentes de defesa de direitos humanos, como Human Rights Watch.
Os invasores russos cortaram a conexão ao serviço ucraniano de telefonia celular e limitaram o acesso ao YouTube e ao Viber, um popular aplicativo de mensagens. Introduziram o rublo e começaram a substituir o currículo escolar pela mesma grade adotada na Rússia — que cada vez mais busca doutrinar as crianças sob a visão de mundo de Putin.
Uma das maiores prioridades parece ter sido fazer os locais assistirem à TV russa: funcionários da TV estatal russa com base na Crimeia foram enviados a Kherson para produzir um programa de notícias chamado “Kherson e Zaporizhzhia 24″ e instalar aparelhos descodificadores para dar aos cidadãos acesso às transmissões de TV gratuitas da Rússia — e até entregaram os equipamentos nas casas dos moradores que não puderam ir buscá-los pessoalmente.
Igor Kolikhaiev, prefeito de Kherson desde 2020, afirmou no fim do mês passado que a propaganda russa, aliada à sensação de ter sido abandonados pelo governo em Kiev, estava gradualmente sendo bem-sucedida em mudar a percepção de alguns moradores que ficaram para trás — principalmente pensionistas e pessoas de baixa renda.
“Acho que algo está mudando nas relações, provavelmente nos hábitos das pessoas”, afirmou ele, estimando que entre 5% e 10% dos moradores de lá mudaram de ideia por causa da propaganda.
“É um processo irreversível que ocorrerá no futuro”, acrescentou ele. “E é com isso que estou realmente preocupado. Depois será quase impossível reverter.”
Kolikhaiev falou com a reportagem a partir de um escritório improvisado em Kherson. Dias depois, seu assistente anunciou que ele havia sido sequestrado por forças de ocupação pró-Rússia. Até a sexta-feira, não havia notícias a respeito de seu paradeiro.
No início da ocupação, na primavera passada, moradores de Kherson reuniram-se repetidamente em grandes e turbulentos protestos em desafio às tropas russas, apesar das manifestações serem reprimidas com munição real. Essa confrontação franca acabou quase totalmente, de acordo com Ivan, de 30 anos, que viveu a vida inteira em Kherson, permanece na cidade e pediu que seu sobrenome não seja informado em razão dos riscos por criticar a ocupação publicamente.
“Sempre que há uma concentração maior de pessoas, os soldados aparecem imediatamente”, afirmou ele. “Protestar agora realmente coloca vidas em risco.”
Mas os sinais da resistência são evidentes, afirmam moradores. “Nosso povo sai às ruas de noite e pinta bandeiras ucranianas nos muros”, afirmou outro homem, Andrei. “Com tintas amarelas e azuis, escrevem: ‘Nós acreditamos nas Forças Armadas ucranianas’.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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