HAIA - Como qualquer pessoa aprovada na faculdade de seus sonhos, Victor Muller Ferreira entrou em êxtase quando foi aceito na graduação da Universidade Johns Hopkins, em Washington, em 2018. O feito foi ainda mais saboroso para Ferreira porque ele não era um estudante brasileiro que enfrentava dificuldades, mas um operador de inteligência russo nascido em Kaliningrado, de acordo com uma série de investigações e um indiciamento do Departamento de Justiça apresentado a uma corte federal na sexta-feira, 24.
Seu nome verdadeiro é Sergei Cherkasov, e ele passou quase uma década construindo o personagem de Ferreira, de acordo com autoridades e registros judiciais. Sua “equipe” era um círculo restrito de operadores russos acionados subitamente para manter um espião disfarçado infiltrado profundamente na capital americana, posicionado para forjar conexões em qualquer setor do establishment de segurança dos Estados Unidos, do Departamento de Estado à CIA.
Usando o acesso que obteve durante seus dois anos em Washington, Cherkasov produziu relatórios para seus chefes no serviço de inteligência militar da Rússia, o GRU, a respeito das maneiras com que autoridades graduadas do governo Biden responderam à concentração de tropas russas anterior à invasão da Ucrânia, de acordo com a transcrição de um depoimento ao FBI.
Depois que se formou na faculdade, Cherkasov chegou perto de alcançar uma inserção mais influente, ao ser convidado para ocupar uma posição no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Ele estava prestes a iniciar um estágio de seis meses na corte, no ano passado, no momento em que a instituição iniciava sua investigação sobre crimes de guerra da Rússia na Ucrânia, mas acabou rejeitado pelas autoridades holandesas, que agiram sobre informações transmitidas pelo FBI, de acordo com autoridades de segurança ocidentais. As autoridades dos Países Baixos o colocaram em um avião para o Brasil, onde ele foi preso ao desembarcar e agora cumpre uma pena de 15 anos de cadeia por fraudar documentos relacionados à sua identidade falsa.
Sua prisão, em abril do ano passado, ocorreu no início de uma operação de desmantelamento, atualmente em andamento, de redes de inteligência russas por toda a Europa que foi lançada após a invasão da Rússia à Ucrânia e que, afirmam autoridades, infligiu um dano maior às agências de espionagem do Kremlin do que qualquer outro esforço desde o fim da Guerra Fria.
A Rússia nega que Cherkasov seja espião e solicitou sua extradição do Brasil apresentando o que as autoridades brasileiras consideram uma outra identidade falsa, alegando que ele não é nem estudante nem agente secreto, é na verdade um traficante de heroína procurado que fugiu da Rússia para evitar ser preso.
A criação do personagem Victor Ferreira começou sobre camadas de documentos fraudulentos que funcionaram como um tipo de casulo de borboleta.
Uma segunda via de uma certidão de nascimento com o nome de Ferreira foi emitida propositalmente em 2009, um ano antes de Cherkasov entrar no Brasil, de acordo com registros judiciais brasileiros. Em seguida, apareceu uma carteira de motorista com o nome de Ferreira, mas a foto era de outra pessoa. O rastro de documentos sugere que o caminho de Cherkasov foi aberto anteriormente por operadores e agentes russos já em campo.
Vulnerabilidades do sistema
O GRU parece ter explorado vulnerabilidades nos sistemas brasileiros de imigração e registros cartoriais, ao mesmo tempo que se valeu de ajuda interna. Um tabelião cuja assinatura aparece em muitas das requisições fraudulentas de Cherkasov recebeu presentes, incluindo um colar Swarovski, de acordo com registros brasileiros e o indiciamento. O papel dessa pessoa ainda é foco de uma investigação em andamento no Brasil sobre as atividades de espionagem de Cherkasov e as atividades do GRU no País, afirmaram autoridades.
Depois de estabelecer sua base, Cherkasov passou a coletar documentos adicionais para comprovar residência sob a identidade de Ferreira, incluindo CPF, uma nova carteira de motorista, com uma foto que corresponde à sua aparência, e um passaporte brasileiro.
Durante esses anos iniciais no Brasil, Cherkasov arrumou emprego em uma agência de viagens que, suspeita o FBI, seria gerida por um operador do GRU, de acordo com o depoimento. A agência de viagens -- outro eco da série The Americans -- fechou posteriormente.
A “lenda” de Cherkasov -- termo da espionagem que define uma história de pano de fundo fabricada -- era complicada e trágica. A narrativa retratava uma criação quase dickensiana, envolvendo uma série de lares adotivos e ausências prolongadas do País depois da morte de sua mãe. Para dar consistência à sua biografia, o GRU identificou Cherkasov como filho de Juraci Eliza Ferreira, uma brasileira que morreu em 1993.
Na realidade, ela não teve filhos, de acordo com registros judiciais e seu sobrinho, Juliano Arenhart. “Até onde a gente sabe, ela nunca teve filho”, afirmou Arenhart em entrevista ao Washington Post.
Uma das evidências mais bizarras a emergir no caso é um documento digressivo, de quatro páginas, encontrado no computador de Cherkasov, escrito em português - e similar a anotações de um ator que tenta se familiarizar com um personagem.
“Eu sou Victor Muller Ferreira”, começa o texto, antes de jorrar uma história artificial sobre duras conquistas crivadas de detalhes aleatórios. Ele descreve sua aversão ao cheiro de peixe próximo a uma ponte no Rio de Janeiro e um pôster sensual de Pamela Anderson em uma oficina mecânica em que supostamente trabalhou.
Outras passagens pareceram antecipar suspeitas sobre seu cabelo loiro e seu sotaque intrigante ensaiando formas de desviar desse tipo de dúvida -- afirmando que possui ascendência alemã e que passou longos períodos fora do País, durante os quais sua fluência em português diminuiu.
“Meus colegas faziam piada com a minha aparência e o meu sotaque”, afirma ele sobre dias de escola que nunca existiram. “Eles me chamavam de ‘gringo’. Por isso eu não tive muitos amigos.”
Apesar de lapsos nos métodos clandestinos, Cherkasov progrediu rapidamente em seu objetivo de se infiltrar nas instituições ocidentais.
Cherkasov, que tinha 33 anos quando começou a frequentar a Universidade Johns Hopkins, mas fingia ser um estudante com pouco menos de 30, levantou apenas suspeitas vagas entre professores e colegas de classe.
“Eu não detectei nada de russo em seu comportamento nem em seu sotaque”, afirmou o professor Eugene Finkel, que fala russo como língua nativa e deu aula para Cherkasov em duas matérias, incluindo uma sobre genocídio. Em um tuíte postado depois que o caso foi revelado publicamente, Finkel afirmou que Cherkasov era “muito inteligente e competente” e se apresentou como um brasileiro com raízes irlandesas, então seu “sotaque estranho fazia sentido”.
Traço de russo
Mas um colega de classe descreveu um encontro estranho. Ex-oficial da Marinha americana e também fluente em língua russa, ele afirmou que ambos conversaram amigavelmente depois da aula, certo dia, a respeito da admiração às motocicletas que eles compartilhavam.
“Eu disse que nós deveríamos dar uma volta de moto”, afirmou o ex-oficial, que falou sob condição de anonimato alegando preocupação com sua segurança. O ex-oficial disse que, com o transcorrer da conversa, detectou um traço de russo na dicção de Ferreira e achou estranho que um brasileiro tivesse um primeiro nome que soasse tão russo.
Para lembrar
“Eu disse: ‘Eu cresci falando russo; você tem alguma ascendência russa?”, relatou o ex-oficial. Ferreira recuou e respondeu: “Não, sou de família alemã”, afirmou o ex-oficial. Depois de se mostrar entusiasmado inicialmente para andar de moto com o colega, Ferreira abandonou o plano e se manteve distante, afirmou o ex-oficial. “Naquele ponto, ele realmente evitou responder perguntas.”
Durante seu último ano na Universidade Johns Hopkins, Ferreira participou de uma viagem de estudo a Israel com seus colegas de classe, que ele usou para coletar informações sobre autoridades americanas e israelenses, assim como de outras partes, com as quais os estudantes se encontraram, de acordo com o depoimento. Posteriormente, durante uma viagem às Filipinas, ele compartilhou com um operador russo a lista com os nomes de quem ele se encontrou.
Conforme a graduação se aproximava, em 2020, Cherkasov se candidatou para diversos estágios e outras posições. Entre as instituições que ele mirava, de acordo com o depoimento, estavam as Nações Unidas e “institutos de análise americanos, instituições financeiras americanas, um meio de comunicação americano e uma posição no governo americano”.
Em março de 2022, poucas semanas após a invasão russa, de 24 de fevereiro, Cherkasov tinha “sido aprovado nas checagens de segurança do TPI e aceitado a posição de analista-júnior”, de acordo com o depoimento.
No Brasil, Cherkasov buscou pôr a casa em ordem. Ele “se encontrou com um emissário” para formar um caixa para sustentá-lo em seu emprego não remunerado; deixou memórias de computador e outros dispositivos escondidos em pontos de entrega às cegas ao longo de uma trilha em uma mata próxima de São Paulo, enviando instruções para seus operadores russos sobre onde recolher o material; e também discutiu estratégias para encontros futuros com seus operadores propondo viagens de visita ao Brasil que seriam fáceis de justificar ao TPI.
Em 31 de março, quando Cherkasov embarcava em um voo para Amsterdã, nem ele nem seus operadores do GRU pareciam cientes do cerco que lhes envolvia. Naquele momento, o serviço holandês de inteligência havia coletado seus próprios sinais de que a embaixada russa em Haia estava fazendo preparativos para a chegada de um novo ilegal, de acordo com uma autoridade de segurança ocidental.
As autoridades dos Países Baixos receberam, então, um dossiê do FBI com tantos detalhes a respeito da identidade de Cherkasov e seu vínculo com o GRU que concluíram que a polícia federal americana e a CIA vinham monitorando Cherkasov secretamente havia meses, talvez anos, de acordo com uma autoridade ocidental familiarizada com o assunto.
As autoridades holandesas interceptaram Cherkasov no aeroporto, o interrogaram por várias horas, vasculharam seus dispositivos e usaram software de reconhecimento facial para estabelecer correspondência entre a foto de seu passaporte e imagens dele online registradas em Kaliningrado, antes de ele se envolver com espionagem. Os holandeses o obrigaram, então, a embarcar em um voo de volta para o Brasil.
Ele foi detido ao desembarcar no País, onde negou ser operador de inteligência da Rússia insistindo que a coisa toda não passava de uma confusão e afirmando que Ferreira, sua identidade, existe realmente. Antes de pousar no Brasil, contudo, Cherkasov mandou mensagens aflitas para uma mulher na Rússia com quem ele tem envolvimento romântico há anos, de acordo com o depoimento, buscando fazer com que ela entrasse em contato com um de seus superiores no GRU.
No Brasil, Cherkasov estava confiante de que sua sentença de 15 anos de cadeia não colaria. “Nem a pau eu vou ficar aqui”, afirmou ele em uma mensagem de 7 de junho à mulher russa, com quem, segundo o depoimento, ele buscava autorização do GRU para se casar. “Eles ‘tiveram’ que me dar uma sentença grande em nome das aparências, sacou? Ninguém fica 15 anos preso aqui por falsificar uma p***a de um passaporte!”
Oito meses depois, Cherkasov continua na prisão, em meio a sinais incertos sobre seu possível destino. O Supremo Tribunal Federal aprovou preliminarmente o pedido de extradição da Rússia. O ministro russo das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, tem viagem marcada para o Brasil no fim de abril, o que levanta a possibilidade de Moscou tentar encontrar uma maneira de garantir sua libertação.
O caso de Cherkasov foi fonte de constrangimento entre autoridades do Brasil em razão da suscetibilidade do sistema do País a fraudes e da frequência com que isso tem sido usado pelos serviços de inteligência russos como plataforma de lançamento de ilegais. Outro suposto operador do GRU foi preso no ano passado, na Noruega, com identidade brasileira falsa. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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