ENVIADA ESPECIAL BORODIANKA, BUCHA, IRPIN MOSHCHUN E ANDRIIVKA* - Natalia Buzovetska ainda chora quando lembra como foi retornar à sua cidade, Borodianka, localizada a 50 km de Kiev, capital da Ucrânia, depois do fim do cerco russo.
As poucas centenas de pessoas que restaram, ou retornaram à cidade depois que ela foi retomada pelas tropas ucranianas, tentam tocar a rotina em meio aos prédios destruídos e às lembranças dos corpos de seus entes encontrados jogados nas ruas.
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Dois anos depois da ocupação russa às cidades do entorno de Kiev, os prédios e pontes destruídos compartilham espaço com novas construções impulsionadas pelo governo ucraniano com ajuda de verba internacional.
Os moradores se orgulham de ter “mudado o curso da história” ao conseguirem conter as tropas que marchavam rumo à capital, mas dizem que é difícil - e não podem - esquecer os cerca de 30 dias sob controle russo.
Borodianka e a destruição presente
Natalia é diretora do centro cultural de Borodianka e chora ao lembrar dos concertos musicais que tentaram fazer dentro do prédio destruído do Palácio cultural. “O próprio Palácio não tinha portas e janelas. Mas o pior era olhar para fora das janelas e ver os prédios do outro lado da rua completamente destruídos e saber que pessoas haviam morrido ali”, fala entre um longo suspiro tentando segurar o choro.
No início da invasão russa da Ucrânia, Borodianka foi palco de intensos bombardeios das tropas que tentavam chegar a Kiev. A cidade foi uma das primeiras a ser tomadas pelos russos que entraram no território ucraniano pela fronteira com Belarus. Depois de ocupar Chernobil, eles marcharam para Borodianka, numa rota que ainda teria Bucha, Irpin, Moshchun e Andriivka, antes de chegar a Kiev.
No começo de abril de 2022, depois que as forças ucranianas retomaram a cidade, encontraram um cenário de devastação. Hoje, dois anos depois, a cidade ainda parece um cenário de guerra, com prédios chamuscados e muitos reduzidos a detritos. Em alguns dos prédios em ruínas é possível ver que há pessoas morando. Embora grande parte dos moradores esteja agora vivendo em assentamentos, alguns se recusaram a deixar as casas que estão a vida toda.
Tetiana, 69, recebe a delegação de jornalistas com emoção no pequeno quarto que compartilha com a neta Milana, 12, em um assentamento em Borodianka. “É assim que a gente vive agora”, fala olhando nos olhos de cada repórter que se espremia entre as camas beliche e o guarda-roupa. Ela faz questão de mostrar as pinturas da neta, feitas como um refúgio ao trauma. Os pais da menina morreram durante a ocupação.
Mais de 300 pessoas morreram durante este período. Natalia se lembra do primeiro dia de bombardeios, quando um míssil foi jogado em um prédio residencial onde 48 pessoas se protegiam no porão. Seis delas morreram. “Os corpos eram enterrados onde as pessoas conseguiam. Nos jardins, nas calçadas… porque as forças russas não deixavam enterrá-los”, lembra.
A descoberta do cenário de Borodianka aconteceu uma semana depois das descobertas na cidade vizinha, Bucha, onde imagens de completa destruição e corpos espalhados chocaram o mundo. Desde então, ambas as cidades viraram passagem obrigatória de delegações de autoridades e jornalistas estrangeiros que visitam Kiev.
Bucha e a lembrança dos rastros de corpos
Após ocuparem Borodianka, foi a vez de Bucha, a apenas 30 km de Kiev, que virou o principal cenário das denúncias de crimes de guerra e contra a humanidade neste conflito. Relatórios conduzidos por agências de direitos humanos, como Human Rights Watch, ONU e Anistia Internacional indicaram evidências de tortura, estupro e execução em massa de civis.
Mais tarde a Ucrânia solicitou ao Tribunal Penal Internacional que investigasse o caso. O promotor do TPI chegou a visitar Bucha e declarou que o local era “cenário de um crime”.
Mais de dois anos depois, a cidade transformou a vala comum onde foram encontrados corpos em um cemitério aos mortos. Ali está o túmulo de 116 civis. O mais jovem é uma criança de quatro anos e o mais velho, um idoso com mais de 100 anos.
Os 116 corpos foram encontrados no terreno da igreja do padre Andrii Halavin, que ficou conhecido por expor os horrores de Bucha. “Alguns foram encontrados tão destruídos e queimados que não era possível nem dizer se era homem ou mulher”, disse.
O padre aponta para alguns túmulos e se preocupa em contar brevemente as suas histórias. Muitos eram membros de sua igreja. Em um certo momento, aponta para as gavetas de uma família inteira e conta que todos foram torturados antes de serem mortos.
“Durante o mês de ocupação russa, as pessoas só tinham duas saídas: ou morrer de fome escondidas em suas casas ou sair para procurar comida e água. E foi assim que muitas delas foram mortas”, relatou.
Por proteção, ele decidiu não utilizar suas roupas religiosas para não atrair atenção. “Mantive um perfil discreto porque eles estavam matando os padres dessa área”, conta citando a morte de um outro clérigo de Bucha e um de Irpin.
Dentro da igreja, o padre montou uma exposição com fotos feitas pela agência Reuters logo nas primeiras horas de retomada da cidade. Os retratos trazem imagens dos corpos de civis jogados pelas ruas. “Veja, veja o que fizeram”, diz apontando. “Essas ainda foram escolhidas para não traumatizar. Temos imagens muito piores”.
Ele conta que algumas das fotografias ajudaram familiares a identificar vítimas. Ele aponta para uma foto famosa de uma mulher cujas mãos aparecem para fora do plástico que escondia seu corpo: “A moça do salão de beleza reconheceu que ela havia feito aquele trabalho nas unhas da moça e soube que era sua cliente Irina”.
Irpin, a ‘cidade herói’
Próxima parada: Irpin. A cidade é a última antes de se chegar a Kiev pela avenida Beresteiski. Nela, cenários de prédios novos sendo construídos contrastam com uma ponte completamente destruída pelos próprios moradores junto com o Exército ucraniano. A apenas 25 km de Kiev, a cidade foi o mais perto que as tropas russas chegaram de ocupar a capital.
Os moradores falam com orgulho de ter “mudado o curso da história” quando contiveram o avanço das tropas inimigas. A principal ponte que ligava a cidade a Kiev foi destruída justamente para impedir que os soldados russos a cruzassem. Os destroços da ponte serão mantidos ao lado da nova que foi recém construída.
Pela contenção, em grande parte feita pela própria população, e por ter sido a primeira vitória da Ucrânia sobre a Rússia, Irpin recebeu o título de “cidade herói”, dado pessoalmente pelo presidente Volodmir Zelenski.
“Irpin foi quase 70% destruída, mas foi a única cidade da região metropolitana de Kiev que se levantou contra os russos e garantiu que não fosse ocupada”, diz o prefeito Oleksandr Makushin. Os russos chegaram a ocupar 30% do território.
Se os russos tivessem cruzado por Irpin, hoje não teríamos a capital Kiev e não teríamos mais a Ucrânia.
Oleksandr Makushin, prefeito de Irpin
Muito diferente de Borodianka, o cenário de destruição já é pouco presente na cidade. Além de bombardeios, Irpin foi palco de intensos combates de rua que deixaram marcas nos prédios e nos carros abandonados.
O prefeito mostra um complexo residencial que, durante a fase mais intensa da ocupação, foi completamente destruído. Agora, o local parece um canteiro de obras com novos prédios residenciais sendo construídos em meio a outros deixados em destroços como lembrança. “Essa área já foi completamente reconstruída e foi graças a ajuda de organizações internacionais”, diz.
“Em dois anos você pode ver que Irpin foi reconstruída em quase toda sua totalidade e agora é uma cidade que lidera a renovação e reconstrução para garantir que a vida retorne à cidade. Queremos garantir que as pessoas que foram embora retornem. Até o momento, mais de 90% das pessoas que fugiram da cidade já voltaram”, completa.
Na saída, um estacionamento foi transformado em um cemitério de carros fuzilados e queimados. Eram veículos particulares de civis que estavam tentando fugir da cidade, conta o prefeito.
Moshchun e os resquícios da batalha
Quando não conseguiram avançar para Kiev por Irpin, as forças russas decidiram tentar outro caminho, o que as levou para o pequeno vilarejo de Moshchun, famoso por ser um retiro de férias nos arredores da capital.
Os poucos moradores também se levantaram para defender o local, que hoje guarda trincheiras espalhadas pelos campos e um cemitério de mansões vazias e destruídas.
Vadim Zherdetski, líder do vilarejo, ainda se lembra como foi o primeiro dia da chegada russa. Ele ouviu uma explosão e correu para o segundo andar de sua casa para inspecionar o que estava acontecendo. “Soube que a guerra havia começado porque vi que o aeroporto tinha sido bombardeado”, conta, citando o aeroporto de Hostomel, que foi tomado estrategicamente pelos russos.
Naquele mesmo dia, lembra, uma centena de moradores da vila se reuniu na praça principal para organizar a defesa local. Ele e três de seus seis filhos participaram da defesa do vilarejo, no confronto que ficou conhecido como a batalha de Moshchun, momento que também foi considerado essencial para a proteção de Kiev. “Cavamos trincheiras para proteger o vilarejo, tanto homens quanto mulheres”, relata.
A ucraniana Irina Kabalska, 35, se lembra do terror que foi ficar sob ocupação russa até conseguir fugir. Antes da guerra, ela trabalhava na indústria farmacêutica, um emprego que a fez morar temporariamente em São Paulo, Buenos Aires e Medellín entre 2018 e 2019.
Anos antes ela havia comprado um drone, para fins completamente civis, e foi o que a salvou durante a ocupação, afirma. Com o equipamento ela conseguia inspecionar o vilarejo sem ter que sair de casa e pôde decidir quando deixar o local.
“Com o drone eu inspecionava onde estavam os tanques russos e sabia quando era seguro. Foi uma técnica de sobrevivência”. No passado ela havia trabalhado como instrutora de drones para o Exército ucraniano. “Eu digo muito que drones são seus olhos, eles podem ver antes de você”.
Nós fomos muito criativos em utilizar alguns brinquedos civis, porque antes da guerra drones eram apenas isso, brinquedos, mas nós ucranianos passamos a usar os drones para lutar.
Irina Kabalska, moradora de Moshchum
Ela comemora ter tido a “sorte” de conseguir escapar do vilarejo apesar do cerco russo, mas quando retornou encontrou a sua comunidade em ruínas. A recuperação, conta, será difícil, já que muitas das casas ali são da era pré-soviética e é mais burocrático lidar com elas.
“Quando as tropas russas chegaram não haviam muitos homens das forças ucranianas aqui ainda, então a população teve que fazer a contenção, e fizeram bloqueando as estradas, fazendo placas de orientação falsas porque os russos não tinham mapas e não podiam usar o GPS ou os celulares aqui”, lembra Irina.
Andriivka e as técnicas da Chechênia
No meio de todo este caminho, também estava o vilarejo de Andriivka, que viveu os mesmos níveis de destruição da vizinha Borodianka e teve um episódio semelhante ao da vila de Yahidne, em Chernihiv, com pessoas sendo mantidas no porão de uma escola.
“Desde o primeiro dia, os russos passaram checando casa por casa em busca de armas porque supostamente eles tinham informações de que esse era o local onde a unidade ucraniana de resistência estava baseada”, conta o líder da vila, Vitalii Cherasov. Quando não encontraram a resistência que buscavam, passaram a matar homens civis aleatoriamente, completa. Uma técnica semelhante a utilizada na ocupação russa da Chechênia, em 1994, de vasculhar em busca de resistência.
Civis foram forçados a deixar suas casas, que passaram a ser ocupadas por tropas russas. Nas moradias onde ainda havia civis, era necessário colocar um pano branco nas cercas para sinalizar que ainda não estavam ocupadas.
As tropas ocuparam a prefeitura do vilarejo, onde colocaram um atirador em cima do telhado. De frente, uma escola se transformou no quartel-general das tropas russas. Na mesma escola, dezenas de civis foram mantidos reféns no porão.
“Eles forçaram uma mulher a sair de sua casa, aqui perto, e a trouxeram para a escola. Quando ela pediu para retornar para casa, ela viu um buraco no chão e perguntou o que era aquilo, e eles disseram que estavam preparando as sepulturas para os habitantes locais”, completa Cherasov.
O vilarejo, de característica rural, ainda guarda os resquícios daqueles 33 dias de ocupação por meio de buracos de balas e casas destruídas para todo lado.
*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia
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