THE NEW YORK TIMES - Dezenove dias depois de assumir como líder da China, Xi Jinping reuniu-se com os generais que supervisionam os mísseis nucleares do país e expressou uma demanda abrupta. A China tinha de estar pronta para um possível confronto com um adversário formidável, afirmou ele, sinalizando que desejava uma capacidade atômica mais potente para enfrentar essa ameaça.
Sua força, disse Xi aos generais, é um “pilar do nosso status de grande potência”. Eles deveriam, afirmou o líder chinês, avançar com “planos estratégicos para responder sob as condições mais complicadas e difíceis à intervenção militar de um inimigo poderoso”, de acordo com um resumo oficial interno de seu discurso pronunciado em dezembro de 2012 para o setor de mísseis nucleares e convencionais da China, chamado na época de Segundo Corpo de Artilharia, que foi analisado pelo New York Times.
Publicamente, as declarações de Xi em relação a assuntos que envolvem armas atômicas têm sido esparsas e corriqueiras. Mas seus comentários atrás de portas fechadas, revelados nesse discurso, mostram que temores e ambições têm orientado o incremento transformador no arsenal nuclear chinês na década recente.
Desde aqueles dias iniciais, Xi sinaliza que uma força atômica robusta é necessária para marcar a ascensão da China como grande potência. Ele também transpareceu receios de que o arsenal nuclear relativamente modesto da China poderia ser vulnerável aos Estados Unidos — o “inimigo poderoso” — com sua rede de aliados asiáticos.
Agora, as opções nucleares da China aumentaram, seus estrategistas militares estão considerando armas atômicas chinesas não apenas como um escudo defensivo, mas também como uma possível espada — para intimidar e subjugar adversários. Mesmo sem disparar nenhuma arma nuclear, a China seria capaz de mobilizar ou brandir seus mísseis, bombardeiros e submarinos para alertar outros países em relação aos riscos de uma temerária escalada atômica.
“Uma capacidade de dissuasão estratégica potente pode forçar o inimigo a desistir de uma ação intempestiva, subjugando-o sem ter de ir à guerra”, afirmou o pesquisador Chen Jiaqi, da Universidade de Defesa Nacional, na China, em um artigo publicado em 2021. “Quem quer que domine as tecnologias mais avançadas e desenvolva armas de dissuasão estratégica capazes de deixar os outros para trás, comendo poeira, terá uma voz poderosa em tempos de paz e manterá a iniciativa em tempos de guerra.”
Esta reportagem tem como base discursos internos de Xi e dezenas de relatórios e estudos do Exército de Libertação Popular, muitos publicados em revistas científicas e técnicas, para rastrear as motivações do incremento na capacidade nuclear militar da China. Alguns foram citados em estudos recentes a respeito da postura nuclear da China; muitos outros não tinham sido revelados anteriormente.
Xi expandiu o arsenal atômico de seu país mais rapidamente do que qualquer outro líder chinês, aproximando a China da capacidade das grandes potências nucleares, EUA e Rússia. Xi dobrou o tamanho do arsenal atômico chinês, para cerca de 500 ogivas; e nesse ritmo a China terá em torno de 1,5 mil ogivas até 2035 — aproximadamente a mesma quantidade que Washington e Moscou, cada, possuem atualmente em atividade, afirmaram autoridades americanas. (EUA e Rússia têm ainda milhares de outras ogivas antigas guardadas no porão.)
A China também está desenvolvendo uma série de mísseis, submarinos, bombardeiros e veículos hipersônicos capazes de realizar ataques nucleares cada vez mais sofisticados. E reformou seu campo de testes nucleares na região de Xinjiang, no extremo oeste do país, abrindo caminho para novos testes subterrâneos, talvez se uma corrida armamentista irromper.
Uma grande mudança no poderio nuclear e na doutrina militar da China poderia complicar profundamente sua competição com os EUA. A expansão chinesa já desencadeia um debate intenso em Washington a respeito de como responder e intensifica a dúvida sobre futuros tratados maiores de controle de armas. Tudo isso enquanto o antagonismo entre EUA e Rússia também aumenta a possibilidade de uma nova era de rivalidade nuclear.
Xi e o presidente Joe Biden têm arrefecido rancores desde o ano passado, mas encontrar uma estabilidade nuclear pode ser difícil se a China permanecer fora de grandes tratados de controle de armas ao mesmo tempo que Washington compete contra Pequim e Moscou.
Crucialmente, as crescentes opções nucleares da China poderiam moldar o futuro de Taiwan — a ilha democrática que Pequim reivindica como seu território e que depende dos EUA para apoio em segurança. Nos próximos anos, a China poderá adquirir confiança de que é capaz de limitar uma intervenção de Washington e seus aliados em qualquer conflito.
Na decisão a respeito do destino de Taiwan, a “carta Trump” que os chineses poderão ter nas mãos poderia ser uma “força poderosa de dissuasão estratégica”, para alertar que “qualquer intervenção externa não será nem seria possivelmente bem-sucedida”, escreveu Ge Tengfei, docente da Universidade de Tecnologia de Defesa, na China, em uma revista do Partido Comunista, em 2022.
A revolução nuclear de Xi
Desde que a China testou uma bomba atômica pela primeira vez, em 1964, seus líderes afirmavam que jamais seriam “os primeiros a usar armas nucleares” em uma guerra. A China, consideravam eles, precisava apenas de um arsenal nuclear modesto para ameaçar de maneira crível possíveis adversários com a possibilidade de, caso os chineses fossem atacados com armas nucleares, Pequim poderia responder aniquilando cidades inteiras do inimigo.
“No longo prazo, as armas nucleares da China são apenas simbólicas”, afirmou em 1983 o então líder chinês, Deng Xiaoping, explicando a posição de Pequim ao ex-primeiro-ministro do Canadá Pierre Trudeau, durante visita do canadense a Pequim. “Se a China gastar energia demais com isso, nós enfraqueceríamos.”
Mesmo à medida que a China incrementou suas forças convencionais, a partir dos anos 90, seu arsenal nuclear aumentou em ritmo gradual. Quando Xi assumiu como líder, em 2012, a China tinha cerca de 60 mísseis balísticos intercontinentais capazes de atingir os EUA.
Pequim já vinha desafiando cada vez mais seus vizinhos em disputas territoriais e percebia perigo nos esforços do governo Obama de reafirmar o poder americano por toda a região Ásia-Pacífico. Em um discurso pronunciado no fim de 2012, Xi advertiu seus comandantes afirmando que os EUA estavam “incrementando a contenção estratégica e o cerco em torno de nós”.
Leia mais
A China também se preocupava com a possibilidade de sua dissuasão nuclear estar enfraquecendo. Analistas militares chineses alertaram que os mísseis do Exército de Libertação Popular ficavam mais vulneráveis a detecção e destruição à medida que os EUA faziam avanços em tecnologia militar e construíam alianças na Ásia.
Narrativas históricas da oficialidade chinesa reforçavam esse medo. Os estudos do Exército de Libertação Popular com frequência tratam da Guerra da Coreia e das crises motivadas por Taiwan nos anos 50, quando líderes americanos insinuavam que poderiam soltar bombas atômicas sobre a China. Essas memórias encravaram visões em Pequim de que os EUA são inclinados a usar “chantagem nuclear”.
“Nós temos de ter armas poderosas para nos proteger e escudos mortíferos temidos pelos demais”, afirmou Xi aos oficiais de armamentos do Exército de Libertação Popular, no fim de 2014.
No fim de 2015, Xi deu um grande passo no incremento da força nuclear chinesa. Trajando seu uniforme verde, de comandante-chefe das forças militares da China, ele presidiu uma cerimônia em que o Segundo Corpo de Artilharia, depositário dos mísseis nucleares da China, renascesse como a Força de Foguetes, elevando-se ao nível de um serviço à mesma altura do Exército, da Marinha e da Força Aérea.
A missão da Força de Foguetes, disse Xi aos seus comandantes, inclui “incrementar uma dissuasão nuclear crível e confiável, assim como a capacidade de contra-ataque nuclear” — ou seja, uma capacidade de sobreviver a um ataque inicial e contra-atacar com força devastadora.
Entre túneis e campos cheios de silos
A China não empreende uma busca apenas por mais ogivas. Seu foco recai também em escondê-las e protegê-las, assim como ser capaz de dispará-las mais rapidamente a partir de terra, mar ou ar. A recém-ungida Força de Foguetes adicionou uma voz mais poderosa a esse esforço.
Pesquisadores da Força de Foguetes escreveram em um estudo de 2017 que a China deveria emular os EUA e buscar “forças nucleares suficientes para equilibrar a nova situação global e garantir que nosso país seja capaz de ganhar a iniciativa em guerras futuras”.
A dissuasão nuclear da China dependeu durante muito tempo de unidades enterradas em túneis profundos, dentro de montanhas remotas. Soldados são treinados para permanecer escondidos em túneis por semanas ou meses, privados de luz solar, sono regular e ar fresco enquanto tentam não ser detectados por inimigos, de acordo com estudos médicos de sua extenuante rotina.
“Se a guerra ocorrer”, afirmou uma reportagem de 2018 na TV estatal chinesa, “esse arsenal nuclear lançado do subterrâneo surgirá de seu esconderijo onde o inimigo menos espera e disparará seus mísseis”.
A Força de Foguetes expandiu-se rapidamente, crescendo em pelo menos 10 novas brigadas, um aumento de aproximadamente um terço, em poucos anos, de acordo com um estudo publicado pelo Instituto de Estudos Aeroespaciais da China, da Força Aérea dos EUA. A China também adicionou à Força de Foguetes mais lançadores rodoviários e ferroviários de mísseis para tentar despistar satélites e outras tecnologias de detecção dos americanos.
Temores chineses a respeito das capacidades americanas, entretanto, persistiram. Mesmo conforme a China produzia mísseis transportáveis por rodovias, alguns especialistas do Exército de Libertação Popular argumentavam que os armamentos podiam ser rastreado por satélites cada vez mais sofisticados.
Uma solução, argumentaram alguns analistas da Força de Foguetes em 2021, era construir também conjuntos de silos de lançamento de mísseis, obrigando as forças americanas a tentar detectar quais abrigam mísseis reais e quais contêm simulacros, “dificultando ainda mais destruí-los de um só golpe”.
Outros estudos chineses sustentaram argumentos similares em defesa dos silos, e Xi e seus comandantes pareceram levá-los em consideração. O movimento mais ousado até aqui em sua expansão nuclear foi instalar três vastos campos, com cerca de 320 silos, no norte da China. Os silos, instalados em distância segura em relação aos mísseis americanos convencionais, podem conter mísseis capazes de atingir os EUA.
A expansão, contudo, enfrentou turbulência. No ano passado, Xi substituiu abruptamente dois altos comandantes da Força de Foguetes numa reorganização não explicada, sugerindo que seu crescimento foi prejudicado por corrupção. Este ano, nove oficiais militares graduados foram expulsos da legislatura, indicando uma investigação em expansão.
Esse transtorno poderia diminuir o ritmo dos planos da China sobre armas nucleares no curto prazo, mas as ambições a longo prazo de Xi parecem estabelecidas. No Congresso do Partido Comunista de 2022, ele afirmou que a China deve continuar a incrementar suas “forças de dissuasão estratégica”.
E mesmo com centenas de silos novos, analistas militares chineses encontram outras fontes de preocupação. No ano passado, engenheiros aeroespaciais chineses propuseram reforçar os silos para proteger melhor os mísseis de ataques de precisão. “Somente isso pode garantir que o nosso lado será capaz de realizar um contra-ataque letal na eventualidade de um ataque nuclear”, escreveram eles.
Decisões difíceis
Líderes chineses afirmam desejar uma unificação pacífica com Taiwan, mas que podem usar a força caso se encontrem sem opções. Se Pequim movimentar-se para tomar o controle de Taiwan, os EUA poderiam intervir para defender a ilha, e a China pode calcular que seu arsenal nuclear expandido poderia representar um alerta potente.
Oficiais militares chineses já emitiram ameaças enfurecidas de retaliação sobre Taiwan antes. Agora as ameaças da China podem ter mais peso.
Expandir sua variedade de mísseis, submarinos e bombardeiros poderia acarretar em ameaças críveis não apenas a cidades no território continental dos EUA, mas também a bases americanas, digamos, no Japão ou em Guam. O risco de um confronto convencional escalar para a guerra nuclear poderia influenciar decisões. Analistas militares chineses argumentam que as ameaças nucleares da Rússia limitaram a resposta dos países da Otan à invasão à Ucrânia.
Confira mais
“A escada de escalada que eles podem aplicar agora é muito mais nuançada”, afirma o diretor-executivo do Centro para Análise de China do instituto Asia Society. “A mensagem implícita não é apenas, ‘Nós somos capazes de destruir Los Angeles com uma bomba nuclear’; é também, ‘Nós poderíamos aniquilar Guam, e vocês não vão querer arriscar uma escalada se nós o fizermos’.”
As opções de Pequim incluem cerca de 200 lançadores de mísseis DF-26, que podem ser ou não carregados com ogivas nucleares e são capazes de atingir alvos por toda a Ásia. Os meios de comunicação oficiais da China descreveram unidades da Força de Foguetes praticando alternâncias desse tipo e se gabaram durante uma parada militar a respeito do papel duplo, de arma convencional e nuclear, do míssil — uma revelação aparentemente destinada a assustar rivais.
Em um confronto real, Washington poderia se deparar com decisões difíceis a respeito de possíveis alvos de ataques dentro da China incluírem ou não unidades de mísseis carregados com ogivas nucleares — e em uma situação extrema, de um míssil DF-26 já lançado poder ser atômico.
“Será realmente uma decisão muito difícil para qualquer presidente americano ter confiança de que qualquer conselho que ele esteja obtendo não arrisque uma escalada nuclear por causa de Taiwan”, afirmou o ex-analista-sênior da CIA John Culver, que estuda as forças militares chinesas. “Assim que os EUA começarem a bombardear a China continental, ninguém terá capacidade de dizer ao presidente americano com convicção exatamente onde está a linha chinesa.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.